domingo, 23 de julho de 2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 16º DOMINGO COMUM - PARÁBOLAS DO REINO - 23.07.2017

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 16º DOMINGO COMUM – PARÁBOLAS DO REINO – 23.07.2017

Caros Leitores:

Após uma pausa, por motivo de viagens, retomo neste domingo os comentários da liturgia. No domingo passado, em Parnaíba, participei da missa na Catedral, celebrada pelo Bispo Diocesano, Dom Juarez, e hoje, aqui em Fortaleza, na Igreja da Glória, quedei-me a pensar na uniformidade da nossa liturgia, pois em qualquer templo a celebração tem sua continuidade. Vejo nisso uma demonstração de que o reino de Deus já está entre nós, não é algo do futuro, mas do presente, como ensina a teologia. Na temática deste domingo, as parábolas do reino trazem exemplos pedagógicos utilizados por Cristo para simbolizar a nossa realidade definitiva, que já iniciamos nesta vida terrena, o “Reino” que nos está assegurado pela ação redentora de Cristo. Embora seja uma realidade futura, o reino já pode ser vivido na nossa condição atual, foi exatamente isso que Cristo veio ensinar.

Na primeira leitura, do livro da Sabedoria (12, 13-19), o autor sagrado faz o contraponto entre a força e a justiça. Dentro da mentalidade judaica antiga, Javeh era aquela autoridade poderosa e ciumenta, que aplicava castigos aos que não acreditavam nele, mas julgava com clemência os crentes. E dentro dessa visão de justiça, Javeh era também complacente com os arrependidos, sempre disposto a perdoar os pecadores. Com isso, o agiógrafo afirma que Javeh está ensinando como deve ser a aplicação da justiça pelas autoridades da sociedade: “Assim procedendo, ensinaste ao teu povo que o justo deve ser humano” (12, 19). Ou seja, a autoridade social deve sempre tomar como medida da justiça a regra da humanidade. Enquanto a Javeh o escritor sagrado afirma que “quando quiseres, está ao teu alcance o uso do teu poder” (12, 18), essa não é a regra a ser utilizada pelo governante da sociedade. No contexto do povo de Israel, a figura de Salomão é o exemplo mais acabado dessa forma de governar, ele que teve um reinado de muita riqueza e prosperidade, o qual foi tomado como uma prefiguração do reino de Deus, que Cristo viria anunciar futuramente. Se o reino de Salomão, que era puramente terrestre, trouxe tantos bens e glórias para os israelitas, muito mais bênçãos e riquezas trará o novo Reino anunciado por Cristo.

Particularmente, eu não gosto muito do uso teológico dessa terminologia de “reino”, porque é um estereótipo que transmite uma idéia de riqueza, de ostentação e triunfalismo, não compatível com a imagem que a Igreja de Cristo deve demonstrar. É óbvio que essa terminologia se encontra no evangelho porque essa era a realidade social do tempo de Cristo, mas Ele próprio explicou diversas vezes que o reino d'Ele “não é deste mundo”, detalhe que ficou durante muito tempo esquecido pelas autoridades eclesiásticas e algumas delas, ainda hoje, mantêm essa visão triunfalista. Por essa razão, é sempre necessário referir-se ao “reino” de Deus entre aspas, a fim de caracterizar a autêntica figura que a Igreja deve apresentar. O Papa Francisco tem dado exemplos marcantes dessa nova forma de compreender o “reino”, com suas vestes simples, sua atenção com os mais pobres, andando de ônibus ao invés de carro oficial, dando dessa forma o melhor exemplo de que o “reino” de Deus é de todas as pessoas, das pessoas comuns, retirando aquela barreira e aquele distanciamento que sempre houve entre as autoridades eclesiásticas e os demais cristãos.

A segunda leitura, de Paulo aos Romanos (8, 26-27), parece-me fora do contexto do tema litúrgico. Ao meu ver, a escolha desse trecho não foi feliz para a ocasião, pois o apóstolo Paulo tem outras passagens em que aborda a figura do reino de Deus, como por exemplo, os versículos anteriores (21-25), onde ele diz que toda a criação aguarda ansiosamente a manifestação da liberdade dos filhos de Deus, referindo-se ao reino anunciado por Cristo. Roma, que era o reino mais poderoso da época, tinha inúmeros exemplos de autoridades que não guardavam coerência com aquele projeto de reino que Paulo pregava e do qual foi vítima. Essa forte ingerência do poder político sobre a religião, que se consolidou após a conversão do imperador romano Constantino, foi aos poucos afastando o modelo do reinado de Cristo como um serviço aos irmãos, como Ele por diversas vezes ensinou aos seus discípulos e, de forma lamentável, ao longo do tempo, confundiu-se com um reino político, tomado no sentido literal e humano, levando ao extremo de se atribuir ao Papa a tríplice coroa, que simbolizava o tríplice poder (pastor universal, poder eclesiástico e poder temporal), simbolizando a figura de Cristo como Sacerdote, Profeta e Rei. Essa criação medieval representou o auge da incompatibilidade entre o projeto de Deus e a Igreja que o comandava, havendo ainda hoje muitos católicos saudosistas desses rituais.

No evangelho de Mateus (Mt 13, 24-43), Jesus nos dá três exemplos bem simples e compreensíveis do que seja o “reino de Deus”, através de parábolas. Na primeira metáfora, Ele diz: “O Reino dos Céus é como um homem que semeou boa semente no seu campo. Enquanto todos dormiam, veio seu inimigo, semeou joio no meio do trigo, e foi embora.” A dicotomia trigo-joio tem sido muito invocada na tradição para indicar a distinção entre cristãos e não cristãos. Observemos que, no texto da parábola, quem semeou o joio no meio do trigo foi o “inimigo”. Mais adiante no texto (13, 36), os discípulos pedem a Jesus que explique a parábola para eles, então Jesus diz que o “inimigo” é o “diabo”. Mas, vamos com calma aqui. O diabo não é o demônio, o capeta, o satanás. Na literatura ocidental, essas palavras carregam um significado terrível e são consideradas sinônimas. Mas, como disse, vamos com calma aqui, façamos antes uma análise etimológica. No texto grego, temos “ó speíras autá estin ó diábolos”, frase que São Jerônimo traduziu por “inimicus autem est diabolus” (o inimigo é o diabo). Porém, o vocábulo grego “diabolos” tem um significado bem diferente do diabo português. A palavra vem do verbo grego “diaballô”, que significa, espalhar (sementes e também boatos), caluniar, difamar. Então, o diábolos grego é o invejoso, o caluniador, o maledicente, o fofoqueiro. Não nos deixemos levar pelo símbolo cultural que a figura diabólica representa, porque assim nos desviaremos do autêntico significado da mensagem de Cristo. E, com isso, devemos também vigiarmo-nos continuamente, para não sermos “diabólicos” nas nossas relações humanas.

Na segunda metáfora, Jesus diz: “O Reino dos Céus é também como como uma semente de mostarda, que um homem pega e semeia no seu campo .” Embora se trate de uma semente bem pequenina, porém, ao germinar, tornar-se-á uma árvore frondosa, onde os pássaros virão pousar. O “reino” tem essa característica da transformação. Por menor que seja a nossa ação em favor do “reino”, o resultado será de grandes proporções, porque nós apenas plantamos, mas quem produz os efeitos é o Espírito. Terceira metáfora: “O Reino dos Céus é como o fermento que uma mulher pega e mistura com três porções de farinha, até que tudo fique fermentado.” A imagem do fermento é também muito significativa, porque ao se misturar com a massa, o fermento não mais se distingue dela, no entanto, os seus efeitos são logo percebidos, através do efeito da levedura, que faz multiplicar o seu volume. E completa o evangelista, dizendo que Jesus sempre falava ao povo usando parábolas, o seu modelo pedagógico preferido. De fato, os termos de comparação do “reino” com uma semente, uma planta, uma massa levedada, eram todas imagens familiares ao público ouvinte. Dizia o Padre Luiz Uchoa, meu professor de Bíblia, que essas parábolas não foram pronunciadas por Cristo numa mesma ocasião, assim em sequência conforme está escrito no evangelho de Mateus, mas foram proferidas e repetidas ao longo de diversas alocuções, de modo que ficaram guardadas na memória do povo. Só muito posteriormente, essas metáforas usadas por Cristo em ocasiões diversas foram recolhidas e colecionadas num mesmo escrito. Isso explica o motivo pelo qual os objetos de comparação muitas vezes não são similares. Por certo, de acordo com o momento e conforme a qualidade dos ouvintes, Jesus utilizava uns ou outros modelos, de maneira a causar sempre o melhor impacto. Foi isso que o tornou um pregador famoso, a quem todas as pessoas acorriam para ouvir.

Provavelmente, em momento posterior, de forma reservada, Jesus explicava mais detalhadamente para os discípulos, pois sabe-se que eles não eram pessoas de grande cultura e, assim como os ouvintes em geral, muitas vezes não alcançavam o significado daqueles discursos. No evangelho em comento, Jesus explica a parábola do trigo-joio apenas, levando-nos a supor que o evangelista colocou a explicação ali apenas como um exemplo. Num sentido trans-histórico, em cada época os leitores podem servir-se da pedagogia de Cristo para referenciar seus ensinamentos aos fatos cotidianos e é isso que faz com que o texto do evangelho seja sempre atual.

Que o divino Mestre nos conceda a sabedoria salomônica para sempre sabermos praticar a justiça com humanidade.

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