domingo, 25 de junho de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 12º DOMINGO COMUM - 25.06.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – FÉ E POLÍTICA – 25.06.2023


Caros Confrades,


Neste 12º domingo comum, o tema da liturgia abre espaço para uma abordagem da relação entre religião e política, através da exortação de Cristo: não tenhais medo daqueles que matam o corpo e nada mais podem fazer. De fato, num tempo de grande avanço do secularismo, as pessoas sentem cada vez mais dificuldades para expressar a sua fé, temendo as censuras sob todos os aspectos, levando muitos cristãos a terem atitudes omissas, quando poderiam dar testemunho. Em alguns países, a profissão da fé cristã se transformou em grave ameaça contra a vida das pessoas, como temos visto na imprensa internacional, vários casos de perseguições e mortes a cristãos em países dominados pelo comunismo ou islamismo radical, templos invadidos, sacerdotes e freiras sequestrados. Já naquela época, Jesus orientava os apóstolos para que não tivessem medo e, no decorrer da história, os cristãos de todos os tempos tiveram de enfrentar verdadeiras situações de insegurança e ameaça, que não cessaram com o avanço da civilização.


Essas situações de tensão e medo por causa da expressão da fé, de fato, já existiam muito antes de Cristo. A primeira leitura, por exemplo, traz um texto do profeta Jeremias em que tal situação se manifesta. Aliás, a vida deste profeta é um verdadeiro desafio à existência humana. Ele era um intelectual, estudioso, pesquisador, escreveu vários livros. Ele alertou seguidamente o rei sobre os castigos que estavam por vir, sem merecer atenção deste. Depois, teve a desdita de assistir à destruição de Jerusalém por Nabucodonosor, porém não foi levado cativo para a Babilônia, como muitos hebreus foram, continuou residindo no território de Judá, após esses fatos. Isso levantou suspeitas contra a sua pessoa e ele começou a receber ameaças por parte de rebeldes políticos, que o acusavam ter ele feito algum tipo de acordo com o inimigo de Israel e talvez por isso não fora levado cativo. O fato de Jeremias não ter sido levado como escravo, tendo sido poupado por Nabucodonosor, deixou para alguns a ideia de que ele teria sido uma espécie de traidor da pátria e por isso ele passou a ser perseguido, até por pessoas de sua própria família. Ele havia sido chamado a profetizar quando ainda era muito jovem e isso o colocou em algumas dificuldades perante as autoridades. Por isso, logo depois da derrota para os assírios, ele teve medo de permanecer em Jerusalém e foi obrigado a debandar para o Egito, mesmo contra a sua vontade, por motivo de segurança pessoal e dos seus parentes. Vejam que Jeremias era uma pessoa marcada, naquele tempo, ele já sofria de bullying. Visto assim, consegue-se compreender melhor a razão pela qual os textos de Jeremias são sempre queixosos, amargurados. Basta lembrar que ele é também o autor do Livro das Lamentações.


No texto da leitura de hoje (Jr 20, 10), ele faz o seguinte desabafo: “Todos os amigos observam minhas falhas: ‘Talvez ele cometa um engano e nós poderemos apanhá-lo e desforrar-nos dele’.” Quem tem amigos assim, fica-se a imaginar como serão os inimigos. Isso mostra o quanto Jeremias era discriminado e sabia que muitos tramavam contra ele. Mesmo tendo ido morar no Egito, a sua situação não melhorou. Lá, ele via o povo de Deus abandonando as tradições hebraicas e se filiando às idolatrias egípcias e não conseguia ficar calado, bradando sempre contra tudo isso e conclamando o povo a retornar à sua fé. Não via muito resultado na sua pregação, mas não desanimava. Diz ele no versículo 11: “Mas o Senhor está ao meu lado, como forte guerreiro; por isso, os que me perseguem cairão vencidos. Por não terem tido êxito, eles se cobrirão de vergonha. Eterna infâmia, que nunca se apaga!” O fim da vida de Jeremias não poderia ser outro, senão este: foi apedrejado pelos próprios hebreus da localidade egípcia onde moravam, porque estes não suportaram mais ouvi-lo o tempo todo a bradar contra a idolatria deles e a chamá-los de volta à verdadeira fé de Javeh. Jeremias enfrentou o medo e Javeh o sustentou firme na fé, até as últimas consequências.


Na segunda leitura, temos um trecho bastante conhecido e polêmico da carta de Paulo aos Romanos (5, 12-15), no qual o apóstolo faz uma comparação entre Adão e Cristo: Adão foi o primeiro homem da aliança antiga, Cristo foi o primeiro homem da nova aliança. Esse texto de Paulo acarreta grande polêmica, sendo utilizado pelos teólogos ortodoxos para rejeitar a teoria científica do evolucionismo como sendo incompatível com o cristianismo. Não me parece, contudo que seja esse o seu propósito. Paulo está ensinando sobre o pecado original. Tanto assim que, no versículo 14, ele diz: a morte reinou, desde Adão até Moisés, mesmo sobre os que não pecaram como Adão, o qual era a figura provisória daquele que devia vir. Por outras palavras, o pecado de Adão, que não tem nada a ver com a degustação da maçã, respingou sobre todos os seres humanos, recaindo até sobre os que não agiram como ele, e mesmo num tempo em que não havia lei, ou seja, antes de Moisés, essas pessoas inocentes não poderiam ser imputadas de culpa, no entanto, mesmo assim, foram atingidas pelas consequências do pecado. Somente com a chegada “daquele que devia vir”, isto é, com a vinda de Cristo, a graça de Deus lavou a mancha do pecado e, com isso, aqueles que morreram no pecado inocentemente também foram alcançados pela graça purificadora de Cristo e assim ganharam a salvação. Assim, em poucas palavras, é a doutrina teológica sobre o pecado original. Talvez, alguém esteja se perguntando: mas, afinal, qual foi mesmo o pecado de Adão, para ter essas consequências tão devastadoras? Segundo penso, o pecado de Adão, que pesou de forma estrutural sobre todos os seres humanos, foi o do orgulho e da desobediência. A serpente, representando a própria natureza imperfeita do homem, o induziu a comer do fruto proibido (que nem era o sexo nem era a maçã) com a ilusão de que esse fruto o tornaria um imortal igual a Deus, e ele acreditou. E ainda pôs a mulher no meio do caminho, como uma alusão metafórica à influência que a mulher tradicionalmente exerce sobre o homem. E assim os primeiros pais cometeram dois pecados em uma só atitude: o orgulho de quererem ser iguais a Deus e a desobediência da ordem divina. O resultado, todos conhecemos: eles nem ficaram tão sabidos quanto o Criador e ainda ficaram se escondendo, porque descobriram a nudez da sua fragilidade e da sua ignorância. Assim se decodifica, em rápidos traços, a metáfora bíblica do paraíso terrestre, lugar considerado meramente simbólico e fisicamente inexistente pela grande maioria dos teólogos contemporâneos. E o mais interessante de tudo é que, estudando as culturas de outros povos orientais daquele tempo, percebe-se que em outras regiões também havia histórias semelhantes a essa do paraíso, sem nenhuma relação com a tradição hebraica. Quem tiver interesse sobre esse tema, sugiro que faça pesquisa na internet sobre Gilgamesh.


No evangelho de Mateus (Mt 10, 26-33), Jesus faz um discurso de cunho psicológico, explicando para os seus apóstolos que o medo é uma atitude humana natural, contudo, quando se trata de professar a fé, eles não devem ter medo, embora isso possa representar para eles uma ameaça. “Não tenhais medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma! Pelo contrário, temei aquele que pode destruir a alma e o corpo no inferno!” (10, 28). Jesus estava ali preparando psicologicamente o seu grupo para o enfrentamento das perseguições e das dificuldades pelas quais teriam de passar. E vejamos que não foram poucas. De todos os doze apóstolos, apenas João não morreu martirizado. E os seguidores de Cristo, tanto no território grego quanto no império romano, experimentaram as mais variadas e cruéis perseguições, pelo simples fato de professarem a fé em Jesus. O próprio Paulo, inicialmente, era um desses perseguidores. Por isso, a exortação de Cristo não era vã e nem meramente retórica, ele já antevia as grandes dificuldades que perpassariam o caminho dos seus discípulos. E a promessa que ele fazia não podia ser mais estimulante: todo aquele que se declarar a meu favor diante dos homens, também eu me declararei em favor dele diante do meu Pai que está nos céus.” (10, 32) Nas diversas provações pelas quais passaram os cristãos, ao longo do tempo, foi isso que se verificou e continua a se verificar nos testemunhos dos cristãos perseguidos de hoje.


