sábado, 25 de fevereiro de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DA QUARESMA - 26.02.2023

 

COMENTÁRIO LITURGICO – 1º DOMINGO DA QUARESMA – ORIGEM E SIMBOLISMO DO PECADO – 26.02.2023


Caros Confrades,


A liturgia deste 1º domingo da quaresma põe para nossa reflexão o tema da origem do pecado, através da narração bíblica da legendária árvore do bem e do mal, já tantas vezes tema de criações artísticas e sempre motivo de polêmica entre os leitores bíblicos. Logo a seguir, apresenta um trecho de Paulo igualmente polêmico, no qual ele faz um trocadilho sobre a origem do pecado, remetendo o argumento à árvore do paraíso, e lembrando a “tentação” sofrida pela mulher. Na sequência, o evangelho de Mateus vai abordar outro tema controvertido acerca das “tentações” de Cristo. Trata-se de assuntos que precisam ser entendidos com clareza, para evitarem-se discussões inúteis e questionamentos insolúveis. Mais do que narrar um fato, as leituras bíblicas trazem para nossa consideração a simbologia do pecado, para destacar a força da graça divina, que é infinitamente superior.


Na primeira leitura (Gen 2, 7 – 3, 7), temos aquela conhecida história sobre o “fruto proibido”, que teria sido ingerido por Eva e Adão, por influência da serpente. Como já inúmeras vezes tive ocasião de comentar, não se pode realizar interpretação literal dessa legenda, pois ela é simbólica e pedagógica. O seu objetivo é mostrar que a origem do pecado está, em primeiro lugar, na soberba humana de querer igualar-se a Deus e, em segundo lugar, na ousadia da desobediência. Sabe-se muito bem que serpente não fala e nunca falou, além do que a narrativa explora o aspecto da curiosidade feminina, envolvendo a ação da mulher na origem do pecado, fato que se transformou nessa, ainda hoje presente, discriminação social contra a mulher, persistente e resistente, apesar de todo o empenho do movimento feminista mundial. Nem mesmo a inclusão de dispositivos nas leis e na constituição acerca da igualdade dos gêneros consegue força para superar tão arraigado preconceito. As matrizes da cultura hebraica, associadas e reforçadas pela mentalidade greco-romana antiga, colocam raízes demasiado profundas neste comportamento masculino (machismo), que consegue sobreviver a todas as tentativas de extirpá-lo. Essa simbologia do pecado, escondida nos meandros mais obscuros do inconsciente coletivo, tem uma força de regeneração extremamente poderosa.


Podemos observar uma explicação didática da simbologia do pecado no trecho paulino da Carta aos Romanos (5, 12-19). Foi muito importante a adesão da elite romana ao cristianismo primitivo, fruto do apostolado de Paulo, motivo pelo qual ele procurou explicar muito claramente esse tema complexo e difícil para seu público romano constituído, em grande parte, de pessoas instruídas na cultura grega. Paulo era um judeu fervoroso, ortodoxo, então ele conhecia bem a Torah e os seus ensinamentos, inclusive a história do paraíso do Éden. Utilizando-se de seus conhecimentos da cultura grega, ele compôs um raciocínio lógico bastante criativo, fazendo uma espécie de trocadilho paralelo entre a história da árvore do bem e do mal e a redenção operada por Cristo, ao contrapor o pecado e a graça personificados, nas figuras de Adão e de Cristo. “Como a falta de um só acarretou condenação para todos os homens, assim o ato de justiça de um só trouxe, para todos os homens, a justificação que dá a vida. ” (Rm 5, 18). Pela culpa de Adão, o pecado entrou no mundo; pela ação redentora de Cristo, a graça venceu o pecado. Por um homem (Adão), veio o pecado; por um homem (Cristo), veio a graça. Paulo nem precisou fazer referência à participação de Eva no episódio da origem do pecado, talvez até propositalmente omitiu isso, para não complicar ainda mais a situação social das mulheres em Roma, pois elas já eram postas em segundo plano na sociedade romana. Esse texto de Paulo, não obstante o seu didatismo, trouxe enormes dificuldades teológicas para a sua interpretação, sendo ainda hoje motivo de inquietação por parte de teólogos que não conseguem ultrapassar a sua estrita literalidade. Com certeza, Paulo não tencionava defender uma “tese científica” sobre a origem da humanidade, mas apenas construir um argumento teológico servindo-se da lógica filosófica grega, muito conceituada entre os romanos, para demonstrar que o cristianismo era uma religião compatível com a filosofia grega. A sua tese de “por um só homem” tem gerado memoráveis polêmicas quando confrontada com as teorias da evolução das espécies, opondo de forma desnecessária a Bíblia e a ciência. Sem adentrar nos detalhes dessa problemática, eu sustento o entendimento teológico de que o pecado se origina da própria natureza humana imperfeita e, nessa linha de pensamento, a graça que Cristo veio nos trazer com a sua encarnação não configura um “restabelecimento” ou retorno a uma situação anteriormente vivida no paraíso bíblico e que fora perdida por causa das ações mal sucedidas dos antepassados, mas se trata de uma situação futura, dentro do processo de aperfeiçoamento contínuo da própria criação divina.


Portanto, nessa nova linha de raciocínio, não teríamos a sequência graça original→ pecado original→ nova graça cristã, mas apenas natureza humana originalmente imperfeita (e por isso passível de ser atingida pelo pecado) e natureza humana socorrida pela graça divina trazida por Cristo, com a qual o ser humano tem a ajuda suficiente para superar as imperfeições naturais e se plenificar cada vez mais. Ao desenvolver-se, por via de consequência, o ser humano leva para toda a criação esse processo evolutivo. Aí, sim, vale a observação de Paulo em Romanos 5, 20: “onde abundou o pecado, superabundou a graça.” Esse trecho, que não está incluído na leitura deste domingo, é exatamente o versículo seguinte de onde termina o texto lido na liturgia.


A leitura do evangelho de Mateus 4, 1-11 traz a narração das “tentações” de Jesus no deserto, onde ele jejuou durante 40 dias. Vale recordar nesse contexto a simbologia do número 40. Dentro do contexto bíblico, o número 40 aparece sempre antecedendo um fato muito importante, não significa contagem matemática de 40 dias, mas do tempo oportuno para o poder de Deus se manifestar através de alguma obra grandiosa. Por sua vez, as tentações de Jesus representam os 'perigos' que a sua natureza divina poderia representar em situações de extrema pressão psicológica como ser humano que era. Para cumprir os desígnios do Pai e para cumprir o plano salvífico, Jesus precisava passar por todo aquele padecimento enquanto pessoa humana. De fato, nós sabemos que Jesus enfrentou diversos desafios, que para Ele teriam sido facilmente resolvidos se usasse o poder divino, mas ele não podia fazer assim. As chamadas “tentações” foram, na verdade, uma espécie de treinamento que ele realizou para comportar-se plenamente conforme a natureza humana.


Então, quais foram mesmo as grandes 'tentações' de Jesus? 1. Transforma essas pedras em pão... tentação do poder; 2. Eu te darei todos os reinos... tentação da riqueza; 3. Joga-te daqui para baixo... tentação do orgulho/vaidade. Quantas vezes, os fariseus tentaram Jesus para que Ele realizasse um “milagrezinho” na presença deles. Herodes foi um que disse na cara de Jesus: “você é uma piada”, porque insistiu pra Jesus atravessar a piscina dele andando sobre a água (cf Lucas 9, 7 e 23, 6), e Jesus não fez. Portanto, se quisermos encontrar a figura de satanás tentando Jesus, não busquemos essa no deserto, onde ele jejuou, mas nos diversos fariseus que o tentaram em vão. O próprio Judas, que certamente vira Jesus fazer vários milagres, não conseguia acreditar que Ele fosse suportar todas aquelas humilhações impostas pelos chefes dos sacerdotes e iria 'dar a volta por cima', até pagou pra ver, mas perdeu a aposta. Desculpem-me, meus amigos, talvez alguns não concordem com o que vou escrever, mas muitas vezes, a figura de satanás é utilizada para encobrir nossas próprias fraquezas e nossa personalidade imperfeita. As grandes tentações que nos afetam não nos vêm de um agente exterior, mas da nossa “trindade” interior: id, ego e superego (tomando emprestada a terminologia de Freud), que são as verdadeiras “donas” da nossa personalidade.


