domingo, 26 de março de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO DA QUARESMA

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA QUARESMA – JESUS DIVINO E HUMANO – 26.03.2023


Caros Confrades,


Neste 5º domingo da quaresma, a liturgia traz para nossa reflexão um outro trecho do evangelho de João que era utilizado na catequese antiga, durante a preparação dos catecúmenos, completando uma trilogia de ensinamentos. No domingo anterior, o tema foi a luz, com a cura do cego; no domingo mais anterior, o tema foi a água, no diálogo com a samaritana; neste domingo, o tema é a vida, com a ressurreição de Lázaro. Jesus é a luz que dissipa as trevas, a água que sacia para sempre a sede, a vida que nunca se acaba. Nessa narrativa da ressurreição de Lázaro, o evangelista faz questão de salientar o lado humano e emocional de Jesus. Por duas vezes, o texto fala que Jesus emocionou-se profundamente diante da comoção das irmãs do falecido e uma vez diz mesmo que Jesus chorou. O apóstolo João mostra, nesse episódio, os dois lados da personalidade de Cristo: a humanidade da emoção e a divindade do poder de ressuscitar.


Na primeira leitura, o profeta Ezequiel (37, 12-14) destaca o poder divino sobre a vida e a morte, ao anunciar: “vou abrir as vossas sepulturas e conduzir-vos para a terra de Israel; e quando eu abrir as vossas sepulturas e vos fizer sair delas, sabereis que eu sou o Senhor”. Mais de uma vez, Jesus demonstrou esse poder sobre a vida, fazendo ressuscitar a filha de Jairo (Mt 9, 18), o filho da viúva de Naim (Lc 7, 11), e o evento mais comentado: a ressurreição de Lázaro, pelo grau de amizade que Jesus mantinha com a família dele. O profeta Ezequiel foi discípulo de Jeremias e sucedeu a este na atividade profética, tendo sido levado cativo para a Babilônia. A sua profecia é cheia de imagens enigmáticas, que trazem divergências nas interpretações dos teólogos, os quais comparam suas visões àquelas narradas por João, no Apocalipse. O livro de Ezequiel faz parte da chamada “literatura apocalíptica”, que foi dominante num certo período da história de Israel. Esse trecho lido na liturgia de hoje refere-se aos israelitas mortos durante o cativeiro, que mesmo assim serão conduzidos para a terra de Israel, porque o Senhor é poderoso, Ele diz e faz.


Na segunda leitura, da carta aos cristãos de Roma (Rm 8, 8-11), Paulo desenvolve também a temática da ressurreição, fazendo o paralelo entre a vida segundo a carne e a vida segundo o espírito. A primeira leva à morte, a segunda conduz à vida plena. “Vós não viveis segundo a carne, mas segundo o Espírito, se realmente o Espírito de Deus mora em vós. Se alguém não tem o Espírito de Cristo, não pertence a Cristo.” (8, 9) Quem vive segundo o espírito, tem o Espírito Santo dentro dele e isso é a garantia de que aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos também vivificará nossos corpos mortais. Neste último domingo da quaresma, as leituras litúrgicas estão chamando a atenção dos cristãos para o mistério da Redenção operada por Cristo, cuja memória celebramos na festa da Páscoa. Embora a tradição religiosa que nos foi legada tenha uma tendência mais forte a enxergar sobretudo o aspecto do sofrimento e da paixão, a liturgia já está nos exortando que o foco central da preparação da Páscoa deve ser a fé na ressurreição de Cristo, porque esta é a verdade básica do cristianismo. Paulo fez essa síntese catequética extraordinária, quando declarou: se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação e vã é a vossa fé (1Cor 15, 14). Devemos, portanto, enxergar para além do sentimentalismo, que a devoção tradicional associou aos eventos da semana santa, concentrados nos sofrimentos de Cristo, para alcançarmos o verdadeiro sentido da Páscoa cristã.


No evangelho (Jo 11, 3-45), lê-se um dos trechos mais longos das leituras dominicais, no qual o apóstolo narra com riqueza de detalhes os fatos circunstanciais relativos ao milagre da ressurreição de Lázaro. O propósito catequético joanino está bem evidente no destaque que ele dá a esses detalhes, para demonstrar a figura divina de Cristo, que não se dissocia do seu lado humano. João fala da amizade de Jesus com Lázaro e suas irmãs. Mostra o receio dos discípulos pelo fato de Jesus querer voltar para a Judeia, onde morava Lázaro, pois de lá eles haviam escapado fazia pouco tempo, com medo da ira dos judeus, que queriam apedrejar Jesus. E no meio de tudo isso, mostra um fenômeno raro nos evangelhos, que evidencia a humanidade de Jesus, quando diz que ele se emocionou profundamente até o ponto de chorar. Nenhum trecho do evangelho afirma que Jesus sorriu, mas nessa leitura de hoje João afirma que ele chorou. E ele deve ter visto isso.


O relato da ressurreição de Lázaro é um texto clássico na literatura cristã e apresenta uma verdade incontestável. Nenhum daqueles judeus que estavam presentes na casa das irmãs Marta e Maria, quando Jesus ali chegou depois de Lázaro ter sido sepultado, pôs em dúvida este fato. No caso do cego de nascença, conforme vimos no domingo passado, houve questionamentos se o homem era mesmo cego, até os pais dele foram inquiridos para atestarem isso. Mas no caso de Lázaro, a prova foi tão contundente que João diz apenas assim, no fim da narrativa: muitos dos judeus que viram isso creram nele. Lázaro já estava sepultado há quatro dias, não havia como alegar algum tipo de armação ou fingimento. As irmãs até alertaram Jesus: ele já cheira mal. Não havia nada que alguém pudesse alegar para tentar desconstituir aquele espetacular milagre que Jesus produziu. É de se destacar ainda a oração que Jesus fez ao Pai antes de operar o milagre: “por causa do povo que me rodeia, para que creia que tu me enviaste ” (Jo 11, 42)


Quero comentar um detalhe dentre os muitos contidos nessa narrativa, que é este: e Jesus chorou. João relata que os judeus viram Jesus chorando e até comentaram: veja como Ele o amava... Isto é, ninguém duvidou de que Jesus estivesse realmente chorando, ninguém alegou que fosse fingimento. Por que estou eu insistindo nesse detalhe? Porque o principal mistério da teologia cristológica é exatamente esse das duas naturezas de Cristo: a natureza divina e a humana. Esse foi um dos temas mais difíceis enfrentados pelos primeiros teólogos do cristianismo, por causa da dificuldade de sua compreensão. Foi nesse contexto que surgiu a principal heresia dos tempos iniciais do cristianismo, o arianismo, criada por um bispo chamado Ario. A doutrina dele era assim: Jesus é filho de Deus, mas não é Deus, porque Deus é um só. Ele seria filho de Deus, criado desde o início dos tempos, conforme consta na Bíblia, mas não seria igual a Deus, ou seja, ele não teria a natureza divina. Ele estaria colocado numa posição acima dos homens e abaixo de Deus, uma espécie de semi-deus. Em resumo, Ario negava a natureza divina de Cristo. Ele seria um ser humano especial, mas não igual a Deus, porque só existe um Deus. Com isso, Ario negava também a Trindade Santa, o Deus Uno e Trino, porque essa verdade da fé não pode ser explicada pela razão humana. Desde o início, a teoria ariana foi rejeitada pelos teólogos orientais, porém os cristãos gregos admitiam o arianismo com facilidade, por causa da semelhança dessa doutrina com as divindades gregas, que eles cultuavam antes do cristianismo.


Foi o sustentáculo dos teólogos orientais, sobretudo de Santo Atanásio, bispo de Alexandria, que fez prevalecer a doutrina de que Cristo é “homo-ousios”, ou seja, tem a mesma essência do Pai. A consolidação dessa doutrina atanasiana se deu no Concílio de Niceia, em 325, quando foi redigido o símbolo dos Apóstolos, o Credo que se reza na missa: Cristo foi gerado (não criado), consubstancial ao Pai, e o Espírito procede do Pai e do Filho. Dizem os historiadores que, ao final daquele Concílio, onde foi vencedora a tese de Santo Atanásio, alguns bispos presentes que tiveram voto vencido (os bispos arianos), mesmo não concordando, terminaram por assinar o documento oficial do Concilio, porém houve bispos que se recusaram a assinar e esses foram destituídos dos seus cargos e expulsos da Igreja. Dizem ainda os historiadores que isso não determinou o fim do arianismo, pois esses bispos expulsos fugiram para outras localidades mais distantes, onde continuaram pregando a sua doutrina como verdadeira e assim, durante séculos, várias comunidades continuaram professando a fé ariana, especialmente no território oriental.


Meus amigos, quando lemos sobre essas difíceis polêmicas suportadas pelo cristianismo primitivo, compreendemos melhor o motivo de termos, nos dias de hoje, tantas divergências doutrinárias dentro do universo cristão católico. Ou seja, essas dissensões sempre existiram e já foram causa de inomináveis ações separatistas, as quais tenta-se evitar nos dias de hoje. Os casos mais recentes são o da comunidade São Pio X, do Monsenhor Lefébvre, logo após o Concílio Vaticano II, e cujo realinhamento com a Santa Sé vem sendo negociado já faz alguns anos, embora ainda não tenha se concretizado; e recentemente, um grupo de bispos (três alemães e um norte americano) que desafiaram o Papa Francisco, alegando erros doutrinários em seus escritos oficiais. E o Papa Francisco carrega consigo essa enorme responsabilidade de unificar as comunidades divididas, para que haja um só rebanho. Que a Páscoa seja uma festa inspiradora para a união de todos aqueles que creem em Cristo e estão comprometidos com a sua mensagem de salvação.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 18 de março de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DA QUARESMA - 19.03.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA QUARESMA – LUZ NAS TREVAS – 19.03.2023


Caros Confrades,


Neste 4º domingo da quaresma, a liturgia recoloca o tema da água, assim como foi no domingo passado, o episódio do diálogo com a samaritana no poço de Jacó. Hoje, lemos o caso do cego a quem Jesus mandou ir lavar-se na piscina de Siloé (o Enviado), ficando assim curado, e passou a ver a luz. São Paulo aos efésios recorda: agora, sois luz e não mais deveis andar nas trevas. O propósito dessas leituras relacionadas com o elemento água relembra uma antiga tradição dos primórdios do cristianismo, quando os catecúmenos se preparavam para receber o batismo na vigília pascal, chamando a atenção para o simbolismo da água, que lava o corpo e purifica também o espírito.


Na primeira leitura, do livro de Samuel (1Sam 16, 1-13), narra-se a unção de Davi como futuro rei de Israel. Samuel foi mandado por Javé para ir até a casa de Jessé e ali ungir um dos seus filhos, o qual Samuel não sabia quem era. Chegando lá, ficou tentando adivinhar e passou por cada um dos filhos de Jessé, sem que Javeh confirmasse nenhum. Mas a sua viagem até lá não poderia ser em vão, ainda faltava um dos filhos, justamente o caçula, o escolhido. Davi foi ungido, mas não se tornou logo rei, porque então Saul ainda vivia. Somente após a morte deste, Davi foi aclamado rei, porém, teve de enfrentar a disputa com Isboset, um descendente de Saul, que também fora aclamado rei pelos seus aliados, causando a divisão do povo. Após a morte deste e com grande habilidade, Davi conseguiu reunir todos os israelitas sob o seu comando, unificando o povo de Deus. Davi é um dos personagens centrais do Antigo Testamento, pela escolha especial de Javeh sobre ele, pelos grandiosos feitos realizados, pela sabedoria que ele sempre demonstrou, de modo que todos os profetas anunciaram que o Messias surgiria de alguém descendente de Davi. E assim o foi. O que não significa que ele nunca tenha sido censurado por Javeh, basta lembrar o famoso episódio da sua cobiça por Betsabé, esposa do seu general Urias, a quem ele ordenou que se arriscasse numa zona de combate, vindo assim a morrer e Davi casou- se com a viúva. É verdade que Davi fez muita penitência por causa disso, quando foi repreendido pelo profeta Natan, mas não largou Betsabé. Percebe-se que a Bíblia não traz apenas relatos exemplares do procedimento dos líderes do povo hebreu, mas apresenta também suas fraquezas, mostrando que, apesar disso, Javeh não os desautorizava. Para nós, fica a certeza de que Deus não nos abandona, apesar das nossas fraquezas, mas está sempre do nosso lado, vem sempre em nosso socorro.


Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Efésios (Ef 5, 8-14), o apóstolo evolui com o tema da luz, dizendo que os cristãos são filhos da luz, portanto, devem renunciar às coisas das trevas. A cidade de Éfeso era uma das maiores da região grega, sendo considerada a capital da chamada Ásia Menor, território que hoje corresponde à Turquia. Em Éfeso, havia um grande templo em homenagem à deusa grega Ártemis (que os romanos chamavam de Diana), deusa da lua e da caça. Esse templo era considerado uma das sete maravilhas da antiguidade. As festas religiosas pagãs ali celebradas anualmente eram muