domingo, 17 de fevereiro de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 6º DOMINGO COMUM - 17.02.2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 6º DOMINGO COMUM – BEM-AVENTURADOS – 17.02.2019

Neste sexto domingo do tempo comum, as leituras litúrgicas nos convidam a refletir sobre os efeitos valorativos da confiança que sempre devemos ter no Senhor, qual seja, a verdadeira felicidade. O profeta Jeremias compara a atitude de quem confia em Deus a uma planta cujas raízes mantêm-se em contato com a água e, por isso, não teme a chegada do calor. No evangelho, Jesus chama a estes de bem-aventurados, no seu famoso e carismático “sermão da montanha”, no qual ele inverte a ordem daquilo que o “mundo” considera felicidade e mostra que ser feliz, isto é, ser bem-aventurado é ser santo. Ser fiel nas coisas simples, ser solidário em todas as ocasiões, ser amável e respeitoso só contribui para a melhora geral da vida na sociedade. Sem dúvida, é disso que todos nós mais precisamos, na vida urbana dos nossos dias.


Na leitura retirada do livro do profeta Jeremias (17, 5-8), vemos uma comparação entre a atitude de quem confia nos homens, de um lado, e quem confia no Senhor, de outro. Confiar “na força da carne humana”, como fiz o Profeta, quer dizer encantar-se com as aparências da sociedade e com as suas pompas ilusórias, representadas no poder, na riqueza, no prestígio, na dissimulação dos bajuladores, esquecendo que a verdadeira fortaleza vem da fé e das garantias proporcionadas a todos pelo cumprimento da lei de Deus. Na época do Profeta, ele se referia especificamente às atitudes levianas do rei de Judá, Ezequias, que fez acordos maliciosos com outros reinos vizinhos, com receio das ameaças de povos inimigos, em detrimento da obediência à lei de Moisés e expondo o povo às influências do paganismo e dos deuses estrangeiros e, consequentemente, à idolatria. Em vez de buscar a confiança no Senhor dos exércitos, o rei preferiu abrigar-se à sombra dos soberanos humanos e a consequência para o povo foi desastrosa. Pouco tempo depois, o reino de Judá foi invadido e derrotado pelos assírios, sendo os seus habitantes arrastados cativos para Babilônia. O profeta Jeremias, por muito pouco, escapou dessa mesma sorte, tendo sido protegido por amigos, que o levaram para o Egito, onde refugiou-se. Contra a sua vontade, é bom que se diga, porque o desejo dele era acompanhar os cativos.


Na segunda leitura, retirada da carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 15, 12-20), o apóstolo recorda aos cristãos daquela cidade que a verdadeira salvação está na fé no evangelho de Jesus Cristo, conforme a pregação que ele fizera ali. ‘Lembro a vocês’, diz ele no início deste capítulo 15, ‘que o evangelho que eu preguei e no qual acreditaram, nele se encontra a verdadeira salvação, e não em outras doutrinas que falsos pregadores trouxeram até vocês’. Paulo encontrava-se em Éfeso, na ocasião, e soube através de outros cristãos que em Corinto voltavam a circular doutrinas gregas antigas, pondo em dúvida a fé na eucaristia e na ressurreição dos mortos, por isso o Apóstolo escreveu-lhes esta carta, rememorando os ensinamentos que ele havia ali partilhado, a fim de conduzir a comunidade à verdadeira fé cristã. O trecho da leitura deste domingo aborda apenas o tema da ressurreição dos mortos, mas nos capítulos anteriores Paulo trata dos outros temas, inclusive o conhecido “hino à caridade” (cap 13), no qual ele tematiza, de modo muito inspirado, as características fundamentais do amor cristão. A inclusão desse trecho no cenário litúrgico deste domingo se coloca na advertência feita pelo Apóstolo para que os cristãos de Corinto não se deixem enganar pelos falsos pregadores e não busquem a felicidade nos bens terrenos, esquecendo as verdades cristãs, dentre estas, a crença na ressurreição. Daí dizer ele, no versículo 19: ‘Se é para esta vida que pusemos a nossa esperança em Cristo, então nós somos os humanos mais dignos de compaixão’, ou seja, quem pensa assim está totalmente equivocado. Se os mortos não ressuscitam, então, Cristo também não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, coitados de nós que acreditamos nele. Mas não, completa ele, Cristo ressuscitou, pois assim como entrou a morte no mundo por um homem, também por um homem veio para nós a ressurreição. Então, a fé na mensagem cristã é a fonte da verdadeira felicidade, e não as promessas ilusórias dos embusteiros. Por ser uma realidade de difícil compreensão, sobretudo naquele contexto da sociedade grega, marcada pelo materialismo e pelo imanentismo próprios daquela cultura, Paulo fez um raciocínio bastante didático, no capítulo 13, 12 dessa mesma carta, quando diz que, apesar dessa dificuldade, não é impossível crer, porque agora vemos como por espelho, em enigma, mas depois veremos face a face: “Videmus enim nunc per speculum in aenigmate, tunc autem facie ad faciem”.