Meus amigos, veio-me a lembrança agora uma frase emblemática do filósofo austríaco Edmund Husserl, que insistia sempre: “voltemos às coisas mesmas”. Este apelo de Husserl corresponde ao início da filosofia fenomenológica, por ele defendida, instruindo-nos a reconhecer e valorizar as nossas próprias percepções e não procurarmos a todo custo racionalizar os acontecimentos, buscar explicações lógicas e racionais para tudo, através da generalização conceitual abstrata. Trago esta frase para este contexto pela mensagem que ela encerra. Encaremos de frente o nosso próprio ser, sem ocultações ou subterfúgios. Voltemo-nos para nós mesmos e tenhamos coragem de assumir nossas fraquezas, deixemos de culpar o demônio pelos males que fazemos, pois somente assim estaremos criando condições de superar a nós mesmos. A literatura transformou essa autoanálise em tentação e na figura do tentador. Mas nós devemos ir além dessa metáfora tradicional. Se sairmos disso, seremos capazes de reciclar também a nossa noção de pecado.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 18 de fevereiro de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 7º DOMINGO COMUM - 19.02.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 7º DOMINGO COMUM – PERDÃO SEM MEDIDA – 19.02.2023


Caros Confrades,

Neste 7º domingo comum, a liturgia nos recorda que somos santuários vivos de Cristo, que habita em nós. E a característica própria do cristão é o amor os irmãos, mesmo aqueles que são maldosos e causam ofensas. Por isso, é preciso aprender a perdoar sem medida. No evangelho de Mateus, Jesus pergunta: o que vocês fazem a mais do que os pagãos? Amar os amigos e fazer o bem a quem lhe faz bem, isso não é grande coisa, os pagãos também fazem assim. Para fazer diferente, o cristão deve amar os inimigos e fazer o bem aos que lhe fazem o mal.


Na primeira leitura, do livro do Levítico (19, 1-18), Moisés transmite ao povo o recado dado por Javé: sede santos assim como eu sou santo e, recordando o primeiro mandamento, repete o refrão da santidade: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Anos depois, Jesus Cristo irá dizer aos discípulos que este é o primeiro e o maior mandamento. Mas a lei de Moisés ainda era muito restritiva em relação a este amor ao próximo, pois considerava o próximo apenas os compatriotas, os amigos, permitindo o ódio aos inimigos. Na sua pregação, Jesus veio ampliar o conceito do próximo, estendendo-o inclusive aos não compatriotas, como é o caso famoso da parábola do Bom Samaritano. Aqui está a grande e essencial diferença entre a lei antiga e a nova lei, entre o cumprimento restrito da lei e o cumprimento desta com sabedoria, conforme tema abordado no comentário do domingo passado. O escritor do Levítico dizia: não procures vingança nem guardes rancor dos teus compatriotas (v. 18), referindo-se ao povo de Israel apenas. Jesus vai dizer: teus compatriotas são todos os teus semelhantes, porque a pátria a ser considerada, neste caso, é o céu. E a exortação de não guardar rancor nem procurar vingança se estende a todos, sem medida.


Na continuação da primeira carta aos Coríntios (1Cor 3, 16-23), Paulo continua o ensinamento já abordado no domingo anterior, dizendo que os cristãos não se devem deixar levar pela sabedoria das coisas do mundo, mas pela sabedoria que provém de Deus. E como isso será possível? Porque nós somos santuários de Deus e o Espírito de Deus habita em nós. Aquele que se inebria com a sabedoria mundana é um insensato e destrói em si próprio esse templo onde Deus habita, tornando-se habitação do mal. Assim ele diz no versículo 18: “Ninguém se iluda: Se algum de vós pensa que é sábio nas coisas deste mundo, reconheça sua insensatez, para se tornar sábio de verdade.” Quem não abomina essa sabedoria insensata e fugaz, fundada apenas em conceitos e experiências materiais, ao contrário, a cultua, este fecha a porta ao Espírito de Deus e não será capaz de compreender a sabedoria verdadeira. O Senhor conhece os pensamentos dos sábios (da terra) e sabe que são vãos. O cristão deve buscar a verdadeira sabedoria, aquela que vem do alto e que foi ensinada por Cristo, atualizando o verbete da lei, reconhecendo em todos (judeus e gentios) a mesma irmandade. Diz Paulo, no v. 23, tudo vos pertence, mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus.


Prosseguindo também na mesma temática do domingo passado, o evangelho de Mateus (5, 38-48), nos mostra outra vez Cristo ensinando, com toda a sua criatividade pedagógica, o verdadeiro sentido da lei mosaica, que Ele não veio abolir, mas aperfeiçoar. Neste domingo, Ele nos traz dois novos exemplos, que se somam aos que já comentamos antes.


No primeiro exemplo de hoje, diz Ele: “ouviste o que foi dito aos antigos: olho por olho e dente por dente” (Mt 5, 38). Esse preceito multimilenar está presente em todas as culturas antigas e simboliza o conceito mais primitivo de justiça que os seres humanos formularam, isto é, a justiça proporcional ou vingança controlada. Os estudiosos apontam que essa regra do “olho por olho, dente por dente” veio do Código de Hamirábi, um rei que governou a Babilônia cerca de dois mil anos antes de Cristo. Esse preceito foi incorporado nas culturas da época, havendo referências a ele entre os hebreus, gregos e romanos. Na primeira lei romana escrita, conhecida como Lei das XII Tábuas, essa regra já fora inserida para os casos em que não houvesse acordo, estabelecendo que uma pessoa não podia “cobrar” da outra mais do que o prejuízo causado, dando início assim ao conceito de equidade, que foi aperfeiçoado por Aristóteles e se encontra hoje nos direitos de todos os povos. Jesus faz referência, portanto, a um preceito bastante conhecido e amplamente praticado pelos judeus.


Pois bem, diz Jesus: os antigos ensinaram isso – olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: “não tomem como modelo as pessoas más”. É assim que eu prefiro traduzir a frase que está em Mt 5, 39. O original grego transliterado é: “mê antistenai tô ponero”, frase que São Jerônimo traduziu em latim como “non resistere malo” e a CNBB traduziu como “não enfrenteis quem é malvado”. Com todo respeito, parece-me que São Jerônimo se equivocou na tradução do verbo grego “antistenai” e traduziu por “resistire”, que em português seria “resistir”. Mas, pelo meu entendimento, o verbo grego tem o sentido de “não vos compareis” com os maus, isto é, não façais como os maus, não imitem o comportamento deles. Da forma como está traduzido (não enfrenteis quem é malvado) dá uma ideia de fraqueza, de acovardamento, como se o cristão devesse ter medo dos maus, não reagir aos maus, não enfrentar o malvado. Mas a mim parece que, quando Cristo aconselhou “oferecer a outra face” para quem te bate no rosto, ele quis dizer outra coisa: os maus agem de forma agressiva, vocês, porém, não devem tomar esse comportamento como exemplo, façam diferente deles, não por medo, mas por convicção. Em resumo, não se equiparem aos maus, não repitam suas ações deles, não se comportem como eles. Esse deve ser, segundo penso, o significado metafórico da recomendação de Cristo sobre “oferecer a outra face”. Se você revidar a um bofete, você estará repetindo o mau exemplo dado por quem lhe ofendeu. Então, não retribua a violência com violência, mas com o amor, isto é amar sem medida, perdoar sem medida.


Esta mesma lição nós encontramos em Paulo aos Romanos (12, 20), quando ele diz: “se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber, assim amontoarás brasas sobre a sua cabeça”. Fora do contexto bíblico, o jogador Pelé ensinava aos jogadores mais jovens: quando algum adversário te empurrar, não faça resistência, caia e ele cairá junto contigo. Porque ele espera que você resista, então ele será surpreendido. Em todas essas situações, o ensinamento é o mesmo, ou seja, não tomem como exemplo o adversário, façam o oposto, faça o que ele não espera, surpreenda-o e assim você terá uma atitude superior, uma atitude de bem, um testemunho de ser verdadeiro seguidor do ensinamento de Cristo.


