COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DE CRISTO REI – REINO DA CARIDADE – 26.11.2023.
Caros Confrades,
Neste domingo, que encerra o ano litúrgico, a Igreja celebra a festa de Cristo Rei do Universo. Recordando um pouco a história, esta celebração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, num contexto político internacional conturbado, período entre as guerras mundiais e com profusão de governos autocráticos e ditatoriais em vários países da Europa. A intenção do Papa era chamar a atenção do mundo para o “reino” de Cristo, que supera as divisões políticas e as disputas pelo poder material, pois o seu mandamento supremo é a caridade para com os irmãos. Particularmente, eu não vejo com simpatia essa festividade no contexto sociopolítico contemporâneo, pois falar em reinado não condiz com o exemplo histórico de Cristo, que sempre recusou honrarias e não gostava de ser chamado de chefe, muito menos de Rei.
Convém ainda lembrar que na cruz de Cristo, Pilatos mandou colocar a inscrição “rei dos judeus” como um escárnio, não como um elogio, então a inspiração litúrgica para essa memória litúrgica, por melhor que tenha sido a intenção do Papa, bem que poderia ser repaginada. Trata-se de uma festa da igreja universal, não apenas no Brasil, o que torna mais difícil ainda qualquer alteração, porque, com certeza, muitas vozes de protesto se levantariam. Mas o fato é que os símbolos de realeza e de triunfalismo religioso nos dias de hoje não são aceitos de bom grado pelas demais igrejas, o que trama contra o ecumenismo, uma das principais metas buscadas pelo Papa Francisco. Em diversas partes do mundo, surgem críticas à atuação do Papa, justamente porque ele não segue essa matriz tradicional da “realeza” de Cristo, mas do Cristo pobre e presente junto às pessoas mais necessitadas. Esse é o exemplo que o Papa não tem apenas pregado mas, sobretudo, demonstrado em suas ações pastorais.
Pois bem, dada a completa modificação da conjuntura histórica e também dadas as novas estratégias adotadas pela Igreja Católica romana, as leituras litúrgicas exigem de nós um maior esforço mental para ajustá-las a esse estado de coisas. A primeira leitura, do livro do profeta Ezequiel, habitualmente enigmático, no trecho lido na liturgia de hoje, faz referência às muitas ovelhas que estão dispersas e que serão resgatadas por Deus. Porém, comete um erro, na época justificável, de fazer distinção entre ovelhas, carneiros e bodes. Esse mesmo erro referencial será também cometido por Mateus, na distinção entre ovelhas e cabritos, comentarei isso mais adiante.
Por sua vez, a carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 15, 20-28) contém aquela famosa e polêmica comparação entre Adão e Jesus Cristo, que traz dificuldades teológicas para a harmonização entre a teologia e a ciência: “por um homem veio a morte, e é também por um homem que vem a ressurreição dos mortos. ” (15, 21) Conforme todos sabem, na perspectiva científica, não se sustenta mais a convicção de que toda a humanidade se originou apenas de um único casal, porém esse era o entendimento na época de Paulo. E depois, Paulo faz uma afirmação que, a meu ver, está em total desacordo com a ideia de Cristo sobre o seu “reino”: “Pois é preciso que ele reine, até que todos os seus inimigos estejam debaixo de seus pés.” (15, 25) Ora, essa proposta de subjugar os inimigos é bem típica da época do império romano e era um arquétipo na cabeça de Paulo. No entanto, o “reino” que Cristo veio fundar é o reino do amor, cujo passaporte para nele adentrar é a caridade e, assim sendo, não está conforme a ele a imagem de submeter os inimigos debaixo dos seus pés. Os possíveis inimigos serão conquistados para fazerem parte também eles do reino da caridade, não para serem submetidos, a fim de que haja um só rebanho e um só Pastor.
Por isso, precisamos filtrar a doutrina de Paulo para a ajustarmos à cosmovisão contemporânea. E Paulo novamente insiste naquela ideia mecanicista da vinda de Cristo “dentro de alguns dias”. Ele, Paulo, e os cristãos da época, pensavam que o retorno de Cristo era uma questão de poucos dias, Paulo pensava que ainda estaria vivo para encontrar-se com Cristo quando ele viesse. Do mesmo modo, os demais cristãos entendiam que essa vinda gloriosa de Cristo seria iminente. Só com o passar do tempo e com o aperfeiçoamento da reflexão teológica esse pensamento evoluiu.
Um semelhante contorcionismo mental será necessário para ajustarmos a compreensão do texto do evangelho de Mateus, lido na liturgia de hoje (Mt 25, 31-46). Novamente, precisamos ter em mente a cosmologia da época, fundada no geocentrismo de Ptolomeu, que era o conhecimento científico dominante. Mateus coloca na boca de Jesus todo um discurso que é, provavelmente, muito mais resultado da crença da comunidade do que de palavras do próprio Cristo. Comparemos com o texto de João, no interrogatório de Jesus. Quando Pilatos perguntou-lhe: “então, és rei?” Jesus respondeu: o meu reino não é deste mundo. (João 18, 34) Comparando com a descrição feita por Mateus no evangelho deste domingo sobre a vinda de Jesus descendo em sua glória, acompanhado dos anjos e sentado num trono glorioso, percebe-se que essa imagem é muito mais uma criação de uma cabeça pensante humana do que algo que se perceba nos outros discursos de Cristo acerca do reino de Deus. De fato, o evangelista faz uma descrição bem conforme o modelo terreno dos reis de sua época, que é também como ainda hoje as imagens de Cristo Rei são representadas: com um vistoso manto rubro, uma coroa real, um cetro de ouro, como eram os protótipos dos reis da antiguidade. Mas o Cristo Rei não precisa se apresentar com esse aparato imperialista, porque o Seu reino não é deste mundo, é o reino da caridade, do amor ao próximo, não é da ostentação nem da dominação.
Uma outra comparação totalmente desproporcional é a que o evangelista faz, ao distinguir as ovelhas dos cabritos (25, 32-33), colocando as ovelhas à direita e os cabritos à esquerda. Eu diria que é uma comparação infeliz, porque está figurando os infiéis como cabritos, da mesma forma como o profeta Ezequiel havia diferenciado entre ovelhas, carneiros e bodes (Ez 11, 17). Meus amigos, essa metáfora é totalmente fora de propósito. Deve ter sido dela que os artistas medievais tiraram aquela figura horrível de representar o demônio com pés de bode, ou seja, bodes, cabritos são imagens demoníacas. Quero crer que Jesus Cristo não tenha feito esse tipo de comparação, porque contém uma odiosa discriminação, tenho por certo que da boca de Jesus não sairiam palavras com tais significados depreciativos. Ademais, eu também tenho por certo que, na real presença de Cristo, a “fila da esquerda” estará totalmente vazia, pois todos (ovelhas, carneiros, bodes e cabritos) estarão na “fila da direita”, porque o reino de Cristo é o reino do amor e o passaporte para sua entrada é a caridade. Percebe-se isso nas ações que Ele valorizou praticadas por aqueles que ficaram na fila da direita: estava com fome e me destes de comer, com sede e me destes de beber, era estrangeiro e me recebestes na vossa casa... ou seja, em uma só palavra, é a prática da caridade.
Vejamos agora o que disse o Papa Francisco, no sermão de uma missa da festa de Cristo Rei, algum tempo atrás, essa sim, uma mensagem totalmente coerente com a mensagem de Cristo: “A Salvação não começa confessando a realeza de Cristo, mas imitando as obras de misericórdia por meio das quais Ele realizou o Reino do amor, da proximidade e da ternura com os nossos irmãos. Disso dependerá a nossa entrada ou não no Reino de Deus”. Perfeito esse ensinamento do Papa, desmistificando aquela imagem triunfalista tradicional do Cristo Rei no estilo medieval. Proclamar a realeza de Cristo é agir como Ele agiu e como Ele ensinou que deveríamos agir: dando alimento aos famintos e água aos sedentos, vestindo os nus e recepcionando os estrangeiros. Se não fizermos isso, não adianta tentar se colocar sob o manto do Cristo Rei, porque não haverá espaço.
Meus amigos, concluo com uma ideia que já tive ocasião de expressar em outra oportunidade: entendo a figura de Cristo como rei não no sentido da realeza terrena, mas como o soberano da verdade, da justiça, da paz, da igualdade e da fraternidade e, para isso, Ele não precisa nem de um manto nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz.
Cordial abraço.
Antonio Carlos
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