COMENTÁRIO LITÚRGICO – 9º DOMINGO COMUM – O SÁBADO OU O DESCANSO – 02.06.2024
Caros Confrades,
Terminado o ciclo litúrgico de comemoração da Páscoa, a catequese eclesial retorna ao tempo comum, que se prolongará até o Advento. As leituras da liturgia de hoje centram-se num tema que tem sido objeto de controvérsias entre diversas comunidades cristãs: a observância do descanso sabático. No século IV, o Concílio de Niceia colocou um ponto final nessa polêmica para os católicos, ao escolher o domingo, mas o dia do sábado continua a vigorar para os judeus e a discussão persiste entre as diversas igrejas cristãs separadas. Algumas são radicais, começando a observância do sábado logo no por do sol da sexta feira, como é o caso dos Adventistas do Sétimo Dia. Outras são menos rigorosas e outras ainda celebram mesmo o descanso dominical, assim como o catolicismo. Mas essa questão não é simples.
Temos, na primeira leitura (Deuteronômio 5, 12), a ordem taxativa de Javeh: “Guarda o dia de sábado, para o santificares, como o Senhor teu Deus te mandou. Trabalharás seis dias e neles farás todas as tuas obras. O sétimo dia é o do sábado, o dia do descanso dedicado ao Senhor teu Deus. Não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu boi, nem teu jumento, nem algum de teus animais, nem o estrangeiro que vive em tuas cidades, para que assim teu escravo e tua escrava repousem da mesma forma que tu.” As igrejas cristãs que seguem a interpretação literal da Bíblia não admitem outra alternativa. De fato, toda a tradição judaica, dos tempos bíblicos até hoje, observa o descanso no sétimo dia. Jesus observava o sábado, comparecia à sinagoga como todos os judeus, assim também faziam os apóstolos e as primeiras comunidades cristãs. Por que, então, mudou-se o dia do descanso semanal para o domingo, contrariando a determinação de Javeh, observada durante muitos séculos?
Antes de prosseguir nessa temática, é conveniente uma breve explicação sobre a palavra hebraica “shabat”, de onde deriva a palavra ‘sábado’. O substantivo “shabat” é formado a partir do verbo hebraico “shavat”, que significa “parar”, “cessar”. Corresponde ao sétimo dia porque, de acordo com a narração bíblica, Deus criou o mundo em seis dias e no dia seguinte ele “parou para descansar”. Obviamente, Deus não se cansa, essa é apenas uma forma humanizada de nos referirmos à atividade criadora divina. Assim como também os “seis dias” da criação não podem ser entendidos como períodos de 24 horas, como muitos imaginam, misturando o tempo humano com o tempo de Deus. A palavra “dia”, na narração da criação está mais relacionada a um conjunto de ações divinas, não a um certo período de tempo, porque Deus não se limita ao tempo. Pode-se afirmar que a narrativa bíblica, ao referir-se aos seis dias, está justificando, perante a sociedade daquele tempo, a necessidade do descanso corporal, após um certo período de trabalho. Alguns povos da época adotavam a prática dos dez dias, isto é, nove dias de trabalho e um de descanso. Para os judeus, a atividade criadora divina será, então, o parâmetro mais elevado e indiscutível para se fazer o descanso no sétimo dia. Uma nova cultura estava se sobrepondo à antiga. Ademais, na cultura judaica, o sete é considerado o número da perfeição e diversos fatos bíblicos estão relacionados com ele. Compreende-se assim que a descrição da criação divina em seis dias funcionou apenas como um motivo a mais para fortificar a cultura do sete perfeito. Há muitos estudos técnicos para explicar a numerologia bíblica, de modo que se trata de um assunto extenso, que não pode ser simplificado em poucas palavras.
Pois bem. Na religião judaica, além desse “shabat” semanal, que correspondia ao sétimo dia, há diversos “shabatot” (plural de shabat) especiais, na comemoração das datas mais importantes. Por exemplo: antes da Pessach (Páscoa), antes do Purim, antes do Yom Kipur há vários dias sabáticos, não relacionados com o sétimo dia. Quando Arimateia foi pedir a Pilatos para retirar o corpo de Jesus da cruz, por causa do sábado, não era por um dia só, mas sim porque na festa da Páscoa, o shabat demorava sete dias e então o corpo de Jesus entraria em decomposição, porque não poderia ser retirado enquanto não terminasse o período sabático. Essas informações são importantes, porque na nossa cultura, o sábado é apenas um dia de 24 horas, mas na cultura judaica, podia demorar vários dias, e essa ideia deve ser levada em conta para entender diversas passagens da Bíblia.
Na leitura do evangelho de Marcos (2, 23), Jesus se confronta com essa tradição sabática, mostrando que o sábado foi feito para o homem, não o homem para o sábado. Encontrando-se na sinagoga, havia ali um homem com a mão deformada. Pelo costume judaico, não se podia fazer nada no sábado, nenhum tipo de atividade. Por isso, os judeus ficaram observando se Jesus iria operar um milagre no sábado, porque isso seria contrário à lei. Percebendo isso, Jesus pergunta aos presentes: “É permitido no sábado fazer o bem ou fazer o mal? Salvar uma vida ou deixá-la morrer?” Mas eles nada disseram. Jesus, então, olhou ao seu redor, cheio de ira e tristeza, porque eram duros de coração; e disse ao homem: “Estende a mão”. Ele a estendeu e a mão ficou curada.” Jesus mostrou que, sendo Filho de Deus, é senhor também do sábado e que o rigor da lei mosaica devia ser flexibilizado, porque não é a sua observância simples e literal que agrada a Deus. Mais uma vez, Jesus mostrou que cumprir a lei não é observar rigorosamente as suas palavras apenas e que a prática da caridade no sábado é, não só permitida e louvada, mas também agradável a Deus. Livrar alguém do sofrimento num dia de sábado não é ação contrária à lei, nem mesmo sob o ponto de vista rigoroso com que os judeus a consideravam. Mas eles nunca compreenderam isso e tiraram conclusão oposta: se Jesus não observava o sábado, é porque ele não era proveniente de Deus. E buscavam um modo de eliminá-lo, completa o evangelista.
Conforme dissemos acima, as primeiras comunidades cristãs continuaram a observar o sábado, comparecendo às sinagogas, como era o costume de Jesus. Porém, com o desenvolvimento da doutrina cristã, algumas comunidades passaram a observar também o “primeiro dia da semana”, ou seja, o que nós chamamos de “domingo”, em comemoração á ressurreição de Jesus, que ocorreu no primeiro dia da semana. O sábado era observado por obrigação, mas o domingo era observado por devoção. Essa variação era, inclusive, motivo de discussão entre os cristãos gentios (de origem grega) e os judeus convertidos ao cristianismo. Além da observância do sábado, os judeus convertidos também queriam exigir dos cristãos gregos a obrigatoriedade da circuncisão, uma tradição judaica importante, divergência que deu muito trabalho para Paulo pacificar. Pode-se afirmar que não foi apenas a problemática do sábado, mas de um modo geral, dos costumes judaicos foram, aos poucos, absorvidos e repaginados pelo cristianismo.
A transição da observância do sábado para o domingo está associada ainda a outro fato histórico importante. O imperador Constantino, o primeiro a se converter ao cristianismo e a dar pleno apoio às comunidades cristãs, publicou, no ano 321 d.C., um edital com os seguintes termos: “Que todos os juízes, e todos os habitantes da cidade, e todos os mercadores e artífices descansem no venerável dia do Sol.” A “cidade”, no caso, era todo o território romano, ou seja, praticamente, toda a Europa, Oriente Médio, norte da África, o mundo então conhecido. Havia, em Roma, uma religião pagã muito seguida, chamada “mitraísmo”, cuja figura divina central era o Deus-Sol-invicto, que era venerado no primeiro dia da semana. A palavra “domingo”, em inglês, ainda conserva essa referência a isso com o título “sunday” (dia do sol). Em diversos outros idiomas há ainda essa associação. A língua portuguesa é uma das que não mais conserva a tradição. Foi nesse contexto que Constantino, após convertido ao cristianismo, determinou que a natividade de Cristo (Natal) fosse comemorada no dia do Deus-Sol, 25 de dezembro. Foi uma forma de demonstrar que Jesus era o novo Deus-Sol da humanidade. A Igreja Católica, aproveitando a norma estatal de Constantino e considerando aquilo que já era praticado em grande parte das comunidades cristãs, alguns anos depois, no Concílio de Niceia, aprovou a permuta da observância do sábado pelo domingo. Alguém poderá dizer: então, foi o imperador romano que determinou a mudança. Não exatamente. Tratava-se de um costume, que já tinha muita adesão no meio cristão a observância do domingo, então os padres conciliares, aproveitando o fato de ter a seu favor a norma estatal, aprovaram a transferência do descanso semanal para o domingo, que passou a ter esse nome “dominica”, dies Domini, dia do Senhor.
Meus amigos, devemos considerar como o que de fato importa é o dia do descanso semanal, o dia dedicado ao Deus criador. Se este dia for o sétimo, ou o primeiro da semana, é de somenos importância. Apenas numa visão estreita e literal da Bíblia ainda se continua a bradar contra essa mudança. Mas não podemos esquecer que “o Filho do Homem é senhor também do shabat”, isto é, do dia do descanso. Foi o que ele sinalizou, ao ressuscitar no primeiro dia da semana.
Cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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