Complementa esta lição o outro exemplo dado por Cristo, na sequência do evangelho de Mateus (5, 43): os antigos diziam – ama teu próximo e odeia teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, orai pelos que vossos perseguidores. Meus amigos, com essa, Cristo pegou pesado e nos colocou o maior desafio do evangelho. Amar os amigos e odiar os inimigos é fácil, todos fazem isso. Mas se for assim, que diferença haverá entre o cristão e o não cristão? O cristão tem que ser diferente: amar os amigos e os inimigos, fazer o bem a quem faz o mal. O escritor James C. Hunter, no conhecido livro “O monge e o executivo”, faz uma interpretação interessante desse ensinamento de Cristo. Diz ele que na frase “amar os inimigos”, o significado do verbo “amar” é diferente da frase “amar os amigos”. Explicando melhor, seria assim: em relação aos amigos, amar tem o sentido de sentimento, afeto; em relação aos inimigos, amar tem um sentido puramente comportamental, ético. Então, a frase “amar os inimigos” quer dizer comportar-se de um modo ético mesmo com aquelas pessoas que fizeram algum mal a você, isto é, não exercitar a vingança, não ficar esperando uma ocasião futura para ir à desforra. Amar os inimigos significaria, dessarte, ser ético com todos, tratar as pessoas más da mesma forma como se deve tratar qualquer pessoa, com ética e dignidade, mesmo que intimamente a sua vontade seja de esganar o adversário.


Parece-me que o escritor tem certa razão. No texto grego, o verbo que está traduzido por “amai” é “agapate”, verbo com o mesmo radical da palavra “ágape”. Quando eu estudei antropologia teológica, aprendi que os gregos conheciam três significados para o verbo “amar”: 1 – amor erótico (eros); 2 – amor amizade (filia); 3 – amor fraternidade (ágape). Esse terceiro sentido se refere à convivência humana, ao modo respeitoso como as pessoas devem tratar umas às outras, independente de quem seja. Então, seguindo o raciocínio de J. Hunter, podemos concluir que a ordem de amar os amigos tem o sentido 2, enquanto amar os inimigos tem o sentido 3. Eu continuo pensando que a doutrina de Cristo não faz essa distinção, no entanto, pode ser uma forma de atenuar o rigor do desafio que Cristo nos deixou e, assim fazendo, quem sabe, aos poucos chegaremos a encarar o desafio de forma completa.

Que o divino Mestre nos socorra com engenho e arte, para conseguirmos colocar em prática os seus ensinamentos.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos



domingo, 5 de fevereiro de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO COMUM - 05.02.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO COMUM – A LUZ E O SAL – 05.02.2023


Caros Confrades,


Neste 5º domingo comum, a liturgia coloca para nossa reflexão a figura da luz, exemplificando com o brilho da autora, que ilumina a terra. A luz que brilha sobre nós, semelhante à aurora, é exatamente a luz da graça divina, que recebemos de Deus no nosso batismo e que deve permanecer viva e brilhante, de modo a iluminar os atos da nossa vida e, ao mesmo tempo, deve funcionar como guia para clarear sobre os irmãos, especialmente aqueles mais fracos na fé. O evangelho associa a figura da luz com outro elemento essencial para a nossa vida, que é o sal. Um e outro são metáforas dos compromissos que nós, batizados, assumimos como autênticos discípulos de Cristo.


A teologia da revelação ensina que nós nascemos com a sombra do pecado original, uma falha da natureza humana, que não devemos atribuir ao Criador, que é perfeito, mas à nossa própria condição de humanidade, herdeiros de Adão e Eva. Para extirpar essa sombra, que carregamos como uma consequência da fragilidade humana, nós temos o remédio eficaz, que é a graça divina. Através da aspersão com a água batismal, nós somos purificados dessa mácula, todavia, essa purificação não funciona de modo automático, mas precisa ser renovada e reforçada com as nossas boas ações, o que só é possível quando nós abrimos nosso coração para receber a graça e, em consequência, orientamos nossa vontade para que a graça atue em nós e produza seus divinos efeitos. A referência a Adão e Eva é a linguagem simbólica pela qual o escritor sagrado personifica de um modo genérico as duas figuras humanas de homem e mulher, imperfeitos pela natureza, mas aperfeiçoados pela graça recebida do Criador. E o pecado original não deve ser identificado com aquela vetusta história da maçã, mas com a vulnerabilidade inerente à natureza humana, que nos impede de conseguirmos alcançar, sozinhos, a salvação. Para isso, todos nós dependemos essencialmente da graça e da misericórdia de Deus.


Na primeira leitura, o profeta Isaías exemplifica, de um modo bem didático, algumas ações humanas que tipificam aquilo que a teologia chama de “pecado original”: “Se destruíres teus instrumentos de opressão e deixares os hábitos autoritários e a linguagem maldosa, … a tua vida obscura será como o meio-dia.” (Is 58, 9) Esses instrumentos de opressão são aquelas forças instintivas que nos impelem para o egoísmo, o autoritarismo e a inveja, ou seja, uma tendência inata para agir de forma injusta com os irmãos. Aquele que consegue superar essas imperfeições decorrentes da nossa natureza desviada, esse andará na luz, a sua vida será clara como o meio-dia. Diz ainda Isaías em 58, 7: “Reparte o pão com o faminto, acolhe em casa os pobres e peregrinos, quando encontrares um nu, cobre-o, e não desprezes a tua carne [teu semelhante]. Então, brilhará tua luz como a aurora.” Lembremo-nos de que, na época do profeta, ainda não havia sido instituído o batismo da conversão, que somente surgiu com a pregação de João Batista. No entanto, Isaías já preconizava aquelas ações que seriam propostas pelo Batista para os que se preparavam para a chegada o Messias, aplainando os caminhos e capinando as veredas. E quando, tempos depois, Cristo instituiu o batismo sacramental, o batismo da salvação, os benefícios da graça batismal atuaram de modo pleno no tempo, incluindo presente, passado e futuro, de modo que os que viveram segundo a orientação do Profeta foram também alcançados pela graça da salvação. O sacrifício redentor de Cristo foi realizado num tempo histórico determinado, no entanto, os seus efeitos se estendem em plenitude para um tempo indeterminado (anterior e posterior), referendando todas as práticas de justiça que as pessoas efetivaram, como consequência de sua fé. Com sua morte e sua ressurreição, Cristo aspergiu seu sangue sobre todos, independentemente da época em que viverem ou viverão, alcançando a todos estes os benefícios decorrentes da consumação da antiga aliança de Javeh com o povo hebreu. A única condição para isso é a adesão que cada um deve fazer a esse “contrato” patriarcal, renovado e consolidado pela intervenção do Messias, cujo conteúdo é o compromisso batismal, e cuja assinatura é traçada pela água derramada em nossas cabeças.


Na segunda leitura, de Paulo aos Coríntios (1Cor 2, 1-5), o Apóstolo diz que foi àquela cidade para anunciar ao povo o “mistério de Deus”. Que mistério seria esse? O próprio Paulo responde: Jesus Cristo crucificado. E para esse anúncio, Paulo não usou discursos bonitos nem oratória erudita, mas apenas a linguagem comum, para que o conteúdo de sua pregação se destacasse, e não a sonoridade das palavras bonitas. Meus amigos, a palavra “mistério” significa aquilo que estava escondido e foi revelado. Paulo utiliza o termo para referir-se àquilo que antes era obscuro e incompreensível aos homens, mas que tornou-se claro e iluminado, pela força da luz de Cristo. Ele é a própria luz e é através dele que nós, seus discípulos, podemos iluminar o mundo. Pelos sacramentos, que Ele instituiu e nos deixou, sob a coordenação da comunidade eclesial, nós participamos da claridade que essa luz transmite. A partir do recebimento do batismo, abre-se para nós a porta de acesso aos demais sacramentos, isto é, aos diversos canais pelos quais Ele distribui a sua graça. Paulo fez isso na comunidade de Corinto e noutras cidades daquela região. Nos dias de hoje, a Igreja dá continuidade a essa tarefa de acolher os fiéis e conduzi-los ao ambiente onde essa graça continua a ser distribuída. Dentro da comunidade eclesial, a graça que recebemos deve ser potencializada para que, em nossa vida cotidiana fora do ambiente típico da sacralidade, as demais pessoas possam perceber a luminosidade do nosso ser através do nosso comportamento, do nosso modo de agir.


O evangelho de Mateus (Mt 5, 13-16) associa duas metáforas muito poderosas: a luz e o sal. Desde os tempos mais remotos, as pessoas compreenderam a importância do sal para a vida humana. Chegou ao ponto de que, em eras primitivas, o pagamento de trabalhos realizados pelos operários era feito não com dinheiro, mas com sal (donde vem o termo “salarium”). Os minerais trazidos pelo sal são essenciais para o nosso organismo, de modo que a vida humana se tornaria inviável sem o consumo de porções (moderadas) de sal. Do mesmo modo como a vida humana seria inviável sem a luz, assim também seria sem o sal. Atuando de modos diferentes, mas sempre em caráter indispensável, a luz e o sal são insumos que tornam possível a vida humana, seja individual, seja social. Daí porque Cristo utilizou muitas vezes essas figuras como recursos pedagógicos para a sua catequese.


Ora, diz Jesus, imaginem se o sal viesse a perder a sua funcionalidade básica, com o que iríamos salgar os alimentos? Nos dias de hoje, a indústria química já consegue produzir materiais alternativos que geram efeito similar ao sal para o preparo dos alimentos a pessoas que possuem certas doenças agravadas com a ingestão do sódio, componente principal do sal. Mas na época de Cristo, isso não existia e ele falava para o povo daquela época, do modo que fosse mais compreensível para eles. Um sal que não produzisse seus efeitos não serviria para mais nada. Quando muito, seria usado como pedrisco para pavimentar os caminhos. Com isso Jesus vem nos dizer que um cristão que não desenvolver em si a graça que recebeu com o batismo, é como se a graça recebida não produzisse os efeitos que deveria gerar, portanto, haverá um desperdício da graça, pois um tal cristão não seria capaz de “salgar” a sociedade com o seu exemplo e o seu testemunho. Meus amigos, essa é uma séria advertência para que cada um de nós avalie de que modo a graça que recebemos está ou não produzindo seus frutos na nossa vida, para que não estejamos nos arriscando a ser esbanjadores da graça divina. No caso, essa graça inócua em nós, além de não contribuir para que superemos as vicissitudes próprias da nossa natureza imperfeita, ainda nos tornará réus de uma acusação muito grave, qual seja, de sermos desperdiçadores desse valioso dom.


Numa consideração analógica com a luz, a graça divina deverá nos tornar iguais a grandes lamparinas em noite de apagão. Ninguém acende uma lucerna e a coloca debaixo de uma vasilha, pois assim ela não cumprirá a sua finalidade. A graça divina que recebemos não deve ficar restrita ao nosso ser, à nossa subjetividade, mas deve ser compartilhada com os irmãos. Colocar a luz escondida significa agir egoisticamente, usar a lamparina para clarear apenas o nosso próprio caminho. Não foi para isso que Jesus veio abrir para nós a porta da salvação. Ninguém se salva sozinho, a salvação se realiza na comunidade. Houve uma época em que a catequese pregava: “salva a tua alma”... hoje em dia esse discurso mudou completamente para “salva o teu irmão e assim tu também serás salvo”. Por isso é que a luz deve ser colocada num local elevado, a fim de clarear o caminho para muitos, a fim de chamar a atenção dos incautos, daqueles que se encontram envolvidos com as coisas mundanas, daqueles onde a graça está dormitando, a fim de incentivá-los a também se tornarem luminares eficazes e generosos. Manter a luz escondida é uma contradição com ela própria, cuja existência só se justifica se for um ponto de orientação para todos, assim como o farol orienta os que viajam pelo mar.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 28 de janeiro de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO COMUM - 29.01.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO COMUM – HUMILDADE E MODÉSTIA – 29.01.2023


Caros Confrades,


Neste 4º domingo comum, a liturgia coloca para nossa reflexão a força extraordinária da humildade diante de Deus e diante dos semelhantes. Importa, porém, não confundir humildade com submissão, subserviência. Ser humilde não significa ser saco de pancadas para todos, não significa perder o amor próprio nem destituir-se da sua personalidade. Ser humilde é, antes de tudo, ser humano no mais autêntico sentido da expressão. A soberba, o orgulho, a arrogância são defeitos que não combinam com a autêntica imagem dos discípulos de Cristo. A humildade verdadeira tem tudo a ver com a modéstia no modo de ser e de agir. Vale aqui lembrar uma canção popular que proclama: homem que diz sou, não é. As qualidades da pessoa não precisam ser autopublicadas, pois todos os que com ela convivem aos poucos descobrirão.


Na primeira leitura, temos um trecho do profeta Sofonias (Sf 3, 12-13). Este profeta, pouco conhecido e classificado na Bíblia como um dos profetas menores, pois o seu livro possui apenas três capítulos, é descendente do rei Ezequias, portanto, um profeta de linhagem nobre. Seu nome significa “Deus se escondeu” e ele profetizou num tempo em que as lideranças dos hebreus buscavam alianças com os povos mais ricos da região, dividindo-se quanto à preferência pelos assírios ou pelos egípcios. Então, o profeta chama a atenção para o perigo dessas alianças, porque elas não contribuem para a aliança com Javé, que está “se escondendo” do povo e aplicará um grande castigo, se não houver mudança nessa associação com os povos pagãos. Por isso o profeta tem esse nome e também por isso ele adverte a todos que somente os humildes terão um refúgio no dia da cólera do Senhor. E define como é o comportamento dos humildes: “Eles não cometerão iniqüidades nem falarão mentiras; não se encontrará em sua boca uma língua enganadora; serão apascentados e repousarão, e ninguém os molestará.” (Sf 3, 13) Os líderes do povo hebreu não lhe deram ouvidos e a aliança com a Assíria converteu-se, algum tempo depois, no cativeiro da Babilônia, de onde só retornaram aqueles que compunham “o resto de Israel”. Esse é um tema importante nos escritos de Isaías e foi antecipado pelo profeta Sofonias nas suas advertências. Só o “resto de Israel”, isto é, só os humildes do povo da promessa obterão o refúgio no dia da cólera do Senhor. Somente estes retornaram do cativeiro, quando a cólera divina se manifestou.


Na segunda leitura, de Paulo dos Coríntios (1Cor 1, 26-31), o Apóstolo chama a atenção dos cristãos para a humildade como sendo a marca registrada do comportamento destes. Não são os ricos e nobres os preferidos de Deus, mas aqueles de quem, aparentemente, nada se espera. “Na verdade, Deus escolheu o que o mundo considera como estúpido, para assim confundir os sábios; Deus escolheu o que o mundo considera como fraco, para assim confundir o que é forte; Deus escolheu o que para o mundo é sem importância e desprezado, o que não tem nenhuma serventia, para assim mostrar a inutilidade do que é considerado importante.” (1, 27-28) Deus não nos escolhe por nossa sabedoria humana, nem por nossa nobreza e riqueza, ao contrário, ele observa a nossa humildade. O hino de Maria diante da sua prima Isabel repete essa temática noutro contexto: “Ele pôs os olhos na humildade de sua serva” (Lc 1, 48) e por ser humilde e modesta, Maria foi escolhida para ser a mãe de Deus. O Seráfico Patriarca São Francisco foi um desses mestres da humildade. Começou quando ele deixou todas as riquezas e todo bem-estar que a riqueza do seu pai lhe proporcionava e passou a viver como mendigo. Todos se recordam daquele episódio em que, diante do Bispo de Assis, ele argumentava com o pai dele e, por fim, não o convencendo, entregou a ele até a própria roupa do corpo, tendo sido acolhido pelo Bispo ali no meio da rua. São Francisco era praticante daquela humildade radical e esse ensinamento ele deixou nos seus escritos. Todos conhecem uma frase famosa dele: “Ninguém é suficientemente perfeito que não possa aprender com o outro; e ninguém é totalmente destituído de valores que não possa ensinar algo ao seu irmão.” Nos Fioretti de São Francisco (cap 2), é contada a história de Frei Bernardo de Quintavale, um rico comerciante de Assis que, tocado pela humildade e santidade de Francisco, passou a admirá-lo e segui-lo, tendo depois vendido todos os bens que possuía e adotou o mesmo modo de vida franciscano de humildade e pobreza. E o apóstolo Paulo arremata a sua admoestação aos Coríntios sintetizando o conceito de humildade, repetindo uma passagem antiga do profeta Jeremias (Jr 9, 24): “como está escrito, aquele que se gloria, glorie-se no Senhor”. Nenhum cristão terá acumulado mérito suficiente para gloriar-se, a não ser que tenha recebido isso de Deus. E diz mais, no vers. 30: “É graças a ele que vós estais em Cristo Jesus, o qual se tornou para nós, da parte de Deus: sabedoria, justiça, santificação e libertação”. Em resumo, tudo do que podemos nos gloriar é recebido do alto e assim deve ser demonstrado e reconhecido.


Na leitura do evangelho, o evangelista Mateus (Mt 5, 1-12) traz a grande apologia da humildade, feita pelo próprio Cristo, naquele memorável pronunciamento conhecido como “sermão da montanha”. A humildade se manifesta na pobreza, não exatamente na carência de bens, mas na pobreza no espírito, porque há pessoas carentes material e socialmente, mas que possuem espírito opulento e avaro, onde moram a ganância e o egoísmo. Ser destituído de bens materiais não significa necessariamente ser pobre, no sentido cristão. E o contrário, possuir bens materiais também não significa falta de pobreza no espírito. O evangelista diz, em outra passagem (Mt 6, 21), que o coração da pessoa está junto com o tesouro que ela guarda. A humildade, diz Cristo, está na mansidão, pois os mansos possuirão a terra. Não são os arrogantes que prevalecerão. Estes podem até dominar por certo tempo, mas sua glória é efêmera. A mansidão do coração tem uma força invencível. A humildade está também na vivência e na busca da justiça, na prática da misericórdia, na pureza de coração, na promoção da paz, na paciência diante das tribulações, na confiança inabalável de que o Reino dos Céus depende da contribuição de cada um de nós, por menor que ela seja. A frase final desse pedagógico sermão já foi, muitas vezes, mal entendida quando Jesus diz que os humildes terão sua recompensa no céu, frase que era interpretada “ad litteram” (como o próprio São Francisco fez), levando a crer que as pessoas deveriam desfazer-se de tudo o que possuíam para viver na extrema carência, pois somente assim obteriam a recompensa eterna. Durante séculos, essa frase foi repetida com esse significado e muitas vezes os religiosos e a própria Igreja Católica foram criticados, por possuírem bens e assim estarem em desacordo com o ensinamento de Cristo. A questão deve ser vista, conforme abordei acima, sob o aspecto da pobreza no espírito, mais do que sobre a pobreza material. Se a pessoa vive feliz no meio da extrema necessidade (como vivia São Francisco e assim ensinava aos irmãos) e assim demonstra o seu verdadeiro espírito cristão, levando até outros a se converterem, é óbvio que o objetivo de Cristo está sendo alcançado. No entanto, não existe apenas essa forma de viver a humildade cristã e seguir o ensinamento de Cristo, pois sabemos que a correta administração dos bens materiais, em vista da prática da caridade, atinge igualmente a finalidade da mensagem cristã.


O Papa Francisco, com a sua linguagem característica e com suas atitudes surpreendentes, comparou o sermão da montanha com o GPS. Todos sabem o que é um GPS (sigla para Global Positioning System, em inglês – sistema de posicionamento global, aquele sinal eletrônico que indica com grande exatidão as localidades num mapa). Pois bem, diz o Papa, na vida cristã, as bem-aventuranças são o nosso guia, a nossa orientação: “São o guia da rota, do itinerário, são a bússola da vida cristã. Neste caminho, segundo as indicações deste ‘GPS’, podemos prosseguir na nossa vida cristã”. Diz mais que as riquezas não são necessariamente más, as riquezas são boas, o que faz mal é o apego às riquezas, quando isso se torna “uma idolatria”. Nesses casos, complementa ele, nos desviamos da rota. “É o GPS errado. É curioso! Estes são os três degraus que levam à perdição, assim como estas Bem-aventuranças são os degraus que levam adiante na vida. Os três degraus que levam à perdição são: o apego às riquezas, porque eu não preciso de nada. O segundo é a vaidade. Quero que todos falem bem de mim. Se todos falam bem me sinto importante, muito incenso e eu acredito ser justo, não como aquele ou como aquele outro. Pensemos na parábola do fariseu e do publicano: ‘Ó Deus, eu te agradeço, porque não sou como os outros homens…’. ‘Obrigado, Senhor, porque sou um bom católico, não como o meu vizinho ou a minha vizinha’. Todos os dias isso acontece! O terceiro degrau: o orgulho, que é a saciedade, as risadas que fecham o coração. (Sermão na capela de Santa Marta). Folgo em ver que as minhas modestas reflexões estão em sintonia com o entendimento do grande profeta do nosso tempo, o nosso Papa Francisco.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 21 de janeiro de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM - 22.01.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO COMUM – 22.01.2023 – GALILEIA DAS NAÇÕES


Caros Confrades,


A liturgia deste 3º domingo comum põe em destaque um tema interessante, ao refletir sobre a vocação de cada um, demonstrando que os pagãos também são chamados (vocacionados) por Jesus, pois o seu projeto de salvação é universal, e não apenas para alguns escolhidos. A ênfase está no termo “galileia das nações”, que aparece em duas das leituras: a primeira vez, na profecia de Isaías, como prenúncio, e a segunda vez, no evangelho de Mateus, como realização. Quando Jesus Cristo compreendeu que era chegada a hora de iniciar a sua atividade de pregador, após a morte de João Batista, foi morar em Cafarnaum, às margens do Mar da Galileia, na região conhecida como galileia das nações, justamente porque naquele local estavam estabelecidos os povos pagãos, que não eram de descendência judaica, portanto, não faziam parte do povo da promessa. O início de suas pregações nessa localidade simboliza que a sua mensagem de salvação devia ser levada também aos pagãos, não apenas aos judeus. Esse foi só mais um dos motivos pelos quais os judeus não reconheceram Jesus como Messias.


Logo no início da primeira leitura (Is 8, 23-9,3), o profeta Isaías faz a seguinte referência histórica: “No tempo passado, o Senhor humilhou a terra de Zabulon e a terra de Neftali; mas recentemente cobriu de glória o caminho do mar, do além-Jordão e da Galiléia das nações. ” (Is 8, 23) Esse “tempo passado” a que o profeta se refere foi o tempo do domínio assírio, por volta do ano 730 a.C., bem antes do cativeiro da Babilônia. A fim de prevenir futuras rebeliões, os dominadores assírios resolveram misturar naquela região comunidades de diversas raças e línguas, vindas de lugares diferentes, mesclando as culturas e dificultando as comunicações entre eles. Foi assim que vieram pagãos de diversas nacionalidades conviver nas terras das tribos de Zabulon e Neftali, nas margens do Mar da Galileia, trazendo tumulto e dificuldades para os hebreus ali residentes, ficando essa região conhecida como “galileia das pagãos”. Etimologicamente, a palavra “galileia” (hagalil, em hebraico, transliterada para o grego como galilaia) significa “distrito”, “província”, assim a galileia das nações significava um território onde moravam populações de diversas origens, era uma região onde o povo não tinha uma identidade étnica ou cultural e, naturalmente, era também uma região de muita pobreza. Tempos depois, o império assírio havia sido dominado pelos persas e já não exercia poder na região, no entanto, aqueles povos não mais retornaram para os seus locais de origem e formavam um conglomerado altamente disperso, um amontoado de línguas, costumes, religiões, culturas, uma população pobre e marginalizada, daí porque isso era considerado uma humilhação para alguém habitar naquela região. A maior cidade dessa região era Cafarnaum. Pois foi exatamente o que Jesus fez: saiu da sua cidade de Nazaré e foi morar em Cafarnaum, para dali começar a sua missão.


Então, diz o profeta Isaías: no passado, o Senhor humilhou aquela região, através da ação dominadora dos assírios. Mas depois cobriu o lugar de glória e uma luz resplandeceu para aquele povo que vivia na escuridão (Is 9, 1). Isaías estava prevendo que a atividade missionária de Cristo iria iniciar-se naquele local. E o evangelista Mateus vai repetir literalmente essa passagem de Isaías, quando diz: (Mt 4, 12-14) Ao saber que João tinha sido preso, Jesus voltou para a Galileia. Deixou Nazaré e foi morar em Cafarnaum, que fica às margens do mar da Galileia, no território de Zabulon e Neftali, para se cumprir o que foi dito pelo profeta Isaías”. Vê-se claramente a preocupação de Mateus em mostrar que Jesus é o Messias previsto pelos antigos profetas, ao dizer que Ele começou o seu ministério por Cafarnaum, logo após o encerramento da missão de João, o batista. Ele foi a luz que resplandeceu para aquele povo. Aquele território que, antes tinha sido causa de humilhação, passou a ser motivo de glorificação. Aquela terra onde habitavam pessoas de diversos povos e línguas foi a escolhida por Jesus para recrutar os seus primeiros discípulos e para ali lançar as primeiras sementes. Por isso, Mateus refere que Jesus começou sua missão em Cafarnaum exatamente continuando a mesma temática iniciada por João Batista: “Daí em diante Jesus começou a pregar dizendo: 'Convertei-vos, porque o Reino dos Céus está próximo. ” (Mt 4, 17). Dizia o Batista: arrependei-vos porque é chegado o reino dos céus (Mt 3,2). Mateus faz, desse modo, a intercalação da profecia de Isaías com a missão de João Batista e com a pregação de Jesus.


Sobre o recrutamento dos discípulos, Mateus diz: “Jesus andava à beira do mar da Galiléia, viu dois irmãos: Simão, chamado Pedro, e seu irmão André. Estavam lançando a rede ao mar, pois eram pescadores. Jesus disse a eles: 'Segui-me, e eu farei de vós pescadores de homens'.” (Mt 4, 18-19). No entanto, o evangelho de João traz uma versão diferente. Segundo este, João Batista tinha vários discípulos e a estes ele mostrou Jesus, dizendo: “eis o Cordeiro de Deus, a ele é que vocês devem seguir”. (Jo 1, 36) Os evangelhos não mencionam os nomes desses discípulos de João Batista, exceto um deles, André, que era irmão de Simão Pedro. (Jo 1, 40). Portanto, de acordo com João, não foi bem assim como Mateus descreveu. André era discípulo do Batista e foi aconselhado por este a seguir o Cordeiro, tendo André convencido também seu irmão Simão a fazer o mesmo. Idêntico raciocínio se pode fazer em relação ao chamado de Tiago e João, que Mateus narra assim: Caminhando um pouco mais, Jesus viu outros dois irmãos: Tiago, filho de Zebedeu, e seu irmão João. Estavam na barca com seu pai Zebedeu consertando as redes. Jesus os chamou. (Mt 4, 21) João devia ser também seguidor do Batista e já devia conhecer Jesus, tendo convencido seu irmão Tiago a também segui-lo. Deduz-se isso pelo modo como João narra esses fatos, dos quais ele participou. Especulam os biblistas que, quando Jesus deixou a casa dos seus pais, em Nazaré, e mudou-se para Cafarnaum, foi morar provavelmente na casa de Pedro, ocasião em que curou a sogra dele que estava enferma (Mt 8, 14). Bem, como quer que tenham ocorrido os fatos, o certo é que esses foram os primeiros discípulos que Jesus, que os convidou a transformarem-se em pescadores de homens. Aos poucos, em circunstâncias próprias, Jesus foi chamando os demais.


Para uma pessoa que lê a Bíblia com olhos puramente formalistas, literalistas, especialmente aqueles que leem a Bíblia com a mente fechada, fica difícil compreender essas divergências textuais. Mas para os estudiosos do assunto, essas diferenças são perfeitamente compreensíveis e explicáveis, não ocasionando uma ruptura doutrinária, mas tão somente formas estilísticas e modelos de composição literária. Para uma melhor análise, observemos que: 1. o evangelho de Mateus, assim como os de Marcos e Lucas, são bem mais antigos do que o de João, escritos por volta dos anos 60, enquanto João escreveu por volta do ano 100; 2. os evangelhos sinóticos são compilações de textos mais antigos, que circulavam nas comunidades e tinham diferentes origens, sendo cópias de tradições orais, histórias que passavam de boca em boca, narrando os ensinamentos de Cristo; 3. na época em que João escreveu, muitas dessas divergências provavelmente já haviam sido observadas e corrigidas, de modo que o texto de João é mais elaborado, mais pesquisado, mais coerente; 4. João fora testemunha ocular dos fatos, ou outros apenas souberam por terceiros. Mas nem por isso devemos considerar que os primeiros estejam errados e com isso colocar em dúvida o que ali está escrito. O que verdadeiramente importa é a escolha que Jesus fez dos seus discípulos e o início de sua pregação naquele local, onde habitavam pessoas de diferentes línguas e culturas, sinalizando de modo claro que não apenas os judeus eram os destinatários da sua obra de salvação, mas também aqueles pagãos e, por extensão, toda a humanidade.


Na carta aos Coríntios (1Cor 1, 10-13), Paulo se refere a uma situação vivida naquela comunidade que muito se assemelha aos grupos do cristianismo contemporâneo. Paulo havia sido informado de que criaram-se grupos na comunidade de Corinto, de acordo com as preferências de cada um, chegando até a contendas entre eles. E lhes pergunta: será que Cristo está dividido? em nome de quem fostes batizados? Meus amigos, essa divisão em grupos internos de interesses variados é tão prejudicial para a vivência da comunidade hoje, quanto o foi no passado, como se fossem pequenas seitas dentro do mesmo rebanho. Tradicionalistas, carismáticos, progressistas, vanguardistas, fundamentalistas, cançãonovistas, shalomitas, tridentinos, ecumênicos... Até pelos canais de televisão variados de cada grupo expõem-se essas divergências. Cabe aqui a pergunta de Paulo: acaso Cristo está dividido? Acaso a mensagem cristã não é uma só? Os vários grupos agem como se quisessem desmerecer a tendência dos outros irmãos e cada um deles querendo impor aos demais o seu próprio ponto de vista, arvorando-se em detentor da verdade e condenando os que pensam de modo diferente. A verdadeira compreensão da mensagem de Cristo deveria levar os divergentes ao exercício da tolerância e do mútuo respeito, como as atitudes mais compatíveis com a conduta do autêntico cristão. Cada qual, na diversidade da sua vocação e na peculiaridade da sua missão, compõe o grande mosaico de formas e expressões de uma mesma ideologia: o seguimento de Jesus Cristo.

Que o Divino Mestre nos una e nos fortaleça nessa desafiante caminhada.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 14 de janeiro de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO COMUM - 15.01.2023

 

COMENTARIO LITURGICO – 2º DOMINGO COMUM – CORDEIRO DE DEUS – 15.01.2023


Caros Confrades,

Na liturgia deste domingo, 2º do tempo comum, Jesus é apresentado como o Cordeiro de Deus, no evangelho de João. Essa figura do cordeiro já estava preconizada na profecia de Isaías, com o título Servo de Javé. Os quatro cânticos sobre o Servo de Javé, que se encontram no livro do Profeta Isaias entre os cap 42 e 53, foram muito lembrados pelos primeiros cristãos, nas suas orações e pregações, logo após a ressurreição de Jesus. De acordo com o Profeta, o Servo de Javé viria para reunir novamente o povo de Deus, que estava cativo, e conduzi-lo à salvação e, por intermédio desse povo, estender a salvação a todos os confins de terra. De modo especial o quarto cântico (cap 52-53), sobre o Servo sofredor, encaixou-se perfeitamente no contexto da paixão de Jesus. João evangelista reescreve a narração do batismo de Jesus, afirmando que, pela manifestação do Espírito em forma de pomba, o Batista reconheceu Jesus como o Cordeiro de Deus, isto é, o Servo de Javé prefigurado em Isaías.


De início, lembremo-nos que o livro de Isaías era o preferido por Cristo para fazer referências a respeito de si próprio, sempre que isso era necessário. Na leitura de hoje (Is 49, 6), destaco o seguinte trecho: “'Não basta seres meu Servo para restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os remanescentes de Israel: eu te farei luz das nações, para que minha salvação chegue até aos confins da terra'.” Vejam só o trocadilho dos nomes: Jacó e Israel eram a mesma pessoa, o terceiro Patriarca, neto de Abraão. Jacó foi aquele que “tomou” do seu irmão gêmeo Esaú (que embora sendo gêmeo, havia nascido em primeiro lugar) os direitos de primogenitura, naquele estratagema armado pela mãe deles, Rebeca, que preferia Jacó a Esaú. Este ficou iradíssimo com o irmão, com toda razão, pois teve o seu direito usurpado, e passou a ameaçar Jacó. Para evitar uma carnificina entre os irmãos, Rebeca mandou Jacó para passar uns tempos bem longe, com um tio chamado Labão (que não era o que se chamaria de cidadão exemplar), na esperança de que, com isso, a ira de Esaú se acalmasse. Lá nos confins onde morava com o tio, Jacó casou com as duas primas (Lia e Raquel), porque o tio também trapaceou com ele e entregou a filha “errada”, na hora das núpcias. Em vez de devolver, Jacó ficou com as duas. Meus amigos, esses fatos narrados na Bíblia não são, de forma alguma, modelos de comportamento compatíveis com a aliança entre aquele povo e Javé, quantas tramoias estão aqui envolvidas de parte a parte. Mas a história do povo de Deus é assim mesmo, cheia de contradições.


Fiz aqui esse breve retrospecto para contextualizar com a leitura do profeta Isaías, deste domingo, quando ele diz que o Servo de Javé virá restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os remanescentes de Israel. Para compreendermos isso, devemos também lembrar que Jacó teve seu nome mudado para Israel após uma luta misteriosa que travou com um anjo, cuja personalidade a Bíblia não explica, mas que os intérpretes entendem que tenha sido o próprio anjo protetor de Esaú, que veio batalhar com Jacó, a fim de evitar que os dois irmãos se matassem num encontro que se aproximava. Essa é uma passagem nebulosa da Bíblia, pois o fato é que, quando os irmãos raivosos finalmente se encontraram, abraçaram-se e choraram mutuamente, celebrando a paz. Porém, isso só foi possível por causa de uma mudança radical que aconteceu com Jacó, após a luta deste com o anjo, que mudou o seu nome para Israel, porque ele havia vencido alguém mais poderoso do que ele. Hoje, se poderia explicar essa “luta” misteriosa e simbólica como se Jacó estivesse duelando consigo mesmo em espírito, levando-o a uma mudança completa no seu comportamento, após o que ele ter-se-ia tornado uma pessoa com um outro perfil psicológico, operado pela interveniência de Javé. A troca do nome significaria isso, assim como Javé mandou que Abrão mudasse o nome para Abraão, que significava pai de uma multidão. Essa questão do nome no Antigo Testamento tem um simbolismo muito curioso e um sentido próprio, que não se encontra nas demais culturas.


Pois bem, retomando o trecho de Isaias (49, 6), o Profeta diz: restaurar as tribos de Jacó e reconduzir os remanescentes de Israel. Isso significa a reunião do passado com o presente, do antes com o depois, dos descendentes de Jacó com os descendentes de Esaú, que agora não são mais rivais, mas fizeram as pazes, enfim, a união de todo o povo de Deus. No sentido trans histórico dessa imagem, podemos vislumbrar aí a união de todos os povos dos diferentes continentes, raças e costumes sob a mesma liderança do Servo de Javé, aquele que foi preparado desde o nascimento para ser a luz das nações e o portador da salvação a toda a humanidade.


Na segunda leitura, do início da carta de Paulo aos Coríntios, o apóstolo repete esse mesmo mote de Isaías, já citando o nome de Cristo, quando coloca como destinatários da carta assim: “à Igreja de Deus que está em Corinto: aos que foram santificados em Cristo Jesus, chamados a ser santos junto com todos que, em qualquer lugar, invocam o nome de nosso Senhor Jesus Cristo, Senhor deles e nosso.” (1Cor 1, 2). Firme na fé de que Cristo é o Servo de Javé, aquele que veio para unir todas as nações, povos e culturas, Paulo destina sua carta a todos que, em qualquer lugar, invocam o nome de Jesus, isto é, a nós e a todos os cristãos. Isaías referiu-se àquilo que ainda iria acontecer no futuro, enquanto Paulo se refere a algo que já havia se tornado realidade, com o novo mandamento de Cristo. O discurso de Paulo dá sequência e complementa o discurso de Isaías. As tribos de Jacó, infelizmente, não reconheceram em Jesus o Messias prometido, mas os remanescentes de Israel, isto é, nós, os povos de boa vontade, gentios e de terras distantes, ouvimos a sua palavra e a ela aderimos. Algum tempo atrás, eu estava vendo na internet uma videoconferência com uma professora de Bíblia de Jerusalém e, na ocasião, um dos assistentes perguntou a ela o que significava Jesus para os judeus. Ela respondeu assim: ele foi um judeu famoso, não mais do que isso. Cabe lembrar aqui a frase de Cristo a Tomé: felizes os que creram mesmo sem ter visto... ou seja, felizes somos nós, cristãos.


Agora, uma referência ao evangelho de João (1, 29-34). Na semana passada, lemos o texto de Mateus (3, 13-17), no qual o evangelista diz que, após Jesus ter sido batizado, o Espírito Santo apareceu sobre ele em forma de pomba. A narração do evangelista João inverte a ordem desses fatos. Diz que, quando Jesus ia se aproximando para ser batizado, o outro João, o Batista, disse logo: este é o Cordeiro de Deus (Jo 1, 29). É uma afirmação curiosa, porque o próprio Batista disse que não conhecia Jesus: “Também eu não o conhecia, mas se eu vim batizar com água, foi para que ele fosse manifestado a Israel'.” (Jo 1, 31). Então, se o Batista não conhecia Jesus, como foi que o identificou de imediato? O próprio evangelista explica como o Batista o reconheceu: “Eu vi o Espírito descer, como uma pomba do céu, e permanecer sobre ele. Também eu não o conhecia, mas aquele que me enviou a batizar com água me disse: `Aquele sobre quem vires o Espírito descer e permanecer, este é quem batiza com o Espírito Santo'.” (Jo 1, 32-33) Com essa leitura, faz sentido aquela outra exclamação do Batista ao ver Jesus, conforme narra Mateus (3, 14): “'Eu preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?'” Ora, se o Batista não conhecia Jesus, por que teria dito isso antes de batizá-lo? Assim, a narrativa de João é mais coerente: quando o Batista avistou Jesus, mesmo antes que ele se aproximasse para ser batizado, viu já o Espírito sobre ele e desse modo o reconheceu. Provavelmente, os demais presentes nem tenham participado dessa visão após o batismo de Jesus, porém, com certeza, o Batista já o havia vislumbrado bem antes. Foi por isso que o Batista pôde afirmar: “'Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo. Dele é que eu disse: Depois de mim vem um homem que passou à minha frente, porque existia antes de mim.” (Jo 1, 29).


Alguém poderia admirar-se com certas discrepâncias observadas no texto bíblico e, de fato, isso faz com que pessoas não crentes se utilizem desses pormenores para justificarem sua falta de fé. No entanto, devemos sempre contextualizar para melhor entender. O evangelho de João foi escrito cerca de 40 a 50 anos após os primeiros. Estima-se que os evangelhos sinóticos datem dos anos 50 ou 60, enquanto o evangelho de João teria sido escrito por volta dos anos 95 a 100. Além do mais, João deu seu testemunho pessoal dos ensinamentos de Cristo, enquanto os outros três escreveram baseando-se em fontes escritas por terceiros. Isso não significa que os outros estejam errados e só João esteja certo, não devemos concluir assim. Cada um deles representa um traço comunitário da fé cristã dos tempos primitivos e pequenas divergências são perfeitamente justificadas com as diferenças espácio temporais. Apesar delas, contudo, a fé no Cristo Cordeiro de Deus é a mesma e não fica comprometida. Que a nossa vida brilhe sempre mais com a felicidade que brota desta fé.


Com um cordial abraço a todos.
Antonio Carlos

sábado, 7 de janeiro de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - EPIFANIA DO SENHOR - 08.01.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – EPIFANIA DO SENHOR – 08.01.2023


Caros Confrades:


A memória litúrgica deste domingo é da Epifania do Senhor. É a festa popularmente conhecida como Dia dos Santos Reis, contudo, eles nem são reis nem são santos (no sentido estrito). O folclore trazido para cá pelos portugueses introduziu o costume dos “reisados”, tradição que se encontra em franco declínio, mas ainda se pratica em algumas localidades. Tempos atrás, era mais comum verem-se pessoas “tirando reis” de casa em casa. Atualmente, com o crescimento da violência urbana e sobretudo depois do vício da televisão, do celular e da internet, esses folguedos populares foram caindo em desuso e somente alguns “heróis” os mantêm. Os jovens e as crianças de hoje não reconhecem mais essas práticas, que eram muito fortes há 40 ou 50 anos.


