sábado, 3 de abril de 2021

COMENTÁRIO LITÚRGICO - SABADO SANTO - 03.04.2021

 

PROPOSTA DE REABILITAÇÃO PARA JUDAS ISCARIOTES – 03.04.2021 -SABADO SANTO


Todos os relatos acerca da Paixão de Cristo trazem como contraponto obrigatório a figura de Judas Iscariotes, o traidor, o inimigo infiltrado no meio dos apóstolos, aquele que foi capaz de “vender” o Mestre por trinta moedas. Ninguém quer ter o nome de Judas, porque esse nome contém uma ignomínia e até evita-se pronunciá-lo. Esse é o estereótipo de Judas criado a partir dos textos dos evangelhos e da tradição religiosa católica.

Pela análise dos textos bíblicos, constata-se que os apóstolos tiveram muita raiva de Judas, não compreenderam a sua atitude, passando a apresentá-lo como alguém do tipo que “cospe no prato onde come”, ganancioso, sempre agarrado com a sacola das moedas. Na verdade, Judas era uma espécie de tesoureiro do grupo, encarregado de receber os donativos e fazer as compras, pois o grupo precisava alimentar-se, além de outras despesas comuns à vida de qualquer pessoa. Jesus também comia e bebia como qualquer pessoa, ele não se sustentava somente com a atividade espiritual. Alguém precisava cuidar dessas tarefas administrativas, esse era Judas. Portanto, o fato de estar ele sempre com a sacola não deve ser tomado como um sinal de avareza ou ganância. Não consta nenhum episódio no qual ele tenha utilizado o “caixa” do grupo em seu benefício próprio.

Os apóstolos ficaram muito decepcionados com a conduta de Judas após o episódio da chamada “traição” do Mestre e passaram a referir-se a ele sempre com palavras de desdém, com impropérios, como uma pessoa totalmente do mal, não economizaram adjetivos pejorativos acerca da pessoa dele. Mas, sejamos razoáveis, Jesus chamou Judas, assim como chamou os demais apóstolos. Nenhum deles foi admitido no grupo por conta própria. Será que Jesus enganou-se com a personalidade de Judas? Será que Judas foi tão hábil em disfarçar seus verdadeiros propósitos, de modo que chegou a enganar até Jesus, que era capaz de perceber o que se passava no íntimo das pessoas? Deixemos de lado, por um momento, essa imagem terrível, diabólica atribuída a Judas e tentemos fazer uma análise sem preconceitos.

Dentre os doze apóstolos, temos uma maioria de pessoa com pouca instrução: pescadores, agricultores, não constam as profissões de todos, mas sabemos que Mateus (Levi) era cobrador de impostos e Judas era um judeu politizado, que fazia parte dos grupos de oposição à ocupação romana na Palestina, no caso, ele pertencia aos zelotes. Especula-se até que a alcunha dele Iscariotes tem a ver com a palavra “sicarius”, pessoa que portava uma espécie de punhal curto (sica) oculto por baixo das vestes e com eles praticava assassinatos de adversários políticos. Judas era um dos apóstolos com cultura mediana, certamente acima do nível dos demais. Provavelmente, essa qualificação teria influenciado para a escolha dele como responsável pelas finanças do grupo. Os cobradores de impostos tinham fama de ser corruptos, Mateus não seria um bom nome para essa função.

A religião judaica estava sempre associada à atividade política, não havendo separação entre política e religião. Desde Moisés, as funções sacerdotais e políticas estavam reunidas numa só pessoa. O exemplar mais característico dessa duplicidade funcional pode ser o rei Davi, primeiro rei, e essas atribuições eram reconhecidas nos seus sucessores. Com a dominação romana, a função estatal oficial era exercida pelo representante do Imperador, mas o poder paralelo do estado religioso ficava ao cargo do Sumo Sacerdote, com o apoio do Sinédrio (espécie de órgão do Poder Judiciário, similar a um Tribunal). Os judeus da elite agrupavam-se então em “partidos políticos” dentro da religião, cujos nomes mais conhecidos são os fariseus e os saduceus. Esses dois grupos, embora a contragosto, prestavam honras ao representante do Imperador romano, no caso da Judeia, o procônsul local (na época, Pôncio Pilatos), fingiam aceitar a dominação política e tinham receio de desagradar o poder romano, de onde poderiam advir consequências péssimas. O grupo dos zelotes era uma espécie de “partido clandestino”, que reunia aqueles que lutavam contra os romanos, mas de modo camuflado, usando táticas de guerrilhas. Daí o punhal escondido sob as vestes, para prática de eventuais atos “terroristas”.

Judas, conforme a tradição, pertencia a esse grupo e enxergava em Jesus a figura de um líder com potencial para congregar todo o povo e expulsar os romanos do território judeu. Era assim que ele entendia o “reino de Deus”, que Jesus pregava. Judas estava convicto de que Jesus era mesmo o Messias prometido, pois testemunhara diversas manifestações de poder realizadas por Jesus, nos vários episódios de curas e outras ações miraculosas. A ressurreição de Lázaro, ocorrida naqueles dias antecedentes da Páscoa, fora o mais apoteótico, Judas pressentiu que a hora da revelação estava chegando.

Que revelação? Ora, Judas estava convencido de que Jesus estava apenas aguardando o momento oportuno para “dar o golpe” e tomar o poder dos romanos, ou seja, ele se revelaria como sendo o Messias guerreiro, esperado por Israel, e todo o povo o aclamaria como o novo rei. Mas Judas estava impaciente, porque o tempo passava e Jesus não tomava uma atitude. Judas sabia das articulações dos Chefes judeus para prender Jesus, sobretudo após a ressurreição de Lázaro, fato que deixou esses adversários muito preocupados com a grande repercussão perante o povo. Os Chefes tinham receio de um grande massacre da população por parte do exército romano, caso um movimento rebelde eclodisse, percebendo um certo “cheiro” de revolta no meio popular. Então, Judas estava por demais inquieto. De um lado, percebia o cerco de fechando contra Jesus; de outro lado, não via em Jesus nenhuma atitude na qual se estampasse algum tipo de atividade política, em vista da necessária rebelião popular, na qual ele (Judas) acreditava totalmente.

Aflito com esses dilemas que pareciam avolumar-se a cada dia, Judas teve a ideia de fazer uma provocação. Talvez Jesus estivesse esperando o momento para dar início ao movimento de libertação, mas ainda estava indeciso. Então, Judas traçou na mente um plano de colocar Jesus diante de uma situação, na qual ele teria de tomar aquela decisão fundamental de proclamar-se rei de Israel. Para viabilizar esse momento, Judas imaginou que uma situação irrenunciável seria colocar Jesus diante do risco de ser aprisionado. Esperava ele que, ao sentir-se assim, Jesus romperia com aquela sua indecisão e tomaria a atitude de detonar a rebelião. Enlouquecido por essa obsessão, que lhe turvava o juízo, Judas tomou conhecimento de que os Chefes do povo judeu procuravam uma ocasião para prender Jesus longe da multidão de seus seguidores e então ofereceu-se para mostrar onde encontrar Jesus a sós. Mas a finalidade desse gesto maluco não era entregar Jesus aos seus inimigos e sim provocar aquela reação de poder superior, que ele sabia que Jesus tinha, e ali seria o ponto de partida para vitória sobre os romanos.

Judas agiu como um jogador arrojado, que engendra uma jogada de alto risco, aquela do tipo “tudo ou nada”, pois ele tinha certeza de que estava com um trunfo poderosíssimo do seu lado, o poder de Jesus. Pois é, Judas perdeu a aposta que havia feito consigo mesmo. Quando ele percebeu que Jesus não teve a reação que ele esperava, desesperou-se ao extremo e foi tentar reverter a situação junto aos Chefes, com os quais tinha negociado. Estes, porém, já haviam conseguido o seu intento, que era prender Jesus, não lhe deram ouvidos e ainda por cima ofereceram a ele uma recompensa em dinheiro… ora, Judas não estava interessado nisso, jogou o dinheiro na rua e foi enforcar-se. Pode dizer-se que Judas lutou até o fim, com todas as suas forças, por um ideal no qual acreditava, colocando em risco até a vida do Mestre, porque ele estava convicto da vitória.

Não nos admiremos dessa atitude louca de Judas, pois ele não havia entendido o propósito da missão de Jesus. Aliás, os outros apóstolos também não entendiam muito bem o que Jesus estava propondo a eles, mas tiveram atitude mais comedida. Um exemplo disso está no relato de Lucas (Atos 1, 6), quando alguns discípulos perguntaram: Senhor, é agora que vais restaurar o reino em Israel? Jesus já estava a despedir-se deles, antes de ascender ao céu, depois de passar com eles mais quarenta dias, após haver ressuscitado. Eles ainda não haviam entendido. A diferença em relação a Judas é porque eles foram mais pacientes e cuidadosos. Judas, no seu temperamento impetuoso, não conseguiu esperar.

Mas ainda podemos colocar outra indagação: por que Jesus, que devia saber de tudo isso com antecedência, permitiu que Judas agisse assim? Até o estimulou dizendo: o que tens a fazer, faze-o depressa (Jo 13, 27). Ora, Jesus sabia que o final da sua missão era o sacrifício e que Judas seria o instrumento histórico para isso. Jesus devia sofrer e morrer, para depois ressuscitar, não havia outro jeito de cumprir o desígnio do Pai. Alguém pode, então, atribuir alguma culpa a Judas por ter agido assim? Para que as escrituras se cumprissem?

E, por fim, pergunto: diante de todos esses fatos e argumentos, você ainda acha mesmo que Judas foi o traidor de Jesus?

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