A temática sobre a felicidade que acompanha aqueles que acreditam e colocam em suas vidas a mensagem cristã está representada em sua melhor forma no famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama a todos de bem-aventurados. Dizer que somos bem-aventurados é o mesmo que dizer que somos felizes. Em latim, a palavra bem-aventurados se diz 'beati' (plural de beatus) e esta é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tanto assim que algumas traduções do evangelho usam esta palavra nos textos: felizes os pobres de espírito, felizes os mansos, felizes os pacíficos, etc. Curiosamente, Cristo chama de bem-aventurados todos aqueles que, pelo status social, seriam pessoas desventuradas. O cap. 3 do Livro da Sabedoria, identifica os conceitos de “justo”, “feliz” e “santo”,quando diz: “Depois de terem sofrido um pouco, receberão grandes bens, pois Deus os provou e achou dignos de si.” (Sb 3, 5). Aqui se encaixa o conceito de “felizes os que sofrem, porque serão consolados”. A felicidade, a santidade, a bem-aventurança e a justiça estão sempre de mãos dadas. Ser santo não é isolar-se de todos e passar o dia rezando e meditando, sem viver na comunidade. Talvez vivendo sozinho fosse até mais fácil para o ser humano alcançar a santidade. Mas o grande desafio da santidadeé ser capaz de aturar as maledicências, as incompreensões, a má vontade de algumas pessoas com quem convivemos e ainda assim mantermos a serenidade, a alegria e o bom humor. Fazendo assim, nem é necessário desfiar as contas do rosário seguidas vezes nem castigar os joelhos no chão em preces contínuas, para alcançar o patamar da autêntica santidade.


O texto do evangelista Lucas sobre as bem-aventuranças é mais sintético do que o de Mateus, isso se explica porque um e outro se dirigiam a leitores de culturas diferentes. Lucas dirigia-se à comunidade grega e enfatiza os aspectos da pobreza, da fome, da perseguição, das injustiças sociais que fazem chorar as pessoas humildes. Em seguida, ironiza com os ricos, que possuem muitos bens, vivem na fartura, têm legiões de bajuladores, porque depois a situação irá inverter-se. Se observarmos bem, o contexto social sugerido pela leitura de Lucas referindo-se à sociedade grega daquele tempo não é muito diferente do mundo de hoje, no qual a enorme dicotomia entre ricos e pobres conduz àquela mesma estratificação: de um lado, pessoas muito ricas, que vivem na abundância e até zombam da miséria alheia, aproveitando-se dela em seu benefício. De outro lado, pessoas extremamente carentes, as quais, em grande número, se desviam para a criminalidade e a violência, como uma medida imediatista e ilusória de tentar superar a sua condição de inferioridade. Mas aqui pode ser colocada a advertência do profeta Jeremias: confiar na força da carne humana é igual a plantar sementes no deserto.


