COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO
COMUM – A NOSSA VOCAÇÃO – 10.02.2019
Caros Confrades,
Na liturgia deste 5º domingo comum, as
leituras mostram três formas diferentes, pelas quais o chamado
(vocação) divino foi dirigido a três personagens importantes na
história da salvação: o profeta Isaías e os apóstolos Pedro e
Paulo. Esses exemplos nos levam a refletir sobre a nossa própria
vocação, cada um de acordo com os seus talentos, de modo que
possamos dizer, como o profeta Isaías, diante do apelo do Senhor:
“aqui estou, envia-me”.
Na primeira leitura, temos assim o
relato de Isaías narrando sobre a sua vocação profética (6, 1),
onde ele diz que foi no ano da morte do rei Ozias (740 a.C.) que ele
recebeu a missão de profetizar. Diz ele que viu o Senhor dos
exércitos sentado no trono, rodeado de serafins, que o adoravam
dizendo “santo, santo, santo” e ficou com medo, considerando-se
indigno de tamanha distinção, porque era apenas um pecador. Caiu
por terra e tremeu, porque achava que ali iria morrer, pois de acordo
com a tradição hebraica, ninguém tinha visto a Deus e depois
continuado vivo. Então Isaías achou que era o momento de sua morte.
Foi quando um dos serafins tirou uma brasa do altar, aproximou-se
dele e com ela tocou a boca de Isaías, purificando-lhe os lábios
para que ele pudesse falar em nome de Javé. Após isso, ele disse ao
Senhor: estou pronto, envia-me. Este é, sucintamente, o relato de
Isaías e daí podemos fazer algumas considerações.
Em primeiro lugar, destaco o fato de
que foi Isaías o profeta que mais se aproximou da realidade do
futuro Messias, inclusive sobre o sacrifício da cruz a que ele teria
de se submeter, tanto assim que o texto de Isaías é o mais citado
por Jesus nas suas pregações, inclusive no domingo passado lemos
aquele texto em que Jesus diz expressamente que “hoje se cumpriu a
palavra do profeta”. Mas Isaías, por causa do contexto histórico
e político do reino de Judá, onde ele vivia, sempre às voltas com
guerras e ameaças por parte dos inimigos, tinha a visão de Javeh
como um chefe guerreiro, o Senhor dos exércitos, de modo que as
previsões que ele fez do Messias eram também de um destemido
guerreiro, que viria expulsar os inimigos. Não é de admirar,
portanto, que o povo hebreu tenha resistido em reconhecer a
messianidade de Jesus, porque ele não veio na condição de herói,
libertador político, conforme havia sido previsto pelos profetas.
Quando Jesus veio pregar um reino do amor e da mansidão, eles não
viram nele aquela figura da sua expectativa histórica, que se
formara ao longo de tantos séculos, como de um Messias guerreiro e
lutador.
Em segundo lugar, esse trecho de Isaías
contém aquela invocação que foi colocada no cânon da missa como
parte fixa: o santo, santo, santo (Is 6, 3). que era o canto entoado
pelos serafins que ladeavam o trono de Javeh. De princípio, convém
explicar algo sob o aspecto gramatical, que não sei se todos sabem.
Na língua hebraica, não há uma mudança morfológica na palavra,
quando ela se põe no superlativo. Por exemplo, em português, o
superlativo de “santo” é “santíssimo”, mas em hebraico, o
superlativo da palavra se expressa com a repetição dessa palavra
por três vezes. Desse modo, 'santo, santo, santo' (em hebraico:
kadosh, kadosh, kadosh) quer dizer: santíssimo. Outro detalhe é que
Isaías escreve: Senhor Deus Sabaoth, palavra hebraica que significa
exércitos e que não foi traduzida nem para o grego nem para o
latim, mantendo-se a grafia original nesses dois idiomas. Quem se
recorda da missa em latim, lembra disso: Sanctus, sanctus, sanctus,
Dominus Deus Sabaoth. Assim era também em português, mas na reforma
litúrgica, a CNBB preferiu alterar a denominação “Deus dos
exércitos” por “Deus do universo”, como está hoje no texto
oficial.
Outro detalhe interessante é que o
serafim apanhou uma brasa do altar com uma tenaz, espécie de
alicate, (para não se queimar) e com ela tocou os lábios de Isaías
(que não se queimou), ficando com isso purificado para falar em nome
de Javeh. É interessante notar essa figura do fogo como símbolo da
purificação, que tem presença constante nas imagens bíblicas. A
brasa foi retirada do fogo que fora aceso para o sacrifício das
vítimas que eram oferecidas ao Senhor. Ora, esse detalhe insinua que
Isaías teve esta visão enquanto estava no templo. Isaías teve a
árdua missão de denunciar os pecados do povo de Israel, desde os
simples fiéis até os governantes, fato que ele fez com muita
coragem, mesmo sabendo dos riscos que corria. Não é fato histórico
confirmado, mas há uma tradição que afirma que Isaías morreu ao
ter seu corpo serrado no meio, por ordem do rei Manassés, que ficou
ofendido com as admoestações do profeta.
Na segunda leitura do domingo, o
apóstolo Paulo conta, de sua própria pena, a sua vocação,
história que todos conhecemos. Mas ele faz alguns complementos
interessantes sobre as aparições de Cristo após sua ressurreição,
narrativas que estão em certa divergência com os evangelhos. Por
exemplo: diz que Jesus apareceu primeiro a Cefas (Pedro) e depois aos
doze (2Cor 15, 5); esta aparição a Pedro isoladamente não consta
nos evangelhos. Diz depois: mais tarde, apareceu a mais de 500 irmãos
de uma vez, depois apareceu a Tiago e depois aos apóstolos todos
juntos. Pelas narrativas evangélicas, essas aparições a 500 irmãos
e a Tiago também não estão registradas, contudo, não se pode
dizer que Paulo esteja faltando com a verdade, pois muitas tradições
orais que eram conhecidas em algumas comunidades não eram conhecidas
em outras e nem todas foram escritas.
Por fim, em 2Cor 15, 8, Paulo diz que
Jesus apareceu também a ele (“como um abortivo”), afirmando não
ser merecedor de tamanha honra. Nesse ponto, Paulo está fazendo um
discurso de humildade, arrependido do tempo em que foi perseguidor da
Igreja. Mas logo depois (vers. 10), ele faz um autoelogio, ao dizer:
tenho trabalhado mais do que os outros apóstolos. Talvez como uma
espécie de compensação, por ter sido perseguidor, Paulo tenha se
dedicado muito mais do que os outros, em viagens e missões por todo
o mundo grego, levando o cristianismo até Roma, que era a grande
capital do mundo de então. Foi Paulo quem levou Pedro para presidir
a comunidade de Roma, para dedicar a ele a honra de ser o líder
cristão da cidade mais importante, fato que ainda hoje tem grande
repercussão, na pessoa do Papa, bispo de Roma. Aliás, na minha
convicção pessoal, a vocação de Paulo é uma das maiores provas
da divindade de Cristo, porque se dependesse dos doze, dificilmente o
cristianismo teria alcançado a expansão que atingiu, em termos de
locais habitados naquela época. Com sua formação intelectual e sua
pedagogia arrojada, pode afirmar-se que Paulo foi o primeiro teólogo,
igualando-se a João em importância na elaboração doutrinária.
O evangelho de Lucas (5, 1-11) expõe a
vocação dos primeiros apóstolos: Pedro e seu irmão André, que
eram sócios de Tiago e João, filhos de Zebedeu, todos pescadores.
Primeiro, Jesus entrou na barca de Pedro e pediu que se afastasse um
pouco da margem do Mar da Galileia (ou Lago de Genesaré), para que
pudesse pregar para a multidão que estava na praia. Depois, Jesus
ordena que Pedro adentre para águas mais profundas, a fim de pescar.
Pedro estava meio desanimado, porque na noite anterior, a pescaria
tinha sido um fracasso. Foi então que se deu a pesca milagrosa: eram
tantos peixes que o peso deles rompia as redes e foi preciso chamar a
outra barca (de Tiago e João), para que o auxiliassem. Foi quando
Jesus convidou Pedro para ser pescador de gente, estendendo o mesmo
convite aos demais.
Pois bem, meus amigos. O que vemos de
comum nesses três episódios? É o fato de que Deus se serve de
fatos da existência das pessoas para chamá-los a colaborar na Sua
missão. Na história de nossas vidas, a vocação cristã nos põe
diante desse desafio de identificar e cumprir a nossa missão na
sociedade onde vivemos. Assim como Isaías, Pedro, Paulo e todos os
apóstolos, se especularmos sobre o nosso passado, iremos encontrar
diversos fatos pelos quais Jesus nos chama para dar testemunho dele,
sendo essa a nossa missão. Missão é um conceito que se identifica
com a nossa vida social, na qual somos chamados a viver de acordo com
o evangelho, testemunhando a nossa fé perante a comunidade. Não é
necessário ficar o dia todo com o terço na mão nem com a Bíblia
embaixo do braço para simbolizar que estamos em missão. Quando
cumprimos nossas tarefas com honestidade, convicção, amor ao
próximo, alegria, integridade, estamos dando um testemunho muito
mais eloquente e eficaz do que se estivéssemos só balbuciando
orações em particular. Portanto, nós não precisamos sair da nossa
rotina para colocar em prática a nossa vocação, para realizar na
nossa vida o que Deus deseja e espera de nós, estejamos nós só na
beira da praia ou em águas mais profundas. Em qualquer lugar em que
nos encontremos, a missão está ao nosso alcance.
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