COMENTÁRIO LITÚRGICO – 11º DOMINGO COMUM – A MISSÃO – 18.06.2023
Caros Confrades,
Prosseguimos com o ciclo litúrgico do tempo comum, com o 11º domingo. Nas leituras de hoje, a liturgia nos propõem para reflexão o tema dos “escolhidos” por Deus para a missão. Na leitura do Êxodo (cap. 19), Javeh diz a Moisés que escolheu aquele povo de Israel para ser um reino de sacerdotes e uma nação santa. No evangelho, Mateus destaca nominalmente os doze apóstolos, a quem Jesus irá confiar a tarefa de serem continuadores da sua missão. Transferindo esse conceito dos escolhidos de Deus para o mundo atual, hoje somos nós os escolhidos, a sua Igreja, os seus seguidores, um único “povo”, apesar de distribuído em diversas denominações religiosas aparentemente díspares. A proposta de Jesus, no sentido de que “todos sejam um”, ainda se encontra em fase de construção, pois a unidade dos seus discípulos ainda não foi alcançada. E nós somos responsáveis por esse compromisso, através da nossa adesão batismal.
Na primeira leitura de hoje, temos um trecho do livro do Êxodo (cap. 19), narrativa que antecede o episódio da entrega das tábuas da lei a Moisés. Depois de três meses de caminhada pelo deserto, o povo acampa ao pé do monte Sinai. Moisés sobe o monte, atendendo ao chamado de Javeh, que manda, através dele, um recado para o povo: “se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis para mim a porção escolhida dentre todos os povos” (Ex 19, 5). Na ocasião, Javeh manda Moisés convidar todo o povo para uma “reunião” com Ele no dia seguinte, quando aparece ao povo no meio de uma fumaça espessa, como se todo o monte Sinai estivesse em chamas. No capítulo adiante, tem-se a narração da entrega dos dez mandamentos, os quais sintetizam as exigências de Javeh, para que o povo de Israel cumpra a sua missão de ser sua nação santa e o seu povo eleito.
Um fato curioso, nesse contexto, é que atualmente não se sabe com certeza onde fica localizado o monte Sinai. Mesmo tendo sido esse local o palco da confirmação da aliança de Javeh com os descendentes de Abraão, onde houve a entrega dos mandamentos, o lugar geográfico do monte Sinai continua sendo motivo de dúvidas e discussões entre os biblistas. Há três locais prováveis, de acordo com os estudiosos da Terra Santa: 1. segundo a tradição mais antiga, identifica-se o local como Jebel Mussa ("a Montanha de Moisés"), localizada entre as Montanhas de Granito ao sul da Península do Sinai, tendo sido esse o provável caminho seguido pelos hebreus quando fugiam do Faraó, além de ser uma rota utilizada desde antigamente pelos comerciantes de pedras preciosas vendidas na região do Nilo; 2. a segunda opção é o Monte Karkom, localizado ao sul de Israel, muito próximo da fronteira egípcia, montanha que fica num local sagrado importante durante milênios, está coberta com milhares de escrituras antigas e artes em pedra, que pode ser datada até o ano 4000 a.C; 3. a terceira opção é o monte Jebel el-Lawz, na Arábia Saudita, que fica numa região conhecida como Midian, na época bíblica. Os defensores desta terceira teoria apontam o fato de que Moisés estava nesta região, porque tinha consultado com seu sogro Jetro, um sacerdote Midianita, antes de subir o Monte Sinai (Ex. 18:1). O dilema permanece insolúvel e talvez nunca seja esclarecido, porque Moisés subiu sozinho ao monte. Mas isso não é realmente importante, porque mais significativo do que o local físico, é o legado de fé e tradição que dali se iniciou.
No evangelho de Mateus, lido neste domingo (Mt 9, 36), Jesus expressa compaixão por aquela multidão que o segue, percebendo as pessoas cansadas e abatidas “como ovelhas sem pastor”. Então, Jesus confia aos apóstolos a missão de serem guias desse povo, conferindo-lhes diversos dons para serem usados em benefício deles (curar doenças, expulsar espíritos maus, ressuscitar mortos…), dons que se perpetuam no poder da hierarquia da Igreja. O que se lamenta é que essas palavras de Jesus sejam ainda hoje interpretadas em sua literalidade e muitas pessoas esperam encontrar nos cultos religiosos a solução de seus males físicos e psicológicos, como se a oração fosse uma fábrica de milagres. Obviamente, os milagres existem e muitos são os testemunhos deles, no entanto, o milagre se opera pela fé, não basta dizer “Senhor, Senhor”. É decepcionante observar-se como os cultos religiosos têm-se tornado espetáculos de ilusionismo religioso, sobretudo em determinadas organizações religiosas, que aproveitam isso para promoverem a venda de “unções”, de objetos abençoados, além de apresentarem simulações de atos miraculosos, que seduzem pessoas crédulas, mas desinformadas. Não foi esse, certamente, o objetivo pretendido por Jesus Cristo para os seus enviados. Ainda vigora a exortação de Javeh ao sopé do Sinai: se ouvirdes a minha voz e guardardes a minha aliança, sereis um reino de sacerdotes e uma nação santa. Após mais de três mil anos desses fatos, fica parecendo que esse objetivo ainda não foi alcançado.
Continuando a leitura do trecho do evangelho de Mateus, chega-se a um conjunto de frases ditas por Jesus, que suscitam confusão na mente do leitor. Depois de denominar os doze apóstolos, o evangelista põe na boca de Jesus algumas orientações desconcertantes (Mt 10, 5-7): “'Não deveis ir aonde moram os pagãos, nem entrar nas cidades dos samaritanos! Ide, antes, às ovelhas perdidas da casa de Israel!'”. Que significa “não ir aonde moram os pagãos”? Pois não são eles, os pagãos, que devem receber o anúncio da mensagem cristã para se converterem e crerem no evangelho? Que significa “não entrar nas cidades dos samaritanos”? Samaritanos e judeus não fazem parte do mesmo povo da aliança, aqueles que atravessaram o deserto sob o comando de Moisés? Para superar essa dificuldade, devemos entender que, segundo Mateus, a pregação deve ser dirigida, preferencialmente, “as ovelhas perdidas da casa de Israel”, isto é, aos outros judeus, àqueles que não aceitaram Jesus nem creram na sua mensagem. Mateus escreveu seu evangelho para as comunidades judaicas dispersas. Percebe-se aí que a preocupação do evangelista Mateus é com a conversão dos judeus, daqueles mesmos que crucificaram Jesus, pois para eles a pregação de Cristo foi dirigida em primeiro lugar. Esse fato pode ser melhor compreendido se considerarmos que o texto original do evangelho de Mateus foi escrito em aramaico e só depois traduzido para o grego, enquanto os demais evangelhos foram escritos originalmente em grego. A tradução portuguesa usa o vocábulo “pagãos”, mas no texto latino a palavra é “gentium”, isto é, os gentios, os povos não judeus, na prática, os gregos, que eram a maioria na região do Mediterrâneo. E se percebe também o ranço de xenofobia do autor em relação aos Samaritanos, por causa das dissensões entre os reinos do norte (Israel - capital Samaria) e do sul (Judá - capital Jerusalém), quando os filhos de Salomão, após a morte deste, brigaram e o reino foi dividido em duas partes. Jesus bem que tentou promover a união dessas nações, o que está bem claro no episódio da Samaritana, mas a desavença persistia e o escritor do texto evangélico demonstra isso. Fato notório é que essas “recomendações” só constam no texto de Mateus, não havendo referência a isso nos outros evangelistas.
A carta de Paulo aos Romanos, de certo modo, contradiz o texto de Mateus, pois os gentios, isto é, os não-judeus, os romanos e gregos eram exatamente os povos aonde os apóstolos não deveriam ir, foi para eles que Paulo se dirigiu. Diz Paulo (Rm 5, 8): “a prova de que Deus nos ama é que Cristo morreu por nós, quando éramos ainda pecadores”. Se tivesse prevalecido a ideia de Mateus, a mensagem de Cristo não teria chegado aos gentios e nem a nós. E complementa Paulo (Rm 5, 10): “Quando éramos inimigos de Deus, fomos reconciliados com ele pela morte do seu Filho”. Por outras palavras, Paulo está nos dizendo que o conceito da “nação santa” não se aplica exclusivamente ao povo judeu que, originalmente, recebeu a pregação de Cristo (e nem acreditou nele), mas inclui também a nós, os gentios, isto é, aqueles que não ouviram Jesus Cristo falar, no entanto, acreditaram nele sem ter visto. E agora, já estando reconciliados, seremos salvos por seus méritos.
Caros amigos, a construção da “nação santa”, do único povo de Deus, da unidade de todos os cristãos e, mais ainda, da união de todos os crentes monoteístas continua sendo o grande desafio do ecumenismo, que a Igreja vem defendendo, e que nem sempre é bem compreendido. O Papa Francisco colocou esse objetivo como um dos preferenciais da sua missão e trabalha muito para isso, apesar das incompreensões. Façamos, cada um, a nossa parte nessa missão.
Cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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