COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DO ADVENTO – O JUSTO JOSÉ – 18.12.2022
Caros Confrades,
Neste quarto domingo do Advento, a liturgia destaca a figura de São José, chamando-o de “o justo”, aquele que compreendeu e aceitou a maternidade de Maria. De início, ficou embaraçado com a gravidez inexplicável, mas sem querer denunciá-la, porque sabia das consequências severas que recairiam sobre ela, planejou deixá-la em segredo. Porém, o mensageiro celeste o tranquilizou e José assumiu com zelo e serenidade a sua missão de cuidador do Messias. São dois momentos críticos e opostos em que a virtude da justiça se revelou nas atitudes de José: a primeira vez, quando, na dúvida da gravidez misteriosa, decidiu não denunciá-la, porque não tinha motivos para duvidar dela; a segunda vez, quando, na certeza advinda com o aviso celeste, transmudou a dúvida em confiança. O Papa Francisco disse que essa atitude de São José nos ensina a confiar em Deus, quando ele se aproxima de nós.
Na primeira leitura, do profeta Isaias (Is 7, 10-14), lemos aquela famosa previsão sobre a futura vinda do Messias: uma virgem conceberá e parirá um filho, que terá o nome de Emanuel (Is 7, 14). Sob o prisma da história, o Emanuel previsto por Isaías foi o rei Ezequias, filho de Acaz. Ezequias um rei justo e santo, que restaurou a dignidade do povo de Israel. No plano trans-histórico, a figura do Emanuel se aplica a Jesus, o salvador não só de Israel mas de todos os povos. Se o reinado do rei Ezequias, que seguiu o padrão do seu ancestral rei Davi, marcado pela prática da justiça e pela obediência à lei de Deus, o “reinado” do Messias será a plenificação dessa prática. O profeta Isaias é a leitura preferida para a liturgia do advento, por causa da sua precisão de detalhes sobre o futuro Messias, destacando-se, neste domingo, a virtude da justiça como aquela atitude que bem possibilitará o seu reconhecimento. E o próprio Jesus, posteriormente, tomou o livro de Isaías como a sua leitura preferida, sempre que era convidado a fazer a leitura na sinagoga.
Na tradição religiosa, a figura de José é também frequentemente associada à virtude da justiça: o justo José. Tentemos imaginar a situação em que ele se encontrava. José ainda não era casado com Maria e, mesmo estando noivos, ainda não coabitavam, de acordo com o costume daquela época, bem diverso da prática contemporânea. Maria ainda estava passando por um “treinamento” para assumir as funções próprias do matrimônio. Os textos bíblicos não esclarecem como foi que José tomou conhecimento da gravidez: se foi Maria quem contou a ele ou se ele, José, percebeu a mudança no corpo de Maria. De um modo ou de outro, José sabia que não era ele o pai, então, pela norma vigente, cabia-lhe denunciar a noiva por mau comportamento perante os sacerdotes. Mas José sabia que isso implicaria o apedrejamento de Maria por adultério, de acordo com a Lei de Moisés. José era justo e não queria fazer mau juízo sobre Maria nem desconfiar das virtudes dela, porém não entendia como aquela gravidez tinha ocorrido. Então, resolveu simplesmente abandoná-la, viajar para outras terras e seguir sua vida por lá. Só que isso era muito trabalhoso, afinal, mudar de domicílio não é fácil nos dias de hoje, devia ser mais complexo ainda naquela época. José se encontrava nesse dilema sobre o que fazer. Foi quando ele teve o sonho com o anjo, fato que é narrado por Mateus no evangelho deste domingo (Mt 1, 18-24). É interessante observar que a Bíblia relata diversos episódios em que Javeh fala com as pessoas em sonho, seja diretamente, seja através de um mensageiro. Esta palavra mensageiro em grego, diz-se “angelos”, derivada do verbo “angelô” (anunciar, proclamar), que se transformou no latim em “angelus” e, em português, passou para “anjo”.