Meus amigos, é esse o nosso desafio de ser cristãos nos dias atuais. Felizmente, nós vivemos num país onde não sofremos ameaças nem somos hostilizados pela nossa manifestação de fé, ao contrário, a nossa cultura foi construída com base nos valores cristãos e o ambiente social favorece a prática da religião. Então, para nós não é um grande desafio professar, com nosso exemplo e nossas atitudes, que somos discípulos de Cristo. No entanto, há pessoas que se sentem incomodadas, envergonhadas de expressar a sua fé num mundo cada vez mais secularizado. Continua, portanto, totalmente válida a exortação de Cristo: não tenhais medo, deem testemunho de mim, que eu darei testemunho de vocês.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 17 de junho de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 11º DOMINGO COMUM - 18.06.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 11º DOMINGO COMUM – A MISSÃO – 18.06.2023


Caros Confrades,


Prosseguimos com o ciclo litúrgico do tempo comum, com o 11º domingo. Nas leituras de hoje, a liturgia nos propõem para reflexão o tema dos “escolhidos” por Deus para a missão. Na leitura do Êxodo (cap. 19), Javeh diz a Moisés que escolheu aquele povo de Israel para ser um reino de sacerdotes e uma nação santa. No evangelho, Mateus destaca nominalmente os doze apóstolos, a quem Jesus irá confiar a tarefa de serem continuadores da sua missão. Transferindo esse conceito dos escolhidos de Deus para o mundo atual, hoje somos nós os escolhidos, a sua Igreja, os seus seguidores, um único “povo”, apesar de distribuído em diversas denominações religiosas aparentemente díspares. A proposta de Jesus, no sentido de que “todos sejam um”, ainda se encontra em fase de construção, pois a unidade dos seus discípulos ainda não foi alcançada. E nós somos responsáveis por esse compromisso, através da nossa adesão batismal.


Na primeira leitura de hoje, temos um trecho do livro do Êxodo (cap. 19), narrativa que antecede o episódio da entrega das tábuas da lei a Moisés. Depois de três meses de caminhada pelo deserto, o povo acampa ao pé do monte Sinai. Moisés sobe o monte, atendendo ao chamado de Javeh, que manda, através dele, um recado para o povo: “se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim a porção escolhida dentre todos os povos (Ex 19, 5). Na ocasião, Javeh manda Moisés convidar todo o povo para uma “reunião” com Ele no dia seguinte, quando aparece ao povo no meio de uma fumaça espessa, como se todo o monte Sinai estivesse em chamas. No capítulo adiante, tem-se a narração da entrega dos dez mandamentos, os quais sintetizam as exigências de Javeh, para que o povo de Israel cumpra a sua missão de ser sua nação santa e o seu povo eleito.


Um fato curioso, nesse contexto, é que atualmente não se sabe com certeza onde fica localizado o monte Sinai. Mesmo tendo sido esse local o palco da confirmação da aliança de Javeh com os descendentes de Abraão, onde houve a entrega dos mandamentos, o lugar geográfico do monte Sinai continua sendo motivo de dúvidas e discussões entre os biblistas. Há três locais prováveis, de acordo com os estudiosos da Terra Santa: 1. segundo a tradição mais antiga, identifica-se o local como Jebel Mussa ("a Montanha de Moisés"), localizada entre as Montanhas de Granito ao sul da Península do Sinai, tendo sido esse o provável caminho seguido pelos hebreus quando fugiam do Faraó, além de ser uma rota utilizada desde antigamente pelos comerciantes de pedras preciosas vendidas na região do Nilo; 2. a segunda opção é o Monte Karkom, localizado ao sul de Israel, muito próximo da fronteira egípcia, montanha que fica num local sagrado importante durante milênios, está coberta com milhares de escrituras antigas e artes em pedra, que pode ser datada até o ano 4000 a.C; 3. a terceira opção é o monte Jebel el-Lawz, na Arábia Saudita, que fica numa região conhecida como Midian, na época bíblica. Os defensores desta terceira teoria apontam o fato de que Moisés estava nesta região, porque tinha consultado com seu sogro Jetro, um sacerdote Midianita, antes de subir o Monte Sinai (Ex. 18:1). O dilema permanece insolúvel e talvez nunca seja esclarecido, porque Moisés subiu sozinho ao monte. Mas isso não é realmente importante, porque mais significativo do que o local físico, é o legado de fé e tradição que dali se iniciou.


No evangelho de Mateus, lido neste domingo (Mt 9, 36), Jesus expressa compaixão por aquela multidão que o segue, percebendo as pessoas cansadas e abatidas “como ovelhas sem pastor”. Então, Jesus confia aos apóstolos a missão de serem guias desse povo, conferindo-lhes diversos dons para serem usados em benefício deles (curar doenças, expulsar espíritos maus, ressuscitar mortos…), dons que se perpetuam no poder da hierarquia da Igreja. O que se lamenta é que essas palavras de Jesus sejam ainda hoje interpretadas em sua literalidade e muitas pessoas esperam encontrar nos cultos religiosos a solução de seus males físicos e psicológicos, como se a oração fosse uma fábrica de milagres. Obviamente, os milagres existem e muitos são os testemunhos deles, no entanto, o milagre se opera pela fé, não basta dizer “Senhor, Senhor”. É decepcionante observar-se como os cultos religiosos têm-se tornado espetáculos de ilusionismo religioso, sobretudo em determinadas organizações religiosas, que aproveitam isso para promoverem a venda de “unções”, de objetos abençoados, além de apresentarem simulações de atos miraculosos, que seduzem pessoas crédulas, mas desinformadas. Não foi esse, certamente, o objetivo pretendido por Jesus Cristo para os seus enviados. Ainda vigora a exortação de Javeh ao sopé do Sinai: se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis um reino de sacerdotes e uma nação santa. Após mais de três mil anos desses fatos, fica parecendo que esse objetivo ainda não foi alcançado.


Continuando a leitura do trecho do evangelho de Mateus, chega-se a um conjunto de frases ditas por Jesus, que suscitam confusão na mente do leitor. Depois de denominar os doze apóstolos, o evangelista põe na boca de Jesus algumas orientações desconcertantes (Mt 10, 5-7): “'Não deveis ir aonde moram os pagãos, nem entrar nas cidades dos samaritanos! Ide, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel!'”. Que significa “não ir aonde moram os pagãos”? Pois não são eles, os pagãos, que devem receber o anúncio da mensagem cristã para se converterem e crerem no evangelho? Que significa “não entrar nas cidades dos samaritanos”? Samaritanos e judeus não fazem parte do mesmo povo da aliança, aqueles que atravessaram o deserto sob o comando de Moisés? Para superar essa dificuldade, devemos entender que, segundo Mateus, a pregação deve ser dirigida, preferencialmente, “as ovelhas perdidas da casa de Israel”, isto é, aos outros judeus, àqueles que não aceitaram Jesus nem creram na sua mensagem. Mateus escreveu seu evangelho para as comunidades judaicas dispersas. Percebe-se aí que a preocupação do evangelista Mateus é com a conversão dos judeus, daqueles mesmos que crucificaram Jesus, pois para eles a pregação de Cristo foi dirigida em primeiro lugar. Esse fato pode ser melhor compreendido se considerarmos que o texto original do evangelho de Mateus foi escrito em aramaico e só depois traduzido para o grego, enquanto os demais evangelhos foram escritos originalmente em grego. A tradução portuguesa usa o vocábulo “pagãos”, mas no texto latino a palavra é “gentium”, isto é, os gentios, os povos não judeus, na prática, os gregos, que eram a maioria na região do Mediterrâneo. E se percebe também o ranço de xenofobia do autor em relação aos Samaritanos, por causa das dissensões entre os reinos do norte (Israel - capital Samaria) e do sul (Judá - capital Jerusalém), quando os filhos de Salomão, após a morte deste, brigaram e o reino foi dividido em duas partes. Jesus bem que tentou promover a união dessas nações, o que está bem claro no episódio da Samaritana, mas a desavença persistia e o escritor do texto evangélico demonstra isso. Fato notório é que essas “recomendações” só constam no texto de Mateus, não havendo referência a isso nos outros evangelistas.


A carta de Paulo aos Romanos, de certo modo, contradiz o texto de Mateus, pois os gentios, isto é, os não-judeus, os romanos e gregos eram exatamente os povos aonde os apóstolos não deveriam ir, foi para eles que Paulo se dirigiu. Diz Paulo (Rm 5, 8): a prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores”. Se tivesse prevalecido a ideia de Mateus, a mensagem de Cristo não teria chegado aos gentios e nem a nós. E complementa Paulo (Rm 5, 10): Quando éramos inimigos de Deus, fomos reconciliados com ele pela morte do seu Filho”. Por outras palavras, Paulo está nos dizendo que o conceito da “nação santa” não se aplica exclusivamente ao povo judeu que, originalmente, recebeu a pregação de Cristo (e nem acreditou nele), mas inclui também a nós, os gentios, isto é, aqueles que não ouviram Jesus Cristo falar, no entanto, acreditaram nele sem ter visto. E agora, já estando reconciliados, seremos salvos por seus méritos.


