COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO COMUM – A VOCAÇÃO DE CADA UM – 06.02.2022
Caros Confrades,
Na liturgia deste 5º domingo comum, as leituras mostram três formas diferentes, pelas quais o chamado (vocação) divino foi dirigido a três personagens importantes na história da salvação: o profeta Isaías e os apóstolos Pedro e Paulo. Esses exemplos nos levam a refletir sobre a nossa própria vocação, cada um de acordo com os seus talentos, de modo que possamos dizer, como o profeta Isaías, diante do apelo do Senhor: “aqui estou, envia-me”.
Na primeira leitura, temos assim o relato de Isaías narrando sobre a sua vocação profética (6, 1), onde ele diz que foi no ano da morte do rei Ozias (740 a.C.) que ele recebeu a missão de profetizar. Diz ele que viu o Senhor dos exércitos sentado no trono, rodeado de serafins, que o adoravam dizendo “santo, santo, santo” e ficou com medo, considerando-se indigno de tamanha distinção, porque era apenas um pecador. Caiu por terra e tremeu, porque achava que ali iria morrer, pois de acordo com a tradição hebraica, ninguém tinha visto a Deus e depois continuado vivo. Então Isaías achou que era o momento de sua morte. Foi quando um dos serafins tirou uma brasa do altar, aproximou-se dele e com ela tocou a boca de Isaías, purificando-lhe os lábios para que ele pudesse falar em nome de Javé. Após isso, ele disse ao Senhor: estou pronto, envia-me. Este é, sucintamente, o relato de Isaías e daí podemos fazer algumas considerações.
Em primeiro lugar, destaco o fato de que foi Isaías o profeta que mais se aproximou da realidade do futuro Messias, inclusive sobre o sacrifício da cruz a que ele teria de se submeter, com os poemas sobre o “servo sofredor”. Tanto assim que o texto de Isaías é o mais citado por Jesus nas suas pregações, inclusive no domingo passado lemos aquele texto em que Jesus diz expressamente que “hoje se cumpriu a palavra do profeta”. Mas Isaías, por causa do contexto histórico e político do reino de Judá, onde ele vivia, sempre às voltas com guerras e ameaças por parte dos inimigos, tinha a visão de Javeh como um chefe guerreiro, o Senhor dos exércitos, de modo que as previsões que ele fez do Messias eram também de um destemido guerreiro, que viria expulsar os inimigos. Não é de admirar, portanto, que o povo hebreu tenha resistido em reconhecer a messianidade de Jesus, porque ele não veio na condição de herói, libertador político, conforme havia sido previsto pelos profetas. Quando Jesus veio pregar um reino do amor e da mansidão, eles não viram nele a figura correspondente à sua expectativa histórica, que se formara ao longo de tantos séculos, como de um Messias guerreiro e lutador.
Em segundo lugar, esse trecho de Isaías contém aquela invocação que foi colocada no cânon da missa como parte fixa: o Santo, Santo, Santo (Is 6, 3). que era o canto entoado pelos serafins que ladeavam o trono de Javeh. De princípio, convém explicar algo sob o aspecto gramatical, que não sei se todos sabem. Na língua hebraica, não há uma mudança morfológica na palavra, quando ela se põe no superlativo. Por exemplo, em português, o superlativo de “santo” é “santíssimo”, mas em hebraico, o superlativo da palavra se expressa com a repetição dessa palavra por três vezes. Desse modo, 'santo, santo, santo' (em hebraico: kadosh, kadosh, kadosh) quer dizer: santíssimo. Outro detalhe é que Isaías escreve: Senhor Deus Sabaoth, palavra hebraica que significa exércitos e que não foi traduzida nem para o grego nem para o latim, mantendo-se a grafia original nesses dois idiomas. Quem se recorda da missa em latim, lembra disso: Sanctus, sanctus, sanctus, Dominus Deus Sabaoth. Assim era também em português, mas na reforma litúrgica, a CNBB preferiu alterar a denominação “Deus dos exércitos” por “Deus do universo”, como está hoje no texto oficial.
Outro detalhe interessante é que o serafim apanhou uma brasa do altar com uma tenaz, espécie de alicate, (para não se queimar) e com ela tocou os lábios de Isaías (que não se queimou), ficando com isso purificado para falar em nome de Javeh. É interessante notar essa figura do fogo como símbolo da purificação, que tem presença constante nas imagens bíblicas. A brasa foi retirada do fogo que fora aceso para o sacrifício das vítimas que eram oferecidas ao Senhor. Ora, esse detalhe insinua que Isaías teve esta visão enquanto estava no templo. Isaías teve a árdua missão de denunciar os pecados do povo de Israel, desde os simples fiéis até os governantes, fato que ele fez com muita coragem, mesmo sabendo dos riscos que corria. Não é fato histórico confirmado, mas há uma tradição que afirma que Isaías morreu ao ter seu corpo serrado no meio, por ordem do rei Manassés, que ficou ofendido com as admoestações do profeta.