A epifania do Senhor designa a fé da Igreja na universalidade da salvação trazida por Cristo. No Antigo Testamento, os profetas se referiram ao Messias como salvador do povo de Israel e, naquela época de domínio político dos romanos na Palestina, havia a esperança de um Rei Messias que lhes restituiria a liberdade. O nascimento de Jesus numa cidadezinha longe da capital e sem qualquer aparato de poder e riqueza era o oposto da figura do Messias esperado pelos judeus. Assim como também foi inesperada a presença de pessoas ilustres vindas de terras orientais, isto é, de fora do território romano e judaico, pois não pertenciam ao grupo do povo da promessa, os judeus. Mateus, cujo evangelho tem como tema básico a apresentação de Jesus como salvador, narra a chegada dos magos como um fato que vem reforçar a ideia da salvação universal, isto é, de todos os seres humanos, e não apenas dos “assinalados”.


O evangelista não informa quantos eram nem de que cidade eles vieram, mas apenas que vieram de terras distantes no oriente, guiados pela estrela. O texto fala somente 'alguns magos', não diz que eles são reis e também não se deve entender esta palavra no sentido de pessoas que praticavam magias. Muito provavelmente, eles eram sacerdotes de uma religião diferente, talvez do zoroastrismo, religião fundada por Zaratustra, cerca de 1.500 anos antes de Cristo na Mesopotâmia, na região que hoje corresponde ao Irã. Há pouco tempo, assisti a um filme intitulado “O quarto sábio”, abordando a provável existência de um quarto “mago”, que se desencontrou dos outros três, por ter chegado atrasado ao local combinado, e saiu seguindo os passos dos outros, vindo a encontrar-se com Jesus somente quando ele já estava sendo levado para o Calvário. Os assim chamados “magos” eram estudiosos da astrologia, tema muito comum entre os povos antigos, que buscavam a compreensão do universo através da observação dos astros, fazendo correlação da movimentação destes com as vidas das pessoas. Esses saberes eram, em geral, desconhecidos da maioria das pessoas e eram considerados ciências ocultas, confundidos com a magia.


O termo “epiphania” é um substantivo derivado do verbo grego “epiphainow”, que significa aparecer, mostrar-se, apresentar-se. A epifania é a festa da manifestação do Salvador, e isso se deu efetivamente no seu nascimento. Por essa razão, as igrejas católicas orientais celebram o seu dia de Natal na epifania. A Igreja Católica Romana separou as comemorações do nascimento de Jesus em duas festas: uma em 25 de dezembro, o Natal – nascimento de Cristo, e a outra, a manifestação de Cristo às nações do mundo, representados na pessoa dos “magos” orientais, em 6 de janeiro. Se observarmos bem, a tradição das igrejas orientais, mais antiga, é mais coerente, porque realmente a manifestação de Cristo ao mundo se deu com o seu nascimento. A divisão da festa em duas comemorações representou uma interferência indevida da cultura romana sobre o cristianismo, o que foi repudiado pelos Padres orientais, que mantiveram sempre a sua tradição.


As leituras litúrgicas da Epifania procuram integrar os textos do antigo e do novo testamento, no caso, o livro de Isaías com o evangelho de Mateus. No livro de Isaías (deutero-Isaías), cap. 60, 1, o autor conclama Jerusalém a se alegrar, porque “sobre ti apareceu o Senhor e a sua glória se manifestou”. E diz mais adiante (60, 6): “será uma inundação de camelos e dromedários de Madiã e Efa a te cobrir; virão todos os de Sabá, trazendo ouro e incenso e proclamando a glória do Senhor.” Por certo, os “magos” viajavam em camelos, o transporte característico do Oriente Médio, mas a narração de Mateus parece sugerir que a chegada deles não foi motivo de alvoroço, porque diz apenas que eles encontraram o Menino e Maria, sua mãe, ofereceram os presentes e o adoraram. Depois foram embora. Parece que Mateus (2, 2) quis mostrar a realização da profecia de Isaías: “eis que alguns magos do Oriente chegaram a Jerusalém, perguntando: 'Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Nós vimos a sua estrela no Oriente e viemos adorá-lo.' ” Até o Salmista (71, 10), faz coro com essa proclamação, ao cantar: “Os reis de Társis e das ilhas hão de vir e oferecer-lhes seus presentes e seus dons; e também os reis de Seba e de Sabá hão de trazer-lhe oferendas e tributos.” A escritura está permeada de passagens assemelhadas, nas quais essas referências se reproduzem. Os evangelistas, que conheciam a Lei e os Profetas, trataram de integrar as profecias nos seus textos, como forma de comprovar que Jesus é o Messias prometido, numa época em que muitos judeus duvidavam e teimavam em não admitir isso.


É curioso notar que nem o evangelista Lucas nem Marcos nem mesmo João se referem ao episódio da visita dos “magos”. É de admirar sobretudo que Lucas não trate dessa visita, quando se sabe que os detalhes mais particulares da infância de Cristo se encontram no seu evangelho, provavelmente repassados por Maria. No entanto, será que da visita dos “magos” logo após o nascimento de Jesus, Maria não se lembraria? E por que não teria repassado isso a Lucas, assim como fez com outros acontecimentos? De fato, é de causar estranheza o silêncio do evangelho de Lucas acerca desse importante fato da infância de Jesus. Bem, por mais especulações que se façam, nunca se saberá com certeza o motivo dessa omissão. Mas visto que os evangelhos não são propriamente registros históricos e sim proclamações de fé das comunidades primitivas, o que mais importa nessa narrativa é a doutrina da universalidade da salvação.


Com efeito, a aliança original de Javé foi com Abraão e seus descendentes, os judeus, mas estes não reconheceram em Jesus o Salvador que veio confirmar a promessa. Então diante da descrença deles, a boa nova trazida por Jesus, o seu evangelho, foi pregado aos gentios, ou seja, àqueles que não descendem dos antigos patriarcas. Num contexto trans-histórico, esses gentios somos nós, cristãos, que não descendemos do povo hebreu. A figura dos “magos” colocada nesse contexto próximo (ou mesmo junto) com o nascimento de Jesus faz parte do propósito do evangelista de mostrá-lo como o Salvador de todas as nações, e não apenas do povo de Israel. É verdade que alguns judeus aceitaram o evangelho e creram em Cristo, porém sabemos que foram em minoria. Os diversos episódios, conhecidos através das epístolas de Paulo, acerca do problema dos “judaizantes”, isto é, daqueles que queriam manter as tradições judaicas junto com o evangelho, demonstram que houve adesão apenas parcial dos judeus. Entretanto, a pregação do evangelho aos gentios não foi somente porque os judeus não o aceitaram, mas é da natureza mesma da mensagem de Cristo. Ou seja, mesmo que todos os judeus tivessem crido e se convertido ao evangelho, ainda assim o anúncio do cristianismo teria sido feito também aos gentios, porque essa era a sua proposta.


A universalidade da salvação trazida por Cristo é também o tema da carta de Paulo aos Efésios (3, 2-6), onde ele retoma a ideia da recusa dos judeus e o anúncio do evangelho aos gentios: “os pagãos são admitidos à mesma herança, são membros do corpo, são associados à mesma promessa em Jesus Cristo, por meio do Evangelho.” Sabemos, pelos estudos históricos, que foi nas colônias gregas do império romano onde o cristianismo começou a ganhar corpo como religião, foi lá onde se fundaram as primeiras comunidades e se ergueram as primeiras igrejas formalmente organizadas, aquelas que hoje nós chamamos de “Igrejas orientais”. Antioquia, Alexandria, Constantinopla, Filipos, Éfeso, Galácia, Colossos, Esmirna, Tessalônica, só bastante tempo depois, o cristianismo chegou ao mundo romano. Foi por esse motivo que os Patriarcas das Igrejas orientais não aceitaram a mudança da data do Natal para 25 de dezembro, porque as suas Igrejas eram muito mais antigas e a sua tradição já consolidada. E eu, sinceramente, gostaria que a Igreja Romana reparasse esse equívoco histórico e se unisse à liturgia das igrejas orientais, onde se encontra a tradição cristã mais genuína.


Meus amigos, independentemente dessas polêmicas históricas e literárias, o que nos interessa é destacar o símbolo da universalidade da mensagem cristã, quando os tempos se completaram e o Verbo se encarnou. Com a festa da Epifania, a liturgia encerra o ciclo do Natal e passa para o tempo comum, que irá até a quarta feira de cinzas, quando se inicia a quaresma.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos