COMENTÁRIO LITÚRGICO – IMENSA MULTIDÃO (TODOS OS SANTOS) – 05.11.2023
Caros Confrades,
A liturgia deste domingo comemora a festa de Todos os Santos. Comumente, quando se fala em “santos”, vem logo à mente aqueles cristãos e cristãs que foram canonizados, que possuem aquela auréola na cabeça e estão nos altares dos templos. No entanto, tomando como referência a leitura do Apocalipse, o apóstolo João teve a visão de “uma grande multidão, gentes de todas as nações, tribos, povos e línguas, que ninguém podia contar”, composta por aqueles que lavaram e alvejaram suas vestes no sangue do Cordeiro. Essa multidão, que se sucedeu à visão joanina daqueles assinalados, os membros das doze tribos de Israel, somos nós, os cristãos espalhados pelos diversos quadrantes do universo conhecido, e que poderão ser ainda mais, se pensarmos na possibilidade de outros mundos habitados e ainda não conhecidos. Portanto, o título de santos cabe a todos nós.
Nessa época do ano, ocorre em Juazeiro do Norte uma das suas mais concorridas romarias, a de finados. Era uma devoção pessoal do Padre Cícero (as almas do purgatório), que ele repassou para os fiéis de sua freguesia e se transformou num grandioso fenômeno sócio-religioso. Ali se reúnem anualmente cristãos provenientes dos diversos Estados do nordeste para rezar e expressar sua fé. Meus amigos, parece-me óbvio que essa multidão de fiéis que lota a cidade de Juazeiro do Norte nesses dias é uma representação exemplar da “imensa multidão” descrita no texto de João, tanta que ninguém podia contar. Alguém poderá contradizer: ah, mas isso não é fé cristã, é cultura, é fanatismo religioso. Seja qual for o nome que queiramos dar, o fato é que, para aquelas pessoas que experimentam isso, é a mais autêntica fé do modo que eles sabem melhor expressar. Vê-se isso nos seus semblantes, nas suas atitudes. Eu vi isso em Juazeiro, na vez em que estive lá nesse período.
Na leitura litúrgica de hoje do Apocalipse (Ap 7, 13), João dialoga com um ancião, que lhe perguntou: quem são essas pessoas? João não soube responder e o próprio ancião completou: “São os que vieram da grande tribulação, lavaram e alvejaram as suas roupas no sangue do Cordeiro”. Ora, só podiam ser nordestinos, os que saíram da grande tribulação da seca e foram fortalecer a sua fé batismal nos lugares sagrados de São Francisco e do Padre Cícero. É oportuno salientar que, nos primeiros dez séculos do cristianismo, não havia canonização oficial, quem proclamara os santos era o povo. Somente a partir do primeiro milênio, o Papa atraiu para si essa tarefa de proclamar oficialmente os “santos”. Ora, todos sabemos que o nosso povo já proclamou santo o Padre Cicero, independentemente de qualquer pronunciamento oficial eclesiástico. Assim, se olharmos o fato pela antiga tradição da proclamação popular dos santos, o povo nordestino está seguindo a regra primitiva, mesmo que a hierarquia oficial ainda não tenha feito isso.
Meus amigos, essa é a autêntica fé na comunhão dos santos, a Igreja peregrina se unindo com a Igreja celestial através da fé. Quem nunca esteve presente numa romaria não consegue avaliar o grau de seriedade com que o romeiro se comporta. Uma coisa é a reportagem que se vê pela televisão, outra coisa é o fenômeno que se observa “in loco” e a energia que se sente emanar dessas pessoas. No Apocalipse, João fala no número dos que foram marcados na fronte (Ap 7, 4) para serem salvos, cujo quantitativo era de cento e quarenta e quatro mil. Ora, somente em Juazeiro, na romaria de finados, este número é mais do que quadruplicado. A previsão do apóstolo João deve ser, portanto, calculada com a correção do fator multiplicador do tempo decorrido, sendo mais coerente a passagem do versículo 9, onde ele diz que ninguém podia contar a multidão. Nós não somos descendentes genéticos das doze tribos de Israel, mas todos nós lavamos e alvejamos nossas roupas no sangue do Cordeiro, portanto, também fomos assinalados para a salvação. Se nós computarmos as diversas comunidades de igrejas cristãs, então esse número se torna deveras incontável. Dentro de uma perspectiva ecumênica, todos os que foram validamente batizados, foram assinalados na testa com o sinal da salvação.
A segunda leitura, que também é da autoria de João, complementa o tema acima, quando afirma que desde já somos filhos de Deus, embora ainda não tenha se manifestado em nós o que seremos. Essa manifestação somente ocorrerá no futuro, “quando Jesus se manifestar, seremos semelhantes a Ele, porque o veremos tal como Ele é.” (1Jo 3, 2). Ou seja, pelo batismo, somos assinalados e já podemos ser chamados filhos de Deus, embora essa condição só se resolva de modo pleno na futura morada de todos nós. Este foi o grande presente que Deus nos deu, diz João, o de sermos chamados Seus filhos desde já. E isso é possível por causa da redenção trazida por Cristo, que apagou todos os nossos pecados e nos abriu as portas da morada divina. Essa situação é descrita na teologia como a dialética do “já e ainda não”, isto é, já somos filhos de Deus, porém, ainda não o somos plenamente. O teólogo Francis Scraeffer, no seu livro “A verdadeira espiritualidade” (p. 89), assim explica essa doutrina: “A salvação, no sentido em que essa palavra é usada na Bíblia, é mais ampla do que a justificação. Na salvação, há passado, futuro e, com o mesmo grau de realidade, há presente. A obra infinita realizada por Cristo na cruz traz mais do que justificação ao cristão. No futuro, haverá a glorificação. Quando Cristo retornar, haverá a ressurreição do corpo e a eternidade; mas há também um aspecto em que a salvação é presente. A santificação constitui nosso atual modo de relacionamento com o Senhor, é a nossa conjugação verbal presente na vida de comunhão com Deus”. Achei interessante esse texto e o reproduzi aqui porque, em outras igrejas cristãs, prega-se a justificação do fiel em Cristo, mas o teólogo explica que o conceito de salvação é mais abrangente e muito superior à simples justificação, porque inclui desde a forma da vida atual, no mundo corporal, e se prolonga até a vida definitiva, sendo coerente com a passagem da carta de João citada logo acima (3, 2), “quando Jesus se manifestar”. Esse conjunto de palavras expressa de uma forma dinâmica o estado da nossa vida de fé que, por ora nos deixa ver as coisas como encobertas por um véu, como diz Paulo na carta a Coríntios: “…porque agora vemos por espelho em enigma, mas então veremos face a face; agora conheço em parte, mas então conhecerei como também sou conhecido” [1Coríntios 13].
A riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama a todos de bem-aventurados. Dizer que somos bem-aventurados é o mesmo que dizer que somos santos. Em latim, bem-aventurados = 'beati' (plural de beatus), que é a mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tanto assim que algumas traduções do evangelho usam esta palavra nos textos. Curiosamente, Cristo chama de bem-aventurados todos aqueles que, pelo status social, seriam pessoas desventuradas. Esse assunto se encaixa com um episódio bastante conhecido, narrado no evangelho de Mateus (13, 31), quando Jesus escolheu hospedar-se na casa de Zaqueu. Este era um cobrador de impostos, portanto, um publicano, um pecador público, um excluído do mundo religioso pela hipocrisia dos fariseus. Querendo conhecer Jesus, mas sendo de baixa estatura, ele subiu numa árvore, pensando que iria passar despercebido. No entanto, Jesus conhecia a sua fé e mandou que ele descesse da árvore, pois queria hospedar-se na sua casa. Os fariseus, que sempre estavam por perto, ao verem aquilo, murmuravam: com tantas pessoas honradas e dignas nesta cidade, porque Jesus vai escolher a casa de um publicano para visitar? Pois é, dentro da lógica humana (e do próprio Zaqueu, que não imaginava que isso fosse acontecer), ele estaria fora dos “beati” referidos no sermão da montanha. Mas dentro da lógica de Cristo, a ele foi ofertada a salvação e ele muito que aceitou e, por isso, tornou-se também um “beatus”.
O Papa Francisco, no sermão dirigido certa vez aos fiéis que lotavam a na Praça de São Pedro, lembrou que o nome Zaqueu, em hebraico, significa “Deus recorda”, e fez o seguinte comentário: “Não existe profissão ou condição social, não há pecado ou crime de qualquer gênero que possa cancelar da memória e do coração de Deus um filho sequer. “Deus recorda”, sempre, não esquece nenhum daqueles que criou; Ele é Pai, sempre à espera vigilante e amorosa de ver renascer no coração do filho o desejo de retornar à casa. E quando reconhece este desejo, mesmo que simplesmente manifestado, e tantas vezes quase inconsciente, imediatamente põe-se a seu lado, e com o seu perdão lhe torna mais leve o caminho da conversão e do retorno.” O convite que Jesus fez a Zaqueu, ignorando que ele era um pecador público, assim como o sermão da montanha, no qual Ele exalta as virtudes contrárias ao que o mundo aceita, enche de esperança a todos nós, que ainda estamos na “grande tribulação” e, portanto, sujeitos às maiores adversidades no cumprimento fiel à nossa vocação cristã.
Permaneçamos fiéis ao ensinamento de Cristo, para que possamos ser dignos de participar das suas promessas de santidade.
Cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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