A bíblia relata sobre muitos personagens bíblicos que foram visitados por esses mensageiros divinos (angelos), sem descrever como é a aparência deles, porém, os artistas medievais se encarregaram de compor a sua figura como um ser masculino, jovem, de grande beleza, tendo as omoplatas desenvolvidas em forma de asas como os pássaros. E assim ficou criada a figura estereotipada do anjo que todos conhecemos. No entanto, não podemos nos esquecer que Lúcifer era também um anjo da corte celeste, apesar disso, a figura deste é retratada pelos mesmos artistas de uma forma totalmente diversa. Digo isso para que retiremos da nossa cabeça as imagens medievais, quando nos referimos aos mensageiros divinos. Por que razão não existem figuras femininas como anjos (ou anjas), apenas figuras masculinas? Evidentemente, entra aí toda a carga cultural do machismo, típico da cultura greco-romana. Apesar da sua feição marcadamente andrógina, no entanto, eles são apresentados sempre como seres masculinos, em coerência com a mesma cultura, a qual afirma que somente os homens podem exercer os ministérios eclesiais. É o paradigma da masculinidade, ainda presente na Santa Madre Igreja, excluindo as mulheres das funções ordenadas. Vejamos se o Sínodo de 2023 irá trazer alguma novidade sob essa prática milenar.
Pois bem, mas voltando à história sobre o sonho de José, vemos uma diferença curiosa na forma como o mensageiro (anjo) apareceu a José e a Maria. No caso de Maria, ela estava desperta e dialogou com ele. No caso de José, ele estava dormindo e não participou da conversa, apenas recebeu a mensagem. É o caso de indagarmos se, efetivamente, um mensageiro lhe apareceu ou se ele apenas sonhou, foi apenas um sonho simples, da mesma forma como nós, muitas vezes, estamos com uma dúvida nos atormentando e, num sonho, vislumbramos uma solução. Aliás, se formos observar bem, nas diversas vezes em que um texto bíblico se refere a um mensageiro (anjo), em geral, a presença de um ser angelical não é de fato necessária, mas a situação se esclarece com uma explicação psicológica. O caso do sonho de José é um desses exemplos. Outro caso também relacionado com José é aquele episódio em que ele recebeu uma “ordem” de fugir com Maria e o menino para o Egito, até passar a perseguição de Herodes, através de outro sonho. A referência ao mensageiro fica mais por conta da tradição hebraica, ainda muito presente no cristianismo primitivo. E também devido ao estado de desenvolvimento científico da época, em que esses fenômenos psicológicos eram sempre considerados como manifestações divinas (se fossem boas) ou demoníacas (se fossem más). Disso podemos concluir, com alguma segurança, que a doutrina tradicional acerca dos anjos precisa ser repensada e redimensionada, dando-lhe uma compreensão mais realista e menos fantasiosa.
O caso da anunciação a Maria já foge a essa regra, por causa do diálogo que ela travou com o anjo até ser convencida e dar o seu aceite. Há uma intervenção divina na história, trata-se de algo realmente miraculoso na sua essência, algo para o qual apenas uma explicação da psicologia não seria suficiente. Isso é que torna diferente a atuação do “mensageiro” divino em certas situações em que há uma justificativa para a sua presença. Temos um exemplo bem típico no Antigo Testamento (Gn 32, 24), que narra a luta que Jacó teve com um anjo, pouco antes de sua reconciliação com Esaú. Porém, nem sempre o fato narrado justifica a presença física do “anjo”, mas pode ser resolvido de um modo mais prosaico, como quando estamos sonhando ou quando simplesmente temos um “estalo” na mente, aquilo que os psicólogos chamam de “insight”, uma descoberta inesperada e instantânea que a nossa mente produz, em situações emergenciais. Apenas para reforçar o que escrevi antes, acerca da necessidade de um estudo mais crítico e menos fanático sobre a angeologia.
E por último, uma breve referência à segunda leitura, da carta de Paulo aos Romanos (Rm 1, 1-7), na qual Paulo destaca a descendência de Jesus da raça de David (em grego: ek spérmatos David) segundo a natureza humana, e predestinado como Filho de Deus em poder, segundo o Espírito. Curiosamente, o texto da CNBB traduz a palavra latina “praedestinatus” (predestinado) como “autenticado”. Por certo, essa tradução visa evitar o uso da palavra “predestinado” por causa da doutrina da predestinação, que não é acolhida pela teologia católica, substituindo-a por uma palavra mais amena: autenticado, isto é, reconhecido, como quem faz reconhecimento de firma no Cartório.. No entanto, eu considero essa palavra perigosa na sua interpretação, porque traz subjacente também a ideia de algo que não é original, mas uma cópia... sinceramente, tem certas traduções que aparecem nos textos oficiais da CNBB que complicam aquilo que deveriam explicar. Dizer que Jesus é autenticado como Filho de Deus com o poder do Espírito, a meu ver, deturpa o significado do texto paulino e dá a impressão de uma coisa subalterna, uma segunda via que se autentica para ter validade oficial. Com certeza, Jesus não precisa dessa autenticação.
Ao ensejo, envio antecipados votos de Feliz Natal.
Antonio Carlos
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