domingo, 6 de novembro de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - OS BEM AVENTURADOS - 06.11.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – OS BEM AVENTURADOS - TODOS OS SANTOS – 06.11.2016

Caros Leitores,

Neste domingo, celebramos a memória litúrgica da festa de Todos os Santos e Santas, transferida do dia 1 para hoje, conforme acordo entre a CNBB e o Governo. O evangelho de hoje rememora as bem-aventuranças ditadas por Jesus no famoso e carismático “sermão da montanha”, no qual ele inverte a ordem daquilo que o “mundo” considera felicidade e mostra que ser feliz, isto é, ser bem-aventurado é ser santo. Ser fiel nas coisas simples, ser solidário em todas as ocasiões, ser amável e respeitoso só contribui para a melhora geral da vida na sociedade. Sem dúvida, é disso que todos nós mais precisamos, na vida urbana dos nossos dias.

Na semana passada, tivemos em Juazeiro do Norte mais uma edição da concorrida romaria de finados, instituída pelo Padre Cícero e que conta com o apoio irrestrito dos Frades Capuchinhos, que sempre prestigiam e atendem fraternalmente a todos os fiéis. Até o nosso querido Frei Roberto, do alto dos seus 95 anos de idade, esteve ali animando e interagindo com os romeiros. No meu modo de entender, esse grande afluxo de pessoas que por ali passam todos os anos está totalmente ligado com a imagem da imensa multidão, descrita no texto de João, lido na liturgia de hoje, tanta gente que ninguém podia contar. No primeiro plano, João coloca os 144 mil assinalados, representantes das tribos de Israel. Antes do trabalho catequético de Paulo, o apóstolo dos estrangeiros (gentios), estimava-se que a mensagem de Cristo devia ser seguida por aqueles que eram herdeiros da promessa, pois foi para eles que, num primeiro momento, Jesus Cristo pregou. Mas, com a pouca adesão no meio judaico, a fé cristã ganhou mesmo foro e entusiasmo no meio da “grande multidão formada por todos os povos e nações”. E os nossos romeiros são o exemplo mais evidente da concretização dessa memorável profecia joanina.

Em certo trecho lido hoje do Apocalipse (Ap 7, 13), João dialoga com um ancião, que lhe perguntou: quem são essas pessoas? João não soube responder e o próprio ancião completou: São os que vieram da grande tribulação, lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro. Ora, só podiam ser esses brasileiros nordestinos, que saíram da grande tribulação da seca e foram fortalecer a sua fé batismal nos lugares sagrados ciceronianos. Fico imaginando a grandiosa festa que acontecerá no horto de Juazeiro quando o Papa, em dia não muito distante, proclamar a santidade do Padre Cícero, agora que já não existe mais nenhum óbice canônico, com a retirada das penalidades que lhe haviam sido impostas. Todos sabemos que o povo já proclamou santo o Padre Cicero, independentemente de qualquer pronunciamento oficial eclesiástico. Mas quando o reconhecimento oficial acontecer, então a comemoração deverá ser inenarrável. Aguardemos.

Meus amigos, podemos afirmar que a romaria é uma forma de manifestação visível da autêntica comunhão dos santos: a Igreja peregrina se unindo com a Igreja celestial através da fé. Quem nunca esteve presente numa romaria não consegue avaliar o grau de seriedade com que o romeiro se comporta. Uma coisa é a reportagem que se vê pela televisão, outra coisa é o fenômeno que se observa e a energia que se sente emanar dessas pessoas. No Apocalipse, João fala de uma multidão que ninguém podia contar. Pois bem, ele não estava exagerando. Somente o contingente de romeiros de Juazeiro já seria suficiente para confirmar a previsão apocalíptica. Se acrescentarmos as outras milhares de comunidades de igrejas cristãs presentes nos diversos lugares do planeta, vamos concluir que incontável é pouco. E se considerarmos ainda as comunidades cristãs separadas, que o Papa Francisco está em busca de reunir, como fez há poucos dias junto à comunidade luterana da Suécia, vamos compreender quão realista foi a profecia de João, pois dentro de uma perspectiva ecumênica, todos os que foram validamente batizados, foram assinalados na testa com o sinal da salvação.

A segunda leitura, que também é da autoria de João, complementa o tema acima, quando afirma que desde já somos filhos de Deus, embora ainda não tenha se manifestado em nós o que seremos. Essa manifestação somente ocorrerá no futuro, “quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é.” (1Jo 3, 2). Ou seja, pelo batismo, somos assinalados e já podemos ser chamados filhos de Deus, embora essa condição só se resolva de modo pleno na futura morada de todos nós. Este foi o grande presente que Deus nos deu, diz João, o de sermos chamados Seus filhos desde já. E isso é possível por causa da redenção trazida por Cristo, que apagou todos os nossos pecados e nos abriu as portas da morada divina. Essa verdade de fé é descrita na teologia como a tensão do “já e ainda não”, isto é, já somos filhos de Deus, porém, ainda não o somos plenamente. O teólogo Francis Scraeffer, no seu livro “A verdadeira espiritualidade” (p. 89), assim explica essa doutrina: “A salvação, no sentido em que essa palavra é usada na Bíblia, é mais ampla do que a justificação. Na salvação, há passado, futuro e, com o mesmo grau de realidade, há presente. A obra infinita realizada por Cristo na cruz traz mais do que justificação ao cristão. No futuro, haverá a glorificação. Quando Cristo retornar, haverá a ressurreição do corpo e a eternidade; mas há também um aspecto em que a salvação é presente. A santificação constitui nosso atual modo de relacionamento com o Senhor, é a nossa conjugação verbal presente na vida de comunhão com Deus”. Achei interessante esse texto e o reproduzi aqui porque, em outras igrejas cristãs, prega-se a justificação do fiel em Cristo, mas o teólogo explica que o conceito de salvação vai muito além da simples justificação, porque inclui desde a forma da vida atual, no mundo corporal, e se prolonga até a vida definitiva, sendo coerente com a passagem da carta de João citada acima (3, 2). Esse conjunto de palavras expressa de uma forma dinâmica o estado da nossa vida de fé que, por ora nos deixa ver as coisas como encobertas por um véu, como diz Paulo na carta a Coríntios:” …porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido” [1Coríntios 13].

A riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama a todos de bem-aventurados. Dizer que somos bem-aventurados é o mesmo que dizer que somos santos. Em latim, bem aventurados = 'beati' (plural de beatus) é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tanto assim que algumas traduções do evangelho usam esta palavra nos textos. Curiosamente, Cristo chama de bem-aventurados todos aqueles que, pelo status social, seriam pessoas desventuradas. O cântico litúrgico da festa de hoje, reproduzindo uma passagem do cap. 3 do Livro da Sabedoria, identifica os conceitos de “justo”, “feliz” e “santo”: a vida dos justos está nas mãos de Deus, “Depois de terem sofrido um pouco, receberão grandes bens, pois Deus os provou e achou dignos de si.” (Sb 3, 5). Aqui se encaixa o conceito de “felizes os que sofrem, porque serão consolados”. Lembro que o Frei Higino costumava dizer, nas suas conferências, repetindo um bordão de São Francisco: um frade triste é um triste frade. A felicidade, a santidade, a bem-aventurança, a justiça estão sempre de mãos dadas. Ser santo não é isolar-se de todos e passar o dia rezando e meditando, sem viver na comunidade. Assim seria muito fácil alcançar a santidade. O grande desafio da santidade é aturar as maledicências, as incompreensões, a má vontade de algumas pessoas com quem convivemos e ainda assim mantermos a serenidade, a alegria e o bom humor. Fazendo assim, nem é necessário desfiar as contas do rosário seguidas vezes para alcançar o patamar da autêntica santidade.

O Papa Francisco, como sempre surpreendente, neste domingo celebrou a missa na Basílica de São Pedro com a presença de diversos prisioneiros e ex-prisioneiros de diversos países, incluindo os respectivos familiares e funcionários que trabalham nos presídios, dentro das comemorações do Jubileu do Recluso, até consagrou hóstias fabricadas por prisioneiros de Milão. Em Roma, o Dia de Todos os Santos é celebrado na data própria, 1 de novembro, mas a missa de hoje do Papa ainda se situa no contexto da comunhão dos santos, pois afinal os reclusos (considerando aqui aqueles que estão conscientes do seu erro e desejam emendar-se) também são chamados a fazer parte da “grande multidão” narrada no Apocalipse. A lembrança dos excluídos não pode nos passar despercebida no dia em que se comemora a festa de todos os santos, porque todos somos chamados para a santidade e, mesmo aqueles que eventualmente se desviaram do caminho, não foram segregados desse chamamento. Aproveitemos a data para repensar o nosso conceito de santidade.

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