Na segunda leitura do domingo, o apóstolo Paulo conta, de sua própria pena, a sua vocação, história que todos conhecemos. Mas ele faz alguns complementos interessantes sobre as aparições de Cristo após sua ressurreição, narrativas que estão em certa divergência com os evangelhos. Por exemplo: diz que Jesus apareceu primeiro a Cefas (Pedro) e depois aos doze (2Cor 15, 5); esta aparição a Pedro isoladamente não consta nos evangelhos. Diz depois: mais tarde, apareceu a mais de 500 irmãos de uma vez, depois apareceu a Tiago e depois aos apóstolos todos juntos. Pelas narrativas evangélicas, essas aparições a 500 irmãos e a Tiago também não estão registradas, contudo, não se pode dizer que Paulo esteja faltando com a verdade, pois muitas tradições orais que eram conhecidas em algumas comunidades não eram conhecidas em outras e nem todas foram escritas.
Por fim, em 2Cor 15, 8, Paulo diz que Jesus apareceu também a ele (“como um abortivo”), afirmando não ser merecedor de tamanha honra. Nesse ponto, Paulo está fazendo um discurso de humildade, arrependido do tempo em que foi perseguidor da Igreja. Mas logo depois (vers. 10), ele faz um autoelogio, ao dizer: tenho trabalhado mais do que os outros apóstolos. Talvez como uma espécie de compensação, por ter sido perseguidor, Paulo tenha se dedicado muito mais do que os outros, em viagens e missões por todo o mundo grego, levando o cristianismo até Roma, que era a grande capital do mundo de então. Foi Paulo quem levou Pedro para presidir a comunidade de Roma, para dedicar a ele a honra de ser o líder cristão da cidade mais importante, fato que ainda hoje tem grande repercussão, na pessoa do Papa, bispo de Roma. Aliás, na minha convicção pessoal, a vocação de Paulo é uma das maiores provas da divindade de Cristo, porque se dependesse dos doze apóstolos judeus, dificilmente o cristianismo teria alcançado a expansão que atingiu, em termos de locais habitados naquela época. Com sua formação intelectual e sua pedagogia arrojada, pode afirmar-se que Paulo foi o primeiro teólogo, igualando-se a João em importância na elaboração doutrinária.
O evangelho de Lucas (5, 1-11) expõe a vocação dos primeiros apóstolos: Pedro e seu irmão André, que eram sócios de Tiago e João, filhos de Zebedeu, todos pescadores. Primeiro, Jesus entrou na barca de Pedro e pediu que se afastasse um pouco da margem do Mar da Galileia (ou Lago de Genesaré), para que pudesse pregar para a multidão que estava na praia. Depois, Jesus ordena que Pedro adentre para águas mais profundas, a fim de pescar. Pedro estava meio desanimado, porque na noite anterior, a pescaria tinha sido um fracasso. Foi então que se deu a pesca milagrosa: eram tantos peixes que o peso deles rompia as redes e foi preciso chamar a outra barca (de Tiago e João), para que o auxiliassem. Foi quando Jesus convidou Pedro para ser pescador de gente, estendendo o mesmo convite aos demais.
Pois bem, meus amigos. O que vemos de comum nesses três episódios? É o fato de que Deus se serve de fatos da existência das pessoas para chamá-los a colaborar na Sua missão. Na história de nossas vidas, a vocação cristã nos põe diante desse desafio de identificar e cumprir a nossa missão na sociedade onde vivemos. Assim como Isaías, Pedro, Paulo e todos os apóstolos, se especularmos sobre o nosso passado, iremos encontrar diversos fatos pelos quais Jesus nos chama para dar testemunho dele, sendo essa a nossa missão. Missão é um conceito que se identifica com a nossa vida social, na qual somos chamados a viver de acordo com o evangelho, testemunhando a nossa fé perante a comunidade. Não é necessário ficar o dia todo com o terço na mão nem com a Bíblia embaixo do braço para simbolizar que estamos em missão. Quando cumprimos nossas tarefas com honestidade, convicção, amor ao próximo, alegria, integridade, estamos dando um testemunho muito mais eloquente e eficaz do que se estivéssemos só balbuciando orações em particular. Portanto, nós não precisamos sair da nossa rotina para colocar em prática a nossa vocação, para realizar na nossa vida o que Deus deseja e espera de nós, estejamos nós só na beira da praia ou em águas mais profundas. Em qualquer lugar em que nos encontremos, a missão está ao nosso alcance.
Com um cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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