domingo, 7 de maio de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DA PÁSCOA - O PASTOR E O IMPOSTOR - 07.05.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA PÁSCOA – O PASTOR E O IMPOSTOR – 07.05.2016


Caros Leitores,

No 4º domingo da Páscoa, a liturgia colaciona a clássica imagem do Bom Pastor, que se apresenta ainda como a porta por onde passam as suas ovelhas (Jo 10, 7). Repete-se o mesmo tema dos anos anteriores, porém tendo como referências outras leituras bíblicas. Neste domingo, tanto quanto no domingo anterior, sobressai-se a figura de Pedro, na leitura de Atos e também na leitura da sua primeira carta. O oposto do bom pastor será o impostor, o que não entra pela porta, mas escorrega furtivamente pela janela e engana ostensivamente. Olhando para a nossa sociedade contemporânea, parece que estamos com grande deficiência de bons pastores. A todo momento, temos notícias de lobos travestidos de ovelhas, enganando o povo que, por sua vez, se deixa enganar.

A primeira leitura, dos Atos dos Apóstolos (2, 14ss), relata outro trecho do discurso de Pedro feito no dia de Pentecostes para a multidão, que acorreu ao Cenáculo com o barulho do vendaval. O mesmo povo que, dias antes, havia pedido a morte de Jesus e a soltura de Barrabás, diante do discurso inspirado de Pedro, pergunta, arrependido: o que devemos fazer? E Pedro responde: convertei-vos e recebei o batismo para o perdão dos pecados. (At 2, 38) Diz o texto que, naquele dia, cerca de três mil pessoas foram batizadas. Esta leitura, embora sem mencionar diretamente, retrata a figura do Bom Pastor, enquanto porta da salvação para as “ovelhas” arrependidas. Esses fenômenos de conversões em massa, que se sucederam logo após o dia de Pentecostes, causavam grande irritação aos fariseus, porque foram os seus chefes religiosos que manobraram o povo contra Jesus para o condenarem e agora viam o mesmo povo mudando de lado. Grande parte dos visitantes e da população de Jerusalém, muitos que estavam ali para os festejos da Páscoa e haviam acompanhado os acontecimentos da paixão de Jesus, também souberam dos eventos miraculosos que acompanharam a sua morte. E, ouvindo a pregação simples dos apóstolos, passaram a acreditar em Jesus e entraram a fazer parte do rebanho do Bom Pastor.

Na segunda leitura, extraída da primeira carta de Pedro (1Pd 2, 20), lemos a sequência do texto do domingo anterior, daquela carta dirigida aos judeus convertidos, que sofriam perseguições por causa de sua opção religiosa pelo cristianismo. Daí que Pedro os exorta a suportarem com paciência o sofrimento, seguindo o exemplo de Jesus que, mesmo sem culpa, não se maldisse nem se vingou dos que o maltrataram. E embora sem fazer alusão direta, o texto de Pedro também guarda relação com a figura do Bom Pastor, quando diz: “andáveis como ovelhas desgarradas, mas agora voltastes ao pastor e guarda de vossas vidas.” (1Pd 2, 25) O Bom Pastor, portanto, está presente na pregação dos apóstolos desde os primeiros tempos, porque a metáfora do pastor e do rebanho estava bastante ligada à realidade do povo judeu, que tinha na ovinocultura uma importante fonte de renda, sendo uma profissão tradicional e muito integrada na vida econômica de suas comunidades. Ora, se ainda hoje, quando vivemos numa época de maciça produção tecnológica, a ideia de um pastor ainda tem forte apelo emocional e devocional, quanto mais naquele tempo em que essa atividade era costumeira e rendosa. Os nossos Bispos ainda são chamados de pastores e os ministros das igrejas cristãs não católicas adotaram esse epíteto como referência para a sua liderança religiosa. No Ceará, a figura que corresponderia ao pastor seria a do vaqueiro, tradicional e romântico personagem da nossa zona rural, que antes aparecia com chapéu de couro e gibão, montado em brilhosos cavalos, e hoje transita montado em cavalos mecânicos, de pés redondos e emborrachados. Nas cidades do interior, com certeza há mais motocicletas do que automóveis e, se duvidar, do que as tradicionais montarias. Tanger rebanhos montado numa moto é a nova imagem do nosso sertão tecnológico.