O sermão da montanha, como é popularmente conhecido esse trecho do evangelho, é uma síntese de diferentes ensinamentos e propostas, que Jesus fazia aos seus seguidores. Não necessariamente ele teria dito todas essas “bem-aventuranças” de uma vez só, num local específico, sendo mais provável que os escritores sagrados tenham coletado e reunido num mesmo texto esses, que podem ser considerados como o resumo geral e grandioso de toda a pregação de Jesus em forma de aforismos, concentrando em poucas palavras os temas principais de sua mensagem da salvação. Também podemos imaginar que esses ensinamentos eram transmitidos por Jesus para um grupo de seguidores mais próximos, incluindo os doze, aqueles que lhe eram mais fiéis. Muito embora a expressão “sermão da montanha” sugira que havia uma grande multidão de ouvintes, sabe-se que, nessas ocasiões, Jesus preferia proferir sua mensagem de forma de parábolas, utilizando-se de temas e situações comuns na vida daquelas pessoas. Essa forma mais refinada e concentrada de transmitir sua doutrina em temas deve ter sido adotada para um grupo menor, de pessoas mais comprometidas e fiéis, aos quais ele podia falar de um modo mais direto e contendo uma maior quantidade de exigências. Trazendo para o nosso contexto, o “sermão da montanha” se dirige exatamente a nós, cristãos do mundo de hoje, lembrando-nos dos nossos compromissos decorrentes de nossa adesão à fé cristã pelo batismo. Podemos dizer que hoje nós temos melhor condição de entender as “exigências” da fé cristã do que os doze apóstolos, que ouviram diretamente de Jesus essas palavras. Aqui está o nosso perene desafio: pô-las em prática.

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sábado, 9 de fevereiro de 2019

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO COMUM - 10.02.2019


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO COMUM – A NOSSA VOCAÇÃO – 10.02.2019



Caros Confrades,



Na liturgia deste 5º domingo comum, as leituras mostram três formas diferentes, pelas quais o chamado (vocação) divino foi dirigido a três personagens importantes na história da salvação: o profeta Isaías e os apóstolos Pedro e Paulo. Esses exemplos nos levam a refletir sobre a nossa própria vocação, cada um de acordo com os seus talentos, de modo que possamos dizer, como o profeta Isaías, diante do apelo do Senhor: “aqui estou, envia-me”.



Na primeira leitura, temos assim o relato de Isaías narrando sobre a sua vocação profética (6, 1), onde ele diz que foi no ano da morte do rei Ozias (740 a.C.) que ele recebeu a missão de profetizar. Diz ele que viu o Senhor dos exércitos sentado no trono, rodeado de serafins, que o adoravam dizendo “santo, santo, santo” e ficou com medo, considerando-se indigno de tamanha distinção, porque era apenas um pecador. Caiu por terra e tremeu, porque achava que ali iria morrer, pois de acordo com a tradição hebraica, ninguém tinha visto a Deus e depois continuado vivo. Então Isaías achou que era o momento de sua morte. Foi quando um dos serafins tirou uma brasa do altar, aproximou-se dele e com ela tocou a boca de Isaías, purificando-lhe os lábios para que ele pudesse falar em nome de Javé. Após isso, ele disse ao Senhor: estou pronto, envia-me. Este é, sucintamente, o relato de Isaías e daí podemos fazer algumas considerações.



Em primeiro lugar, destaco o fato de que foi Isaías o profeta que mais se aproximou da realidade do futuro Messias, inclusive sobre o sacrifício da cruz a que ele teria de se submeter, tanto assim que o texto de Isaías é o mais citado por Jesus nas suas pregações, inclusive no domingo passado lemos aquele texto em que Jesus diz expressamente que “hoje se cumpriu a palavra do profeta”. Mas Isaías, por causa do contexto histórico e político do reino de Judá, onde ele vivia, sempre às voltas com guerras e ameaças por parte dos inimigos, tinha a visão de Javeh como um chefe guerreiro, o Senhor dos exércitos, de modo que as previsões que ele fez do Messias eram também de um destemido guerreiro, que viria expulsar os inimigos. Não é de admirar, portanto, que o povo hebreu tenha resistido em reconhecer a messianidade de Jesus, porque ele não veio na condição de herói, libertador político, conforme havia sido previsto pelos profetas. Quando Jesus veio pregar um reino do amor e da mansidão, eles não viram nele aquela figura da sua expectativa histórica, que se formara ao longo de tantos séculos, como de um Messias guerreiro e lutador.



Em segundo lugar, esse trecho de Isaías contém aquela invocação que foi colocada no cânon da missa como parte fixa: o santo, santo, santo (Is 6, 3). que era o canto entoado pelos serafins que ladeavam o trono de Javeh. De princípio, convém explicar algo sob o aspecto gramatical, que não sei se todos sabem. Na língua hebraica, não há uma mudança morfológica na palavra, quando ela se põe no superlativo. Por exemplo, em português, o superlativo de “santo” é “santíssimo”, mas em hebraico, o superlativo da palavra se expressa com a repetição dessa palavra por três vezes. Desse modo, 'santo, santo, santo' (em hebraico: kadosh, kadosh, kadosh) quer dizer: santíssimo. Outro detalhe é que Isaías escreve: Senhor Deus Sabaoth, palavra hebraica que significa exércitos e que não foi traduzida nem para o grego nem para o latim, mantendo-se a grafia original nesses dois idiomas. Quem se recorda da missa em latim, lembra disso: Sanctus, sanctus, sanctus, Dominus Deus Sabaoth. Assim era também em português, mas na reforma litúrgica, a CNBB preferiu alterar a denominação “Deus dos exércitos” por “Deus do universo”, como está hoje no texto oficial.



Outro detalhe interessante é que o serafim apanhou uma brasa do altar com uma tenaz, espécie de alicate, (para não se queimar) e com ela tocou os lábios de Isaías (que não se queimou), ficando com isso purificado para falar em nome de Javeh. É interessante notar essa figura do fogo como símbolo da purificação, que tem presença constante nas imagens bíblicas. A brasa foi retirada do fogo que fora aceso para o sacrifício das vítimas que eram oferecidas ao Senhor. Ora, esse detalhe insinua que Isaías teve esta visão enquanto estava no templo. Isaías teve a árdua missão de denunciar os pecados do povo de Israel, desde os simples fiéis até os governantes, fato que ele fez com muita coragem, mesmo sabendo dos riscos que corria. Não é fato histórico confirmado, mas há uma tradição que afirma que Isaías morreu ao ter seu corpo serrado no meio, por ordem do rei Manassés, que ficou ofendido com as admoestações do profeta.



Na segunda leitura do domingo, o apóstolo Paulo conta, de sua própria pena, a sua vocação, história que todos conhecemos. Mas ele faz alguns complementos interessantes sobre as aparições de Cristo após sua ressurreição, narrativas que estão em certa divergência com os evangelhos. Por exemplo: diz que Jesus apareceu primeiro a Cefas (Pedro) e depois aos doze (2Cor 15, 5); esta aparição a Pedro isoladamente não consta nos evangelhos. Diz depois: mais tarde, apareceu a mais de 500 irmãos de uma vez, depois apareceu a Tiago e depois aos apóstolos todos juntos. Pelas narrativas evangélicas, essas aparições a 500 irmãos e a Tiago também não estão registradas, contudo, não se pode dizer que Paulo esteja faltando com a verdade, pois muitas tradições orais que eram conhecidas em algumas comunidades não eram conhecidas em outras e nem todas foram escritas.



Por fim, em 2Cor 15, 8, Paulo diz que Jesus apareceu também a ele (“como um abortivo”), afirmando não ser merecedor de tamanha honra. Nesse ponto, Paulo está fazendo um discurso de humildade, arrependido do tempo em que foi perseguidor da Igreja. Mas logo depois (vers. 10), ele faz um autoelogio, ao dizer: tenho trabalhado mais do que os outros apóstolos. Talvez como uma espécie de compensação, por ter sido perseguidor, Paulo tenha se dedicado muito mais do que os outros, em viagens e missões por todo o mundo grego, levando o cristianismo até Roma, que era a grande capital do mundo de então. Foi Paulo quem levou Pedro para presidir a comunidade de Roma, para dedicar a ele a honra de ser o líder cristão da cidade mais importante, fato que ainda hoje tem grande repercussão, na pessoa do Papa, bispo de Roma. Aliás, na minha convicção pessoal, a vocação de Paulo é uma das maiores provas da divindade de Cristo, porque se dependesse dos doze, dificilmente o cristianismo teria alcançado a expansão que atingiu, em termos de locais habitados naquela época. Com sua formação intelectual e sua pedagogia arrojada, pode afirmar-se que Paulo foi o primeiro teólogo, igualando-se a João em importância na elaboração doutrinária.



O evangelho de Lucas (5, 1-11) expõe a vocação dos primeiros apóstolos: Pedro e seu irmão André, que eram sócios de Tiago e João, filhos de Zebedeu, todos pescadores. Primeiro, Jesus entrou na barca de Pedro e pediu que se afastasse um pouco da margem do Mar da Galileia (ou Lago de Genesaré), para que pudesse pregar para a multidão que estava na praia. Depois, Jesus ordena que Pedro adentre para águas mais profundas, a fim de pescar. Pedro estava meio desanimado, porque na noite anterior, a pescaria tinha sido um fracasso. Foi então que se deu a pesca milagrosa: eram tantos peixes que o peso deles rompia as redes e foi preciso chamar a outra barca (de Tiago e João), para que o auxiliassem. Foi quando Jesus convidou Pedro para ser pescador de gente, estendendo o mesmo convite aos demais.



Pois bem, meus amigos. O que vemos de comum nesses três episódios? É o fato de que Deus se serve de fatos da existência das pessoas para chamá-los a colaborar na Sua missão. Na história de nossas vidas, a vocação cristã nos põe diante desse desafio de identificar e cumprir a nossa missão na sociedade onde vivemos. Assim como Isaías, Pedro, Paulo e todos os apóstolos, se especularmos sobre o nosso passado, iremos encontrar diversos fatos pelos quais Jesus nos chama para dar testemunho dele, sendo essa a nossa missão. Missão é um conceito que se identifica com a nossa vida social, na qual somos chamados a viver de acordo com o evangelho, testemunhando a nossa fé perante a comunidade. Não é necessário ficar o dia todo com o terço na mão nem com a Bíblia embaixo do braço para simbolizar que estamos em missão. Quando cumprimos nossas tarefas com honestidade, convicção, amor ao próximo, alegria, integridade, estamos dando um testemunho muito mais eloquente e eficaz do que se estivéssemos só balbuciando orações em particular. Portanto, nós não precisamos sair da nossa rotina para colocar em prática a nossa vocação, para realizar na nossa vida o que Deus deseja e espera de nós, estejamos nós só na beira da praia ou em águas mais profundas. Em qualquer lugar em que nos encontremos, a missão está ao nosso alcance.


COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO COMUM - 03.02.2019


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO COMUM – 03.02.2019 – A CARIDADE

Caros amigos,

Neste quarto domingo comum, a liturgia traz para nossa reflexão o hino da caridade, uma inspirada página do apóstolo Paulo a Coríntios (1Cor 12,31), interpretando a lição de Jesus sobre o maior mandamento da Lei. Nas outras leituras, o tema em destaque é a vocação para a profecia: mesmo antes de nascer, o profeta já está predestinado a isso. Foi o que testemunhou Jeremias. De outra parte, Jesus, aquele 'profeta' que falava em nome próprio, não obteve o reconhecimento dos seus concidadãos.

Num antológico texto, que até já foi transformado em música popular, Paulo foi de uma felicidade muito grande, ao tecer louvores ao amor, à caridade, aquela ação humana que foi elevada pela palavra de Cristo como o maior dos mandamentos. Convém, de início, fazer um breve esclarecimento linguístico, porque amor e caridade não são, em português, palavras sinônimas e, para melhor entendimento, será necessário fazer uma análise dos termos originais. No texto grego, Paulo usa o vocábulo “agape”, que é uma das palavras traduzidas por “amor”, mas como palavra amor é polissêmica em português, para evitar uma compreensão equivocada do seu sentido, costuma-se traduzir por 'caridade'. Para que fique bem entendido o sentido da palavra “caridade” aqui nesse contexto, permitam-me informá-los de que, na língua grega, há três palavras diferentes, que podem ser traduzidas por “amor” em português. Uma delas é a palavra “eros” para significar o amor carnal, aquele voltado para a satisfação dos sentidos corporais, quase sempre numa perspectiva egoista, individualista e interesseira. Outra é a palavra “filos”, que tem o sentido de amizade, gostar de algo, tem um significado mais espiritual, como por exemplo é conhecida a palavra “filos+sofia” (amor à sabedoria) ou quando se fala em ações de filantropia (amor ao próximo). Por sua vez, a palavra “ágape” é utilizada para significar o amor doação, desinteressado, amor que quer o bem do outro e não o seu próprio, daquele que é capaz de tudo para fazer feliz o seu semelhante. É o amor compartilhado, que se perfaz na entrega de si e que se plenifica com a felicidade do(a) amado(a). Como podem ver, não há uma palavra em português que carregue toda esse conjunto de significados, nem mesmo a palavra 'caridade' tem essa conotação plena. No entanto, é o vocábulo que mais se aproxima do significado da palavra grega “agape”, embora na nossa língua a palavra 'caridade' seja também variadamente polissêmica. No texto de Coríntios, portanto, Paulo usa a palavra “ágape”, que é traduzida por amor ou caridade.

Pois bem, no famoso 'hino à caridade', Paulo adverte para a verdadeira expressão dessa forma de amor, que não se limita a meras atitudes externas, mas deve unir o interior com o exterior, para alcançar o seu pleno significado. Se eu falasse todas as línguas, isto é, se eu fosse um exímio comunicador, mas sem a caridade, seria igual a uma sineta que toca. Se eu tivesse toda ciência e toda fé, ou seja, se eu fosse um sábio extraordinário e um crente ardoroso, mas sem a caridade eu nada seria. Se eu me desfizesse de todos os meus bens a serviço dos pobres, ou seja, se eu praticasse a filantropia para ser elogiado pelas pessoas, mas se não tiver a caridade, de nada isso serve. E por aí segue. Meus amigos, que extraordinário desafio Paulo põe diante de nós. De nada valem a nossa devoção, nossos jejuns, nossas obras de misericórdia, nossa pregação, nossas leituras da Bíblia, nossos grupos de oração, nossas participações na missa e nos sacramentos, nosso dízimo pago para o culto divino, nossos trabalhos pastorais, etc, se tudo isso for uma mera atitude exterior, uma conduta destinada a receber elogios ou a lograr reconhecimento social. Se as nossas práticas religiosas não vierem de uma convicção interior, de um ato original de entrega plena e total do nosso próprio ser a Deus, de um compromisso firme e permanente de seguir o ensinamento de Cristo, se tudo o que fizermos como vivência religiosa tiver como motivação só o cumprimento do dever, a tradição familiar ou social, se for pelo peso na consciência ao ver um irmão ou irmã necessitado(a), ou pior ainda, se for para exibir-se aos outros, estaremos sendo o que Paulo chama de 'címbalo que tine', ou seja, uma sineta que só faz barulho, um corpo sem espírito, uma pessoa sem alma, que não funciona por si, mas manipulado por uma força externa.

E passa ele a discorrer sobre as qualidades do amor-ágape: “A caridade é paciente, é benigna; não é invejosa, não é vaidosa, não se ensoberbece; não faz nada de inconveniente, não é interesseira, não se encoleriza, não guarda rancor; não se alegra com a iniqüidade, mas se regozija com a verdade. Suporta tudo, crê tudo, espera tudo, desculpa tudo. ” (1Cor 13, 4-7) Se nós observamos bem, Paulo está descrevendo a personalidade de Jesus Cristo, está colocando em conceitos aquilo que Jesus praticou em toda a sua vida e nos deixou como exemplo. Ele é a 'caridade' (amor-ágape) em pessoa, o modelo acabado e perfeito desta virtude. Não era à toa que entoávamos com frequência aquela jaculatória, que todos ainda devem saber de cor: “Deus charitas est et qui manet in charitate in Deo manet et Deus in eo”. A caridade é o próprio Deus. Daí porque, Paulo conclui: a caridade nunca acabará. Todas as profecias, todas as palavras, promessas e virtudes acabarão, a esperança desaparecerá e a própria fé se extinguirá um dia, mas a caridade permanecerá para sempre. Fica fácil de compreender o porquê disso: a caridade é o próprio Deus e estando na caridade, estamos nele.

Uma das formas de viver esse amor-ágape é a que encontramos na atividade da profecia. O profeta é uma pessoa que age motivada exclusivamente pelo amor, porque ele não profetiza para si, para o bem próprio, mas para o bem dos outros. O profeta não faz isso para se promover ou para se exibir, mas até com o sacrifício da própria vida, ele fala o que lhe vem da alma, expõe o que Deus lhe inspira. A palavra “profeta”, na sua forma original do grego, já contém esse significado. No grego, “prophetés” é uma palavra ligada à raiz do verbo “phêmi”, que significa 'dizer, proclamar'. A palavra 'prophetés' significa 'aquele que fala em nome de alguém', no caso da Bíblia, fala em nome de Javeh. Jeremias declarou que Javeh revelou a ele que, mesmo antes de nascer, ele já estava destinado à profecia. Mas também foi ele o profeta que ousou desafiar Javeh ao dizer: eu não vou mais falar em teu nome, porque todas as vezes em que faço isso, sou ameaçado, sou humilhado, sou expulso, não vou mais fazer isso. Porém, não conseguiu. O próprio Jeremias confessou: eu não consigo ficar calado, há um fogo abrasador dentro de mim que me impele a profetizar, mesmo que eu não queira. Foi aí que Javeh o tranquilizou: “ põe a roupa e o cinto, levanta e comunica-lhes tudo o que eu mandei dizer … eu te transformarei hoje numa cidade fortificada, numa coluna de ferro, num muro de bronze contra todo o mundo, ” (Jr 1, 18) E Jeremias se enche de coragem e vai cumprir a sua missão, enfrentando todos os riscos decorrentes dela.

A nossa vocação profética também nos coloca diante de desafios semelhantes, por isso, o exemplo de Jeremias é uma motivação para nós. Ai de mim se eu não anunciar o evangelho, disse Paulo parafraseando Jeremias. (1Cor 9, 16) Cada um de nós, no exercício da nossa missão de seguidor de Cristo e de Francisco, deve também sentir dentro de si esse fogo abrasador que não permite que a nossa voz se cale, que não deixa passar uma ocasião para testemunhar a nossa fé, para comunicar aos outros o ensinamento que recebemos de Cristo. Os profetas de outrora falavam em nome de Javeh, nós hoje falamos em nome de Cristo, que é a própria Palavra de Javeh materializada e encarnada, que nos mandou para continuarmos a sua missão, quando chamou os apóstolos e estes criaram as primeiras 'ekklesias' (comunidades), através das quais nós somos hoje chamados ao mesmo apostolado. É por isso que o modelo de vivência da fé religiosa proposto pela teologia do Vaticano II não é mais aquele marcado pela introspecção, pela interioridade, pela fé individualista, atitudes que estavam representadas numa famosa recomendação dos antigos missionários: “salva a tua alma”. Nos dias atuais, a teologia entende que a salvação é um ato coletivo, que a religião deve ser vivida na comunidade e que aquelas práticas religiosas voltadas para a interioridade devem ser transmudadas em atitudes concretas, em ações externas, em práticas solidárias, nas quais se vivencia em comunidade o amor-ágape, do qual o apóstolo Paulo fala na carta aos Coríntios. O lema agora não é mais “salva a tua alma”, mas salva a alma do teu irmão e assim estarás salvando também a tua.

Meus amigos, concluo convidando todos a meditarem sobre a nossa vivência da vocação profética, à qual fomos chamados pelo batismo, fortalecida na vivência da fé comunitária e na partilha caridosa das nossas disponibilidades.