Caros amigos, a construção da “nação santa”, do único povo de Deus, da unidade de todos os cristãos e, mais ainda, da união de todos os crentes monoteístas continua sendo o grande desafio do ecumenismo, que a Igreja vem defendendo, e que nem sempre é bem compreendido. O Papa Francisco colocou esse objetivo como um dos preferenciais da sua missão e trabalha muito para isso, apesar das incompreensões. Façamos, cada um, a nossa parte nessa missão.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

domingo, 11 de junho de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 10º DOMINGO COMUM - 11.06.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 10º DOMINGO COMUM – OBRAS DE MISERICÓRDIA – 11.06.2023


Caros Confrades,


Terminado o tempo pascal, o ciclo litúrgico retoma o seu planejamento catequético padrão, com as leituras deste 10º domingo comum, que nos propõem para reflexão o tema “quero misericórdia, não sacrifícios”, conforme advertiu o profeta Oseias, na primeira leitura. No evangelho de Mateus, este evangelista narra a sua própria vocação, contando detalhes sobre as circunstâncias em que Jesus o chamou para fazer parte do grupo dos doze. Mateus era publicano, isto é, cobrador de impostos, um tipo de gente que (assim como as prostitutas) eram considerados pecadores públicos e, como tais, excluídos dos serviços religiosos do templo. Rebatendo os fariseus, que criticavam a atitude de Jesus que, além de ter chamado Mateus, ainda foi visto num almoço que uma turma de outros publicanos, o Mestre respondeu repetindo a advertência antiga de Oseias, que aqueles fariseus deveriam saber decorado: Deus quer misericórdia, e não sacrifícios.


O profeta Oseias, lido na primeira leitura (6, 3-6) exerceu sua profecia no reino do norte, em Israel, e teve sua vida marcada por desafios e conflitos. Ele viveu numa época de reis infiéis, que abriam espaço para os cultos politeístas dos povos vizinhos, neglicenciando o culto de Javeh. Então Javeh ordenou que ele se casasse com uma prostituta e tivesse filhos com ela, fato que gerou grande rebuliço na comunidade, porque esse tipo de casamento era totalmente rejeitado pela sociedade judaica. Mas o significado desse matrimônio esdrúxulo de Oseias era metafórico: o objetivo era chamar a atenção do povo para o fato de que os reis de Israel também tinham se “casado” com prostitutas, quando abandonaram o culto do verdadeiro Deus e rendiam homenagens aos deuses pagãos. Oséias teve três filhos: Jezreel (que significa Deus semeia), Lo-Ruama (que significa Sem Compaixão) e Lo Ami (que significa Não-povo-meu). Esses nomes também tinham a finalidade de denunciar perante o povo as relações “adúlteras” dos seus reis com os deuses estranhos. Por meio das palavras do profeta, Javeh dizia ao povo hebreu: “Eu os desbastei por meio dos profetas, arrasei-os com as palavras de minha boca, como luz, expandem-se meus juízos; quero amor, e não sacrifícios, conhecimento de Deus, mais do que holocaustos”. (Os 6, 5) Pouco tempo depois, ocorreu a invasão de Israel pelos assírios, em 565 a.C., levando o povo a um dos vários regimes de escravidão a que se submeteram em sua história. Como de outras vezes, o povo e seus líderes não conseguiram entender as mensagens divinas transmitidas pelos profetas.


No evangelho de Mateus, lido neste domingo (Mt 9, 9-13), o evangelista narra a sua própria vocação. Estava ele na sua banca de cobrador de impostos, quando Jesus passou, olhou para ele e disse; Segue-me. Mateus certamente conhecia Jesus, pois morava em Cafarnaum, a cidade onde Jesus viveu por muito tempo e ali exerceu sua missão de pregador e fez muitos milagres. Mas, na sua condição de cobrador de impostos, personagem odiado e rejeitado pela população, ele nunca ousou aproximar-se de Jesus e muito menos esperava um dia fazer parte do grupo dos escolhidos. Quando Jesus o chamou, ele imediatamente levantou-se, abandonou a banca de cobrança e levou Jesus para almoçar em casa. Outros cobradores de impostos, ao tomarem conhecimento do fato e também quase sem acreditar naquilo, foram até a casa de Mateus para certificar-se e foram também convidados para almoçar com Jesus. Aquilo tudo chamou também a atenção dos ruidosos fariseus, que estavam o tempo todo procurando algo no comportamento de Jesus para acusá-lo, isso era um prato cheio. E perguntavam aos discípulos: por que o vosso Mestre faz refeições com os publicanos e pecadores? Ao ouvir o protesto, Jesus dirigiu-se a eles, repetindo o profeta Oseias: vocês ainda não entenderam o que disse o profeta Oseias? Deus diz que quer misericórdia, não holocaustos. Não são os sadios que precisam de médico, e sim os doentes. A minha missão é chamar os pecadores, não aqueles que se consideram justos. Mais uma vez, os fariseus saíram resmungando, porque nunca compreendiam nem aceitavam as atitudes de Jesus.