A leitura do evangelho de João (Jo 10, 1-10) narra o início da parábola do Bom Pastor, um dos símbolos muitas vezes repetidos na catequese de Jesus, sendo uma narrativa que consta apenas no evangelho escrito por João. É compreensível que João, tendo escrito seu texto depois dos outros evangelistas e ainda tendo tido o privilégio de conviver com Jesus, pôde fazer uma espécie de complementação, relatando fatos e circunstâncias que os demais não haviam escrito. Por isso, é comum encontrarem-se certas passagens que constam apenas no evangelho joanino e é também por isso que este evangelho não leva o título de sinótico, como os três primeiros. Enquanto os outros fizeram uma espécie de sinopse de textos esparsos que circulavam nas comunidades, guardando assim diversas passagens em comum, o evangelho de João é mais reflexivo e específico, legando-nos o entendimento das primeiras comunidades localizadas na região da Ásia Menor, onde ele atuava. Apenas para recordar, João escreveu seu evangelho em Éfeso, onde era bispo daquela comunidade.

Acerca da figura do Bom Pastor, ele começa descrevendo o seu oposto, isto é, o mau pastor, aquele que não entra pela porta, mas furtivamente e às escondidas. A tradução oficial da CNBB usa dois substantivos para exemplificar o mau pastor: ladrão e assaltante. (Jo 10, 1) Mas vejamos os vocábulos originais, para fazermos uma comparação. No texto da vulgata, São Jerônimo chama o mau pastor de “fur et latro”, que em português correspondem à tradução oficial. FUR é o que rouba às escondidas e LATRO é o que rouba com violência. Porém, no texto grego original, os vocábulos são “kléptes” e “lestes”. KLEPTES significa embusteiro, enganador, o que age com dissimulação, não necessariamente o ladrão. Na língua portuguesa, existe a palavra “cleptomania”, aplicada às pessoas que têm um desvio de conduta que as leva a se apoderarem de bens alheios furtivamente, até sem ter necessidade, apenas pela emoção de surrupiar. E a palavra grega “LESTES” deriva do verbo “lesteuô”, que significa fazer pirataria, portanto, “lestes” é o pirata, o usurpador. No grego como no latim, ambas as palavras têm a ver com o furto e podem ser traduzidas, genericamente, por ladrão. Mas me parece que essas explicações dos vocábulos gregos ajudam a compreender um sentido mais profundo por trás do conceito do mau pastor. O ladrão e o assaltante põem as ovelhas para correr e assim não podem ser comparadas com um pastor. Já o enganador, o impostor, o usurpador tentam se passar pelo autêntico pastor e podem, sim, enganar as ovelhas. São os lobos travestidos de cordeiros, outra figura também emblemática nesse contexto. Por isso, penso que esses estereótipos são mais compatíveis com a figura do mau pastor do que os conceitos comuns de ladrão e assaltante. Mais adiante, no versículo 12 (que não faz parte da leitura de hoje), João compara o mau pastor com o mercenário, que está mais relacionado com a figura do usurpador, do enganador, o que reforça a minha conclusão de que os termos “ladrão e assaltante” não são os mais adequados para a tradução.

Então, o bom pastor é o que entra pela porta e as ovelhas conhecem sua voz e o seguem. Logo em seguida, ao fazer uma explicação mais direta, porque pareceu que seus interlocutores não haviam entendido, Jesus diz claramente: digo-lhes uma coisa – eu sou a porta, (Jo 10, 7) quem entrar por mim será salvo (Jo 10, 9). Observemos a transmutação dos conceitos: o bom pastor torna-se a própria porta por onde as ovelhas devem entrar, ele entra pela porta e se transforma na própria porta do aprisco. Mais do que o simples condutor do rebanho, como são todos os pastores convencionais, Jesus se identifica como a porta por onde as ovelhas devem entrar para encontrarem pastagens abundantes. Aí está a grande novidade. Transcendendo o conceito de bom pastor para a porta da verdade, Jesus está se autoafirmando como Deus. Ele não apenas conduz os seus seguidores para Deus, mas quem crê nele e, portanto, passa através dele, já chegou a Deus. Concretamente, no âmbito de nossas vidas, a porta por onde passamos para chegar até Jesus é o nosso batismo, pelo qual passamos a fazer parte do seu “rebanho”. Assim, voltamos ao trecho da leitura de Atos, citado acima, quando Pedro responde aos que o interrogaram sobre o que deviam fazer: convertam-se e aceitem o batismo de Jesus. (At 2, 38) Aceitar o batismo significa escolher a porta certa, a porta da verdade, que conduz à salvação.

Meus amigos, o batismo não é um fato do nosso passado, de quando ainda éramos infantes e nossos pais nos levaram a receber esse divino dom. Esse evento foi apenas o momento da entrada, mas nós continuamos a caminhar na estrada da salvação. Por isso, o batismo deve se renovar a cada dia, na nossa missão junto à família, à sociedade, à profissão, através do nosso testemunho de pertença ao rebanho de Cristo, pelo qual as pessoas com quem convivemos possam perceber em nós a marca que identifica os verdadeiros cristãos.

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