COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO
DA PÁSCOA – O PASTOR E O IMPOSTOR – 07.05.2016
Caros Leitores,
No 4º domingo da Páscoa, a liturgia
colaciona a clássica imagem do Bom Pastor, que se apresenta ainda
como a porta por onde passam as suas ovelhas (Jo 10, 7). Repete-se o
mesmo tema dos anos anteriores, porém tendo como referências outras
leituras bíblicas. Neste domingo, tanto quanto no domingo anterior,
sobressai-se a figura de Pedro, na leitura de Atos e também na
leitura da sua primeira carta. O oposto do bom pastor será o
impostor, o que não entra pela porta, mas escorrega furtivamente
pela janela e engana ostensivamente. Olhando para a nossa sociedade
contemporânea, parece que estamos com grande deficiência de bons
pastores. A todo momento, temos notícias de lobos travestidos de
ovelhas, enganando o povo que, por sua vez, se deixa enganar.
A primeira leitura, dos Atos dos
Apóstolos (2, 14ss), relata outro trecho do discurso de Pedro feito
no dia de Pentecostes para a multidão, que acorreu ao Cenáculo com
o barulho do vendaval. O mesmo povo que, dias antes, havia pedido a
morte de Jesus e a soltura de Barrabás, diante do discurso inspirado
de Pedro, pergunta, arrependido: o que devemos fazer? E Pedro
responde: convertei-vos e recebei o batismo para o perdão dos
pecados. (At 2, 38) Diz o texto que, naquele dia, cerca de três mil
pessoas foram batizadas. Esta leitura, embora sem mencionar
diretamente, retrata a figura do Bom Pastor, enquanto porta da
salvação para as “ovelhas” arrependidas. Esses fenômenos de
conversões em massa, que se sucederam logo após o dia de
Pentecostes, causavam grande irritação aos fariseus, porque foram
os seus chefes religiosos que manobraram o povo contra Jesus para o
condenarem e agora viam o mesmo povo mudando de lado. Grande parte
dos visitantes e da população de Jerusalém, muitos que estavam ali
para os festejos da Páscoa e haviam acompanhado os acontecimentos da
paixão de Jesus, também souberam dos eventos miraculosos que
acompanharam a sua morte. E, ouvindo a pregação simples dos
apóstolos, passaram a acreditar em Jesus e entraram a fazer parte do
rebanho do Bom Pastor.
Na segunda leitura, extraída da
primeira carta de Pedro (1Pd 2, 20), lemos
a sequência do
texto do domingo anterior, daquela carta dirigida aos judeus
convertidos, que sofriam perseguições por causa de sua opção
religiosa pelo cristianismo. Daí que Pedro os exorta a suportarem
com paciência o sofrimento, seguindo o exemplo de Jesus que, mesmo
sem culpa, não se maldisse nem se vingou dos que o maltrataram. E
embora sem fazer alusão direta, o texto de Pedro também guarda
relação com a figura do Bom Pastor, quando diz: “andáveis
como ovelhas desgarradas, mas agora voltastes ao pastor e guarda de
vossas vidas.” (1Pd 2, 25) O Bom Pastor, portanto, está
presente na pregação dos apóstolos desde os primeiros tempos,
porque a metáfora do pastor e do rebanho estava bastante ligada à
realidade do povo judeu, que tinha na ovinocultura uma importante
fonte de renda, sendo uma profissão tradicional e muito integrada na
vida econômica de suas comunidades. Ora, se ainda hoje, quando
vivemos numa época de maciça produção tecnológica, a ideia de um
pastor ainda tem forte apelo emocional e devocional, quanto mais
naquele tempo em que essa atividade era costumeira e rendosa. Os
nossos Bispos ainda são chamados de pastores e os ministros das
igrejas cristãs não católicas adotaram esse epíteto como
referência para a sua liderança religiosa. No Ceará, a figura que
corresponderia ao pastor seria a do vaqueiro, tradicional e romântico
personagem da nossa zona rural, que antes aparecia com chapéu de
couro e gibão, montado em brilhosos cavalos, e hoje transita montado
em cavalos mecânicos, de pés redondos e emborrachados. Nas cidades
do interior, com certeza há mais motocicletas do que automóveis e,
se duvidar, do que as tradicionais montarias. Tanger rebanhos montado
numa moto é a nova imagem do nosso sertão tecnológico.
A leitura do evangelho de João (Jo 10,
1-10) narra o início da parábola do Bom Pastor, um dos símbolos
muitas vezes repetidos na catequese de Jesus, sendo uma narrativa que
consta apenas no evangelho escrito por João. É compreensível que
João, tendo escrito seu texto depois dos outros evangelistas e ainda
tendo tido o privilégio de conviver com Jesus, pôde fazer uma
espécie de complementação, relatando fatos e circunstâncias que
os demais não haviam escrito. Por isso, é comum encontrarem-se
certas passagens que constam apenas no evangelho joanino e é também
por isso que este evangelho não leva o título de sinótico, como os
três primeiros. Enquanto os outros fizeram uma espécie de sinopse
de textos esparsos que circulavam nas comunidades, guardando assim
diversas passagens em comum, o evangelho de João é mais reflexivo e
específico, legando-nos o entendimento das primeiras comunidades
localizadas na região da Ásia Menor, onde ele atuava. Apenas para
recordar, João escreveu seu evangelho em Éfeso, onde era bispo
daquela comunidade.
Acerca da figura do Bom Pastor, ele
começa descrevendo o seu oposto, isto é, o mau pastor, aquele que
não entra pela porta, mas furtivamente e às escondidas. A tradução
oficial da CNBB usa dois substantivos para exemplificar o mau pastor:
ladrão e assaltante. (Jo 10, 1) Mas vejamos os vocábulos originais,
para fazermos uma comparação. No texto da vulgata, São Jerônimo
chama o mau pastor de “fur et latro”, que em português
correspondem à tradução oficial. FUR é o que rouba às escondidas
e LATRO é o que rouba com violência. Porém, no texto grego
original, os vocábulos são “kléptes” e “lestes”. KLEPTES
significa embusteiro, enganador, o que age com dissimulação, não
necessariamente o ladrão. Na língua portuguesa, existe a palavra
“cleptomania”, aplicada às pessoas que têm um desvio de conduta
que as leva a se apoderarem de bens alheios furtivamente, até sem
ter necessidade, apenas pela emoção de surrupiar. E a palavra grega
“LESTES” deriva do verbo “lesteuô”, que significa fazer
pirataria, portanto, “lestes” é o pirata, o usurpador. No grego
como no latim, ambas as palavras têm a ver com o furto e podem ser
traduzidas, genericamente, por ladrão. Mas me parece que essas
explicações dos vocábulos gregos ajudam a compreender um sentido
mais profundo por trás do conceito do mau pastor. O ladrão e o
assaltante põem as ovelhas para correr e assim não podem ser
comparadas com um pastor. Já o enganador, o impostor, o usurpador
tentam se passar pelo autêntico pastor e podem, sim, enganar as
ovelhas. São os lobos travestidos de cordeiros, outra figura também
emblemática nesse contexto. Por isso, penso que esses estereótipos
são mais compatíveis com a figura do mau pastor do que os conceitos
comuns de ladrão e assaltante. Mais adiante, no versículo 12 (que
não faz parte da leitura de hoje), João compara o mau pastor com o
mercenário, que está mais relacionado com a figura do usurpador, do
enganador, o que reforça a minha conclusão de que os termos “ladrão
e assaltante” não são os mais adequados para a tradução.
Então, o bom pastor é o que entra
pela porta e as ovelhas conhecem sua voz e o seguem. Logo em seguida,
ao fazer uma explicação mais direta, porque pareceu que seus
interlocutores não haviam entendido, Jesus diz claramente: digo-lhes
uma coisa – eu sou a porta, (Jo 10, 7) quem entrar por mim será
salvo (Jo 10, 9). Observemos a transmutação dos conceitos: o bom
pastor torna-se a própria porta por onde as ovelhas devem entrar,
ele entra pela porta e se transforma na própria porta do aprisco.
Mais do que o simples condutor do rebanho, como são todos os
pastores convencionais, Jesus se identifica como a porta por onde as
ovelhas devem entrar para encontrarem pastagens abundantes. Aí está
a grande novidade. Transcendendo o conceito de bom pastor para a
porta da verdade, Jesus está se autoafirmando como Deus. Ele não
apenas conduz os seus seguidores para Deus, mas quem crê nele e,
portanto, passa através dele, já chegou a Deus. Concretamente, no
âmbito de nossas vidas, a porta por onde passamos para chegar até
Jesus é o nosso batismo, pelo qual passamos a fazer parte do seu
“rebanho”. Assim, voltamos ao trecho da leitura de Atos, citado
acima, quando Pedro responde aos que o interrogaram sobre o que
deviam fazer: convertam-se e aceitem o batismo de Jesus. (At 2, 38)
Aceitar o batismo significa escolher a porta certa, a porta da
verdade, que conduz à salvação.
Meus amigos, o batismo não é um fato
do nosso passado, de quando ainda éramos infantes e nossos pais nos
levaram a receber esse divino dom. Esse evento foi apenas o momento
da entrada, mas nós continuamos a caminhar na estrada da salvação.
Por isso, o batismo deve se renovar a cada dia, na nossa missão
junto à família, à sociedade, à profissão, através do nosso
testemunho de pertença ao rebanho de Cristo, pelo qual as pessoas
com quem convivemos possam perceber em nós a marca que identifica os
verdadeiros cristãos.
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