Meus amigos, essa advertência do profeta Oseias, repetida por Jesus, deve ecoar também nos nossos dias, na nossa conduta de cristãos. Oseias e Jesus recriminavam os hebreus por causa da sua preocupação com o formalismo religioso. Para os fariseus, o importante e suficiente era cumprir o preceito da Lei de Moisés com plena exatidão, uma conduta religiosa marcada pela exterioridade do cumprimento, sem o comprometimento interno do espírito, sem a conversão do coração. Pagar o dízimo, fazer o jejum, imolar os animais de acordo com os ritos mosaicos, isso era tudo. Daí vem a advertência de Javeh: quero misericórdia, não holocaustos. Os rituais exteriores são destituídos de valor, se não forem acompanhados da atitude interna de amor a Deus e ao próximo. É lamentável que, nos dias de hoje, ainda se observem pessoas que se dizem religiosas porque vão à missa aos domingos, rezam o terço, fazem o sinal da cruz ao passar na frente da igreja, se ajoelham diante do Santíssimo, fazem abstinência de carne na sexta feira santa, etc., mas essas atitudes são realizadas como práticas da tradição, costume de família, educação recebida na infância, cujo real significado aquela pessoa nunca buscou aprofundar ou compreender. Fazendo a ligação com a advertência do profeta, estes são os holocaustos, mas que para Deus não são suficientes e nem mesmo necessários. O que tem valor mesmo é a misericórdia, isto é, a conversão do coração, aquilo que significa a palavra “misericórdia” na sua etimologia: ter compaixão (miserere) com o coração (cordis). As práticas de caridade, o amor ao próximo, a ajuda ao irmão necessitado, a coerência de vida, até (pode não parecer) o cuidado com o ambiente faz parte disso, porque quem detona o meio ambiente está criando problemas para os demais seres vivos, pessoas e animais. O Papa Francisco escreveu uma carta encíclica com o título Fratelli tutti, na qual ele chama a atenção para a necessidade de se criar uma “consciência ecológica” como parte das obras de misericórdia e das práticas de caridade recomendadas no Evangelho. O cuidado da “casa comum” é também um meio de exercer a caridade para com o próximo, de forma indireta, mas igualmente eficaz.


Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Romanos (4, 18-23), o apóstolo chama a atenção do leitor para a inquebrantável fé de Abraão, que não perdeu a esperança, apesar de tudo parecer trabalhar contra ele. Era a idade avançada dele, era a esterilidade de Sara, depois veio a ordem de Deus para sacrificar o filho, as coisas pareciam estar ao contrário da promessa que Javeh fizera a ele, dizendo que ele teria uma grande descendência. As contrariedades não abalavam a sua fé, mas contribuiam para torná-la mais sólida, mais revigorada. E por isso, ele foi justificado, ou seja, a sua atitude de fé converteu-se em justiça a seu favor, para que todos os contratempos fossem superados. Abraão é o exemplo do crente que praticou a misericórdia, neste particular, o exemplo de Abraão faz o contraponto com a superficialidade dos hebreus, contemporâneos de Oseias, e dos fariseus, contemporâneos de Jesus. Quando as circunstâncias pareciam-lhe opostas, ele não abandonou a sua fé e nem apoiou-se em práticas rituais estéreis, mas manteve-se inabalável na sua confiança na promessa divina. Isso é o que se pode colocar como exemplo da religião praticada com o coração, como atitude de interioridade. Essa conduta de Abraão foi colocada como modelo por Jesus em várias ocasiões, quando se referia a alguém que viveu comprometido com a sua fé, sobretudo diante dos fariseus incrédulos e amantes das práticas religiosas exteriores. Ao falar que a fé de Abraão foi-lhe creditada como justiça, o apóstolo Paulo complementa: “ao dizer isso, a Escritura visa não só à pessoa de Abraão, mas também a nós, pois a fé será creditada também para nós que cremos naquele que ressuscitou dos mortos”. (Rm 4, 24)


Caros amigos, recordando o Catecismo, lembremo-nos que as obras de misericórdia são:1 Dar de comer a que tem fome; 2 Dar de beber a quem tem sede; 3 Dar pousada aos peregrinos; 4 Vestir os nus; 5 Visitar os enfermos; 6 Visitar os presos. 7 Enterrar os mortos, seguindo aquele padrão bíblico comum do número 7. Se observarmos bem, são atitudes de humanidade, de respeito ao próximo. E lembremo-nos também que colocá-las em prática não deve ser uma prática de mero formalismo, mas uma atitude de vivência interior. Sempre que tivermos ocasião de fazer o bem a alguém, esteja aquilo elencado nas sete regras cima ou não, essas práticas bonitárias são igualmente obras de misericórdia.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 3 de junho de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE - 04.06.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – DOMINGO DA SANTÍSSIMA TRINDADE - 04.06.2023


Caros Confrades,


Neste domingo após Pentecostes, a liturgia celebra a festa da Santíssima Trindade, a comunidade imensa e una, como diz o cântico litúrgico. A imagem do Deus Uno e Trino é o maior mistério que Jesus revelou na sua pregação, algo que os apóstolos só entenderam após o Pentecostes, e essa verdade é o centro da fé cristã. Nenhuma outra religião tem a fé fundamentada em um Deus que é uno e se conforma em três pessoas. Alguns historiadores das religiões quiseram relacionar a Trindade cristã com as tríades de divindades egípcias ou indianas, mas a comparação não se aplica, porque a Trindade cristã é trina e também una e as demais não são. No Antigo Testamento, o povo hebreu conhecia apenas o Deus da aliança, Javeh, o todo poderoso mas também o terrível. A revelação divina no Antigo Testamento a Moisés foi, então, apenas parcial. Somente a encarnação de Cristo trouxe a imagem completa do Deus da aliança, de modo que, por Ele, foi celebrada uma Nova Aliança, agora com o Deus Unidade e Trindade. Esse é o significado do Novo Testamento.


Na primeira leitura, retirada do livro do Êxodo (Ex 34, 4-9), lemos o diálogo de Moisés com Javé, logo após haver recebido as tábuas da lei. Moisés descia do monte com as tábuas na mão e pediu clemência a Javé por aquele povo, pois ele já sabia que seria difícil a missão dele como líder, que devia levar todos ao cumprimento daquela lei. Conhecendo as suas tribos, Moisés ficou preocupado e foi logo pedindo a Javé: tem paciência com esse povo, que é um povo de cabeça dura, e perdoa-lhes os pecados, acolhe-os como Teu povo. É exatamente essa a imagem de Javé que predomina no Antigo Testamento: um Deus exigente, irascível, que aplica grandes castigos por causa das atitudes contrárias à lei, mas, ao mesmo tempo, misericordioso e sempre pronto a perdoar. Era essa a figura de Deus desenhada na mente do povo hebreu e que Jesus veio desfazer, quando ensinou que Deus é amor. Era muito difícil para aqueles hebreus moldarem mentalmente uma nova compreensão do Deus da aliança, esse foi o grande esforço pedagógico de Jesus, tanto no grupo dos apóstolos quanto nas discussões com os fariseus e escribas. Além de ser a mais verdadeira expressão da bondade e da misericórdia, esse Deus ainda é múltiplo, sem deixar de ser um. Convenhamos, foi exigida dos hebreus uma mudança tão radical na compreensão que tinham acerca de Javé, que eles não conseguiram processar e aceitar. E na confusão dessa dúvida, terminaram por condenar à morte Aquele que veio trazer a notícia.


A figura de Deus como personalidade una e trina foi, de fato, a grande novidade trazida pela revelação de Cristo. São João, no prólogo do seu evangelho, foi quem melhor sintetizou a doutrina da Trindade: no princípio, o Verbo estava em Deus e o Verbo era Deus. Depois, o Verbo se fez gente e todos nós o vimos. João Batista viu o Espírito descer do céu e repousar sobre ele. E por ele recebemos a plenitude da graça. Esse é o grande mistério. Quando nós falamos em mistério da nossa fé, no sentido etimológico grego, estamos dizendo algumas verdades desconhecidas, algumas informações que antes estavam escondidas, mas que nos foram trazidas por Cristo; isto é o que também chamamos de revelação. Portanto, mistério e revelação são conceitos equivalentes.


As discussões e as tentativas de compreensão sobre a informação trazida por Cristo acerca da Trindade causaram muita celeuma nas primeiras comunidades cristãs, tendo sido objeto de diversas explicações doutrinárias, algumas delas consideradas heréticas, porque não admitiam a mesma natureza do Pai ao Filho e ao Espírito Santo. Dessas doutrinas, as mais famosas e que tiveram mais adeptos foram o arianismo e o monofisismo. O arianismo, defendida por um bispo de nome Ario, ensinava que Cristo é filho de Deus, mas não é igual a ele, seria uma espécie de semideus. O monofisismo ensinava que Cristo tinha apenas uma natureza, a divina, e a sua humanidade era apenas aparente. Algo como se fosse um fantasma divino visível. Essas doutrinas contraditórias foram discutidas e rejeitadas. Por fim, a questão foi definida nos Concílios de Nicéia (325) e Constantinopla (381), quando foi composto o “symbolo”, isto é, o resumo doutrinário que nós chamamos de “credo” e o rezamos na missa. Tanto o arianismo quanto o monofisismo foram recusados e foi confirmada a doutrina das duas naturezas (divina e humana) em Jesus Cristo e também foi confirmada a doutrina de Maria como mãe de Deus e não apenas mãe do filho humano de Deus. O Concilio de Nicéia irá completar 1.700 anos em 2025 e a sua doutrina continua sendo rezada e ensinada.


A segunda leitura, extraída da carta de Paulo aos Coríntios (2Cor 13, 11-13), traz apenas três curtos versículos, cuja finalidade é muito mais demonstrar como o apóstolo Paulo, logo nos primeiros tempos do cristianismo, ensinava a doutrina da Trindade. A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós ” (2Cor 13, 13) Esta antífona é rezada no início das missas. Em todas as suas cartas, Paulo faz questão de sempre aludir às três pessoas divinas, pois estas são o ponto central da nossa fé. A partir das lições de Paulo, as orações e invocações litúrgicas passaram a adotar sempre a referência à Trindade e sempre terminam com a invocação clássica: por Jesus Cristo, que com o Pai e o Espírito Santo vive e reina para sempre. A demonstração de que a Trindade está no centro da vida cristã se verifica pela frequência com que a invocamos em todas as orações e ações. É comum as pessoas sempre iniciarem ou concluírem uma atividade com o sinal da cruz, que não é outra coisa senão uma invocação da Trindade.


É interessante examinar o cuidado linguístico que os teólogos redatores do Credo tiveram ao compor o resumo simbólico das verdades da fé: o Filho é gerado, não é criado. Gramaticalmente, as duas palavras até são sinônimas, mas no linguajar teológico, faz-se a diferença para explicar que o mundo, as pessoas, as coisas finitas em geral foram criadas por Deus, mas o Filho foi gerado. Esta diferença conceitual significa que o Filho tem a mesma natureza do Pai, porque foi por ele gerado, enquanto as coisas do mundo não têm a mesma natureza do Criador. Em relação ao Espírito Santo, o Concílio de Constantinopla definiu que o Espírito procede do Pai e do Filho. Não utiliza nem o verbo gerar nem criar. O Espírito Santo origina-se de uma relação de amor entre o Pai e o Filho. Teologicamente, afirma-se que o Filho é o Verbo (a palavra) do Pai que, de tão poderosa, torna-se outra pessoa divina. Assim se explica teologicamente este grande mistério, que a nossa racionalidade não consegue entender. Na Idade Média, Santo Tomás de Aquino foi socorrer-se das categorias de Aristóteles não para explicar a verdade trinitária, porque esta não comporta nas cavidades do intelecto humano, mas para justificar, perante os adversários do cristianismo que, embora não sendo racional esse conceito, por outro lado, não encerra uma contradição e, por isso, não é contrário à razão. O fato de ser incompreensível não é porque contenha algo impossível de existir, mas apenas porque as limitações da nossa capacidade racional nos impedem de entender. Daí ser necessária a fé, que complementa a razão. Todos se lembram daquele famoso poema de Sto Tomás, do qual se cantam duas estrofes quando tem a bênção do Santíssimo Sacramento. Sto Tomás escreveu exatamente isso que eu repeti acima: a fé vem em socorro da racionalidade. Vou escrever em latim, para ficar mais original: Tantum ergo sacramentum veneremur cernui. Et antiquum documentum novo cedat ritui, praestet fides suplementum sensuum defectui. Traduzindo a última frase: que a fé forneça um suplemento para a falha dos sentidos, isto é, que a fé ajude a completar aquilo que os sentidos sozinhos não conseguem perceber.


O trecho do evangelho de hoje (Jo 3, 16-68) não me pareceu bem escolhido para a festa da Santíssima Trindade, porque fala apenas do Pai e do Filho, não faz uma referência ao Espírito Santo. Há outros trechos mais significativos, que fazem referência às três pessoas divinas. Neste, apenas de forma indireta, quando João alude ao Espírito, ao afirmar que “Deus amou tanto o mundo que mandou seu Filho unigênito...” (Jo 3, 16). Podemos entender que esse Amor sem medida é a pessoa do Espírito divino, como concluiu o Concílio de Constantinopla ao compor a redação final do Credo: o Espírito é fruto de uma relação de amor entre o Pai e o Filho, então, o amor do Pai para com o mundo, ao ponto de enviar o seu próprio Filho, é também uma afirmação indireta da pessoa do Espírito Santo.


Meditemos sobre essa verdade imensa e una, que é de fato o elemento central da nossa fé cristã. Se tivermos sempre presente na mente essa verdade, as nossas atitudes cristãs terão muito mais sentido.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos