segunda-feira, 19 de fevereiro de 2018

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DA QUARESMA - 18.02.2018

COMENTÁRIO LITURGICO – 1º DOMINGO DA QUARESMA – O NÚMERO 40 – 18.02.2018

Caros Leitores,

A liturgia deste 1º domingo da quaresma destaca, no evangelho de Marcos, a simbologia do número 40, que ocorre algumas vezes nas Escrituras, associando o tempo em que Jesus jejuou, preparando-se para a sua missão evangelizadora ao tempo quaresmal. Na carta de Pedro, há outra menção ao símbolo quadragesimal com a analogia entre a arca de Noé e o batismo, enquanto instrumentos pelos quais Deus realiza a nossa salvação. Os escritores sagrados do Antigo Testamento gostam de fazer alusões numerológicas, o que denota ser uma característica da cultura hebraica. Nos casos citados acima, a simbologia do número 40 põe em tela os dias que Jesus passou no deserto a jejuar, enquanto se preparava para a sua missão, e a duração do dilúvio que, segundo a narrativa bíblica, também foi de 40 dias e 40 noites.

Etimologicamente, o nome 'quaresma' é proveniente do termo latino 'quadragesima', que significa o mesmo que a palavra portuguesa quadragésimo(a), numeral ordinal correspondente a 40. Portanto, a quaresma está também incluída na simbologia do 40. Dentro do cenário bíblico, o número 40 aparece sempre antes da ocorrência de algo grandioso. O povo de Deus perambulou 40 anos no deserto até chegar à terra prometida. Moisés passou 40 dias/noites no monte Sinal até receber de Deus as tábuas da lei. No dilúvio, choveu sem parar durante 40 dias, até chegar a bonança. Jonas concedeu aos ninivitas o tempo de 40 dias para se arrependerem e fazerem penitência. Jesus jejuou durante 40 dias no deserto. Após a ressurreição, Jesus ainda passou 40 dias aparecendo aos apóstolos, preparando a vinda do Espírito Santo, até ir definitivamente para o Pai. São várias as 'quaresmas' na Bíblia, no entanto, é mais comum a gente lembrar somente do tempo em que passamos preparando a Páscoa do Senhor a cada ano.

É neste contexto da simbologia do número 40 que devemos compreender o tempo de jejum de Jesus no deserto. Nem sempre os 40 dias indicados nas leituras bíblicas indicam 40 dias do calendário, porque aqui tratamos de uma mensagem simbólica, significando que o número 40 sempre indica que um grande acontecimento está sendo preparado. O tempo quaresmal nos prepara para a grande solenidade da Páscoa, a maior festa da fé cristã.

Na primeira leitura (Gn 9, 8), lemos o testemunho do povo hebreu acerca da aliança de Deus com a nova humanidade, representada por Noé e por aqueles que com ele foram salvos do dilúvio, destacando a promessa de que essa catástrofe nunca mais ocorreria. Esta mesma idéia foi repetida por Pedro na sua primeira carta (1Pd 3, 18), dirigida aos judeus da diáspora, na qual o Apóstolo lembra aos seus compatriotas o episódio do dilúvio e a figura de Noé, associando a imagem da arca salvadora com o sacramento do batismo da salvação. “Nesta arca, umas poucas pessoas - oito -foram salvas por meio da água. A arca corresponde ao batismo, que hoje é a vossa salvação.” Há uma nítida diferença de estilo entre a carta de Pedro e as cartas de Paulo, pois Pedro era pessoa de poucas letras e suas lições são mais simples, enquanto Paulo tinha formação na escola do judaísmo. Diz Pedro que Jesus foi pregar até para os “espíritos na prisão”, referindo-se àqueles que blasfemaram na época de Noé e por isso não entraram para a arca, perecendo no dilúvio. A prisão, neste caso, seria o mundo das profundezas, a região dos mortos, aonde Jesus teria ido após a sua ressurreição. De acordo com a tradição, nas profundezas (nos infernos) estariam as almas dos fiéis, aguardando a vinda do Salvador. Pois bem, mesmo sendo pessoas que haviam zombado de Noé e blasfemado contra Deus, ainda assim o batismo da salvação trazido por Cristo se destina também a estes.

A leitura do evangelho de de Marcos (1, 12-15), num texto muito sucinto, relata que, após ter sido batizado por João Batista, o Espírito conduziu Jesus ao deserto, onde ele jejuou durante 40 dias e ali foi tentado por Satanás. Essas tentações de Jesus nós devemos entender num sentido também alegórico, sem a presença daquela terrível imagem de Satanás, construída pelos artistas medievais. As tentações pelas quais Cristo passou diziam respeito ao embate que se transcorria no seu íntimo em relação às suas duas naturezas divina e humana. Com efeito, enquanto Filho de Deus, ele era “tentado” a resolver as dificuldades que iria enfrentar de uma forma miraculosa, mas ele deveria evitar isso, ele deveria se comportar como uma pessoa humana comum, ou seja, devia prevalecer a natureza humana. Portanto, essas “tentações” seriam esse conflito interior que ele sentia, na relação entre as naturezas divina e humana, fato que ele devia ter sempre em mente, para não se deixar desviar de sua missão.

Então, quais foram mesmo as grandes 'tentações' de Jesus? 1. Transforma essas pedras em pão... tentação do poder; 2. Eu te darei todos os reinos... tentação da riqueza; 3. Joga-te daqui para baixo... tentação do orgulho/vaidade. Meus amigos, Jesus Cristo tinha consciência da sua natureza divina e também tinha conhecimento de tudo o que ele iria enfrentar na sua missão de pregar a boa nova. Então, durante o jejum, ele fez uma preparação psicológica para viver como homem comum, pensar como homem comum, agir como homem comum, deixando em segundo plano a sua condição divina. Ele sabia que iria passar fome algumas vezes. Então, seria muito mais cômodo para ele fazer um 'milagrezinho' e transformar um pedaço de pedra ou de pau numa iguaria deliciosa. Mas para ser um homem comum, ele não podia jamais agir assim. Ou seja, ele só poderia utilizar o poder que a sua condição divina lhe dava quando fosse necessário, de acordo com o desígnio do Pai, para corroborar a sua pregação e demonstrar a glória do Pai. Esse foi o grande desafio para Jesus em todos os momentos, até aquele momento crucial em que ele pede para “deixar passar aquele cálice” sem que ele bebesse, no entanto, que prevalecesse a vontade do Pai.

Este mesmo raciocínio vale para as outras ocasiões tentadoras. Estando diante daquela multidão ávida por presenciar um feito extraordinário, Jesus não poderia 'cair na tentação' de demonstrar sua condição divina apenas para ser aplaudido por aquela gente, por vaidade ou orgulho próprio. Ao contrário, quando ele fazia algum milagre, usava uma forma bastante discreta e sempre destacando a fé do beneficiado. Os fariseus estavam o tempo todo a provocá-lo para ele provar que era filho de Deus. Jesus nunca fazia milagres nessas ocasiões, muito menos para provar nada perante os fariseus, porque estes deviam acreditar na sua mensagem pelo conteúdo dela, não por uma demonstração de poder.

Portanto, Jesus passou 40 dias a jejuar e meditar no deserto, antes de começar suas pregações, para se conscientizar sempre mais da necessidade que ele tinha de ser um homem igual aos outros, no jeito de morar, de vestir, de andar, de se alimentar, de sofrer, de se alegrar, de falar, de demonstrar seus sentimentos, etc, tudo como um ser humano comum. Ele sabia desde o princípio e mais do que qualquer pessoa o final que o aguardava, os padecimentos atrozes que teria de suportar, para cumprir a promessa do Pai, para a nossa salvação. No seu jejum no deserto, tudo isso deve ter passado pela mente de Jesus e para tudo isso ele estava se preparando, porque iria iniciar a sua atividade primordial, aquela para qual Ele tinha vindo ao mundo.

Meus amigos, se até Jesus que era divino e humano passou por “tentações”, quanto mais nós, que somos pessoas limitadas e imperfeitas. Com base nessas narrativas, a tradição ensinava que Satanas nos tenta, induzindo-nos ao pecado. Contudo, podemos perceber que a fonte das nossas tentações são as nossas fraquezas, a nossa imperfeição, o nosso orgulho, a nossa vaidade e, principalmente, a nossa sede de poder, de ter sempre mais, de querer sempre mais. Jesus venceu as tentações através do jejum e da oração e isso é uma indicação também para nós. Os conceitos fundamentais da nossa quaresma foram explanados na liturgia da quarta feira de cinzas: a oração, o jejum e a esmola. A oração e o jejum dizem respeito a atitudes interiores nossas; a esmola diz respeito à nossa ação concreta em benefício dos irmãos carentes. A salvação não é alcançada apenas com atitudes internas de conversão, mas esta deve ser acompanhada de gestos concretos de solidariedade e de serviço. Tal é o objetivo da Campanha da Fraternidade, que todos os anos é realizada neste tempo.

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