COMENTÁRIO
LITÚRGICO – 6º DOMINGO COMUM – BEM-AVENTURADOS – 17.02.2019
Neste
sexto domingo do tempo comum, as leituras litúrgicas nos convidam a
refletir sobre os efeitos valorativos da confiança que sempre
devemos ter no Senhor, qual seja, a verdadeira felicidade. O profeta
Jeremias compara a atitude de quem confia em Deus a uma planta cujas
raízes mantêm-se em contato com a água e, por isso, não teme a
chegada do calor. No evangelho, Jesus chama a estes de
bem-aventurados, no seu famoso e carismático “sermão da
montanha”, no qual ele inverte a ordem daquilo que o “mundo”
considera felicidade e mostra que ser feliz, isto é, ser
bem-aventurado é ser santo. Ser fiel nas coisas simples, ser
solidário em todas as ocasiões, ser amável e respeitoso só
contribui para a melhora geral da vida na sociedade. Sem dúvida, é
disso que todos nós mais precisamos, na vida urbana dos nossos dias.
Na
leitura retirada do livro do profeta Jeremias (17, 5-8), vemos uma
comparação entre a atitude de quem confia nos homens, de um lado, e
quem confia no Senhor, de outro. Confiar “na força da carne
humana”, como fiz o Profeta, quer dizer encantar-se com as
aparências da sociedade e com as suas pompas ilusórias,
representadas no poder, na riqueza, no prestígio, na dissimulação
dos bajuladores, esquecendo que a verdadeira fortaleza vem da fé e
das garantias proporcionadas a todos pelo cumprimento da lei de Deus.
Na época do Profeta, ele se referia especificamente às atitudes
levianas do rei de Judá, Ezequias, que fez acordos maliciosos com
outros reinos vizinhos, com receio das ameaças de povos inimigos, em
detrimento da obediência à lei de Moisés e expondo o povo às
influências do paganismo e dos deuses estrangeiros e,
consequentemente, à idolatria. Em vez de buscar a confiança no
Senhor dos exércitos, o rei preferiu abrigar-se à sombra dos
soberanos humanos e a consequência para o povo foi desastrosa. Pouco
tempo depois, o reino de Judá foi invadido e derrotado pelos
assírios, sendo os seus habitantes arrastados cativos para
Babilônia. O profeta Jeremias, por muito pouco, escapou dessa mesma
sorte, tendo sido protegido por amigos, que o levaram para o Egito,
onde refugiou-se. Contra a sua vontade, é bom que se diga, porque o
desejo dele era acompanhar os cativos.
Na
segunda leitura, retirada da carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 15,
12-20), o apóstolo recorda aos cristãos daquela cidade que a
verdadeira salvação está na fé no evangelho de Jesus Cristo,
conforme a pregação que ele fizera ali. ‘Lembro a vocês’, diz
ele no início deste capítulo 15, ‘que o evangelho que eu preguei
e no qual acreditaram, nele se encontra a verdadeira salvação, e
não em outras doutrinas que falsos pregadores trouxeram até vocês’.
Paulo encontrava-se em Éfeso, na ocasião, e soube através de
outros cristãos que em Corinto voltavam a circular doutrinas gregas
antigas, pondo em dúvida a fé na eucaristia e na ressurreição dos
mortos, por isso o Apóstolo escreveu-lhes esta carta, rememorando os
ensinamentos que ele havia ali partilhado, a fim de conduzir a
comunidade à verdadeira fé cristã. O trecho da leitura deste
domingo aborda apenas o tema da ressurreição dos mortos, mas nos
capítulos anteriores Paulo trata dos outros temas, inclusive o
conhecido “hino à caridade” (cap 13), no qual ele tematiza, de
modo muito inspirado, as características fundamentais do amor
cristão. A inclusão desse trecho no cenário litúrgico deste
domingo se coloca na advertência feita pelo Apóstolo para que os
cristãos de Corinto não se deixem enganar pelos falsos pregadores e
não busquem a felicidade nos bens terrenos, esquecendo as verdades
cristãs, dentre estas, a crença na ressurreição. Daí dizer ele,
no versículo 19: ‘Se é para esta vida que pusemos a nossa
esperança em Cristo, então nós somos os humanos mais dignos de
compaixão’, ou seja, quem pensa assim está totalmente equivocado.
Se os mortos não ressuscitam, então, Cristo também não
ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, coitados de nós que
acreditamos nele. Mas não, completa ele, Cristo ressuscitou, pois
assim como entrou a morte no mundo por um homem, também por um homem
veio para nós a ressurreição. Então, a fé na mensagem cristã é
a fonte da verdadeira felicidade, e não as promessas ilusórias dos
embusteiros. Por ser uma realidade de difícil compreensão,
sobretudo naquele contexto da sociedade grega, marcada pelo
materialismo e pelo imanentismo próprios daquela cultura, Paulo fez
um raciocínio bastante didático, no capítulo 13, 12 dessa mesma
carta, quando diz que, apesar dessa dificuldade, não é impossível
crer, porque agora vemos como por espelho, em enigma,
mas depois veremos face a face: “Videmus enim nunc
per speculum in aenigmate, tunc autem facie ad faciem”.
A
temática sobre a felicidade que acompanha aqueles que acreditam e
colocam em suas vidas a mensagem cristã está representada em sua
melhor forma no famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama a
todos de bem-aventurados. Dizer que somos bem-aventurados é o mesmo
que dizer que somos felizes. Em latim, a palavra
bem-aventurados se diz 'beati' (plural de beatus) e
esta é a mesma palavra que em português se traduz por
'felizes', tanto assim que algumas traduções do evangelho usam esta
palavra nos textos: felizes os pobres de espírito, felizes os
mansos, felizes os pacíficos, etc. Curiosamente, Cristo chama de
bem-aventurados todos aqueles que, pelo status social, seriam pessoas
desventuradas. O cap. 3 do Livro da Sabedoria, identifica os
conceitos de “justo”, “feliz” e “santo”,quando diz:
“Depois de terem sofrido um pouco, receberão grandes bens, pois
Deus os provou e achou dignos de si.” (Sb 3, 5). Aqui se
encaixa o conceito de “felizes os que sofrem, porque serão
consolados”. A felicidade, a santidade, a bem-aventurança e a
justiça estão sempre de mãos dadas. Ser santo não é isolar-se de
todos e passar o dia rezando e meditando, sem viver na
comunidade. Talvez vivendo sozinho fosse até mais fácil para
o ser humano alcançar a santidade. Mas o grande
desafio da santidadeé ser capaz de aturar as
maledicências, as incompreensões, a má vontade de algumas pessoas
com quem convivemos e ainda assim mantermos a serenidade, a alegria e
o bom humor. Fazendo assim, nem é necessário desfiar as contas do
rosário seguidas vezes nem castigar os joelhos no chão em
preces contínuas, para alcançar o patamar da autêntica
santidade.
O
texto do evangelista Lucas sobre as bem-aventuranças é mais
sintético do que o de Mateus, isso se explica porque um e outro se
dirigiam a leitores de culturas diferentes. Lucas dirigia-se à
comunidade grega e enfatiza os aspectos da pobreza, da fome, da
perseguição, das injustiças sociais que fazem chorar as pessoas
humildes. Em seguida, ironiza com os ricos, que possuem muitos bens,
vivem na fartura, têm legiões de bajuladores, porque depois a
situação irá inverter-se. Se observarmos bem, o contexto social
sugerido pela leitura de Lucas referindo-se à sociedade grega
daquele tempo não é muito diferente do mundo de hoje, no qual a
enorme dicotomia entre ricos e pobres conduz àquela mesma
estratificação: de um lado, pessoas muito ricas, que vivem na
abundância e até zombam da miséria alheia, aproveitando-se dela em
seu benefício. De outro lado, pessoas extremamente carentes, as
quais, em grande número, se desviam para a criminalidade e a
violência, como uma medida imediatista e ilusória de tentar superar
a sua condição de inferioridade. Mas aqui pode ser colocada a
advertência do profeta Jeremias: confiar na força da carne
humana é igual a plantar sementes no deserto.
O
sermão da montanha, como é popularmente conhecido esse trecho do
evangelho, é uma síntese de diferentes ensinamentos e propostas,
que Jesus fazia aos seus seguidores. Não necessariamente ele teria
dito todas essas “bem-aventuranças” de uma vez só, num local
específico, sendo mais provável que os escritores sagrados tenham
coletado e reunido num mesmo texto esses, que podem ser considerados
como o resumo geral e grandioso de toda a pregação de Jesus em
forma de aforismos, concentrando em poucas palavras os temas
principais de sua mensagem da salvação. Também
podemos imaginar que esses ensinamentos eram transmitidos
por Jesus para um grupo de seguidores mais próximos, incluindo os
doze, aqueles que lhe eram mais fiéis. Muito embora a expressão
“sermão da montanha” sugira que havia uma grande multidão de
ouvintes, sabe-se que, nessas ocasiões, Jesus preferia proferir sua
mensagem de forma de parábolas, utilizando-se de temas e situações
comuns na vida daquelas pessoas. Essa forma mais refinada e
concentrada de transmitir sua doutrina em temas deve ter
sido adotada para um grupo menor, de pessoas mais comprometidas e
fiéis, aos quais ele podia falar de um modo mais direto e contendo
uma maior quantidade de exigências. Trazendo para o nosso contexto,
o “sermão da montanha” se dirige exatamente a nós, cristãos do
mundo de hoje, lembrando-nos dos nossos compromissos decorrentes de
nossa adesão à fé cristã pelo batismo. Podemos dizer que
hoje nós temos melhor condição de entender as “exigências” da
fé cristã do que os doze apóstolos, que ouviram diretamente de
Jesus essas palavras. Aqui está o nosso perene desafio: pô-las em
prática.
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