COMENTÁRIO LITÚRGICO – 12º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O MAR DA VIDA – 23.06.2024
Caros Confrades,
Neste 12º domingo do tempo comum, a liturgia nos leva a contemplar a simbologia do mar no contexto bíblico. Dada a sua imensidão, a figura do mar gera uma ideia de grande poder; mas ao mesmo tempo, dadas a sua impetuosidade e sua imprevisibilidade, traz também a ideia de grande mistério, de grande temor, todas essas associadas ao seu imensurável potencial de produção de vida e de alimentos, desde os tempos mais remotos. De acordo com a história bíblica da criação, o mar vem no segundo lugar de importância entre as coisas do universo, logo após a luz. A narrativa bíblica da criação demonstra que, desde tempos muito remotos, a figura do mar sempre impressionou os seres humanos, seja pelos benefícios que proporciona, seja também pelos malefícios que muitas vezes causa. O mar é fonte de vida e de morte, de energia que pode levar à produção ou à destruição. Considerando que a luz é produzida por um astro fora do nosso planeta, temos que o mar é a força terrestre mais poderosa, impávida e ao simultaneamente amedrontadora. Vivemos a nossa vida dentro dele e/ou dependendo dele, seja qual for o sentido que o consideremos.
Na primeira leitura, retirada do livro de Jó (38, 8-11), Javeh fala ao Profeta, de dentro da tempestade, com a sua voz tonitruante: quem fechou o mar com portas, colocando-o em seus limites e dizendo 'até aqui chegarás, e não além'? Quem, senão Ele próprio? Essa fala de Javeh se deu no contexto em que Jó se queixava que Ele o havia abandonado e com isso Javeh vai demonstrar o tamanho do Seu poder, usando a figura do mar. Ora, se o mar é tão poderoso e indomável, aquele que tem poder de dominá-lo é muito mais forte e potente. A grandiosa força que é reconhecida no mar serve de contraponto para comparação com a potência de Javeh, que é muito maior. Por mais que Jó não entenda o que se passa com a sua vida, Javeh lembra ao Profeta, com a sua voz de trovão, que a sua fé deve estar acima e além dos imprevistos dos acontecimentos, pois o poder divino é quem estabelece o controle sobre tudo isso. O texto da leitura litúrgica não vai até o fim desse diálogo entre Javeh e Jó, que é bastante logo, mas para contextualizar, fui em busca da resposta do Profeta. Depois que Javeh expõe a Jó muitas demonstrações do seu incalculável poder, o Profeta finalmente dá-se por convencido e no cap. 40, 4-5, ele ousou balbuciar: “Sou indigno; como posso responder-te? Ponho a mão sobre a minha boca. Falei uma vez, mas não tenho resposta; sim, duas vezes, mas não direi mais nada.” Jó “engole seco as palavras” que disse e não mais se queixa ao Senhor, aceitando a sua condição de vida. A pedagogia do mar levou Jó à consciência de si próprio e lhe rememorou a grandeza do Criador, para que se mantivesse firme na sua fé.
Na leitura do evangelho de Marcos (4, 35-41), a imagem do mar aparece novamente associada a uma grande demonstração de poder por parte de Jesus, com o objetivo de fortalecer-lhes a fé na sua pessoa enquanto Filho de Deus. No final da tarde, Jesus cansado de mais um dia de pregações e peregrinações, vendo que a multidão não se dispersava, pediu aos apóstolos que o levassem para a outra margem do Mar da Galileia. Na verdade, mar não se trata do oceano, o mar comum que estamos habituados a ver, mas sim trata-se de um grande lago alimentado pelas águas do rio Jordão, daí o seu nome ser também Lago de Tiberíades ou Lago de Genesaré, tão extenso, como se fosse um mar. Era ali que os apóstolos exerciam o seu mister de pescadores, quando foram chamados por Cristo para a missão. A distância maior de uma margem a outra é de apenas 13 km, o que não é grande coisa, se compararmos, por exemplo, com a largura do rio Amazonas, cuja distância entre as margens chega a 50 km em algumas paragens, a ponto de não ser possível ver a margem oposta. Nessa escala geográfica, o Mar da Galileia não possui uma tal dimensão de poder quanto o oceano, de modo que se pode até avaliar com um certo exagero na descrição do evangelista Marcos, quando ele diz que “Começou a soprar uma ventania muito forte e as ondas se lançavam dentro da barca, de modo que a barca já começava a se encher, ” (4, 37) dando a impressão de que a embarcação corria risco de afundamento, deixando os passageiros com muito medo. Não deve ter sido tanto assim. Mas, enquanto isso, Jesus dormia tranquilamente indiferente àquele perigo.
A narrativa do evangelista tem o claro objetivo de demonstrar, de um lado, as vacilações na fé dos apóstolos e, de outro, o poder divino de Jesus. Mesmo que a magnitude das ondas não fosse do porte de provocar uma real possibilidade de sossobro, o que está sendo posto em evidência é o fato de que Jesus tem poder de acalmar o vento e dominar o mar. E Jesus pergunta: por que sois tão medrosos? Ainda não tendes fé? Propositalmente, o evangelista adiciona um sutil detalhe: após as ondas acalmarem, os apóstolos perguntam-se entre si: “'Quem é este, a quem até o vento e o mar obedecem?' (4, 41) Seguindo a mesma linha de raciocínio da leitura do livro de Jó, comentada acima, este trecho do evangelho quer chamar a atenção para a origem divina de Jesus e para o seu poder, que é semelhante ao poder do Pai, aquele mesmo que falou a Jó no meio da tempestade. Quem tem poder de estabelecer limites para o mar indomável, senão o seu Criador? Quem tem poder para acalmar as ondas, senão o Filho do Criador? Revela-se nessa narrativa, de forma bastante nítida, o objetivo de provar aos seus leitores que Jesus é o Filho de Deus.
Pois bem. A imagem do barco minúsculo perdido na imensidão do mar é o retrato da nossa vida em meio ao turbilhão dos acontecimentos diários, sobre os quais não podemos interferir e cujo controle escapa às potências do nosso corpo. O nosso ser humano, ridículo e limitado conforme descrito pelo artista popular, está totalmente à mercê dessas ondas turbulentas que sacodem o nosso barco. As dúvidas e incertezas do dia a dia, o risco e o temor que cotidianamente nos afligem, os percalços e desafios do viver diário nos lembram constantemente a nossa pequenez e insignificância. É nesse contexto vital que se constata a importância da nossa fé. Não aquela fé declarada da boca para fora, mas a fé que nos fortifica e nos mantém no caminho, apesar de todas as vicissitudes. Nos dias de hoje, de um modo especial, a violência urbana é um tormento com o qual temos de conviver, porém, apesar disso e mesmo sabendo disso, não podemos nem devemos nos esconder ou nos segregar. A conduta oposta seria ainda uma maior insensatez, ou seja, fazer de conta que nada vai nos afetar, pois a fé nos defende, e deixar de adotar as necessárias precauções. Essa temeridade é um daqueles pecados imperdoáveis, sobre os quais comentamos num domingo recente. A fé responsável exige de nós uma postura de esclarecido compromisso, de conhecimento da realidade, de consciência dos riscos e também de seriedade no cumprimento daquilo que nos compete, cada um fazendo a sua parte pensando não apenas em si próprio, mas também dando sua contribuição para transformar a nossa sociedade num mundo mais justo e solidário, mostrando que é possível viver de forma digna e dignificante.
Esse modelo de vida na fé é o tema da carta de Paulo aos cristãos de Corinto (2Cor 5, 14-17), onde ele diz que “se alguém está em Cristo, é uma criatura nova. O mundo velho desapareceu. Tudo agora é novo.” Esse “mundo novo” ainda não está totalmente implantado, ainda se encontra num processo de instalação e será o nosso exemplo de cristãos, em meio a inúmeras ondas de comportamentos adversos, que irá contribuir para o seu efetivo fazer-se dentro da história. O grande desafio que nos é trazido pelo mundo de hoje é esse de ser cristãos, apesar de todos os apelos contrários. E vejam que nós nem estamos (graças a Deus) naquela situação dos cristãos dos países de maioria islâmica, onde alguns radicais literalmente massacram os crentes, até pelo simples fato de carregarem uma Bíblia. Ainda não vivemos numa atmosfera de intolerância religiosa, onde ser cristão pode ser um motivo de condenação à morte. Digo “ainda não” porque o movimento cristofóbico tem se acentuado tanto nessas últimas décadas, dando sinais de sua presença também no Brasil, de modo que essas publicações nas redes sociais nos trazem um preocupante futuro em relação aos nossos filhos e netos. No mundo cada vez mais secularizado e tendente à intolerância, a liberdade em todos os níveis, inclusive a liberdade religiosa, é um bem muito precioso que nós devemos cultivar com nossa palavra e com nosso exemplo, demonstrando que é possível viver numa sociedade pluralista com respeito à diversidade. Só assim poderemos navegar com um pouco mais de segurança no mar da vida.
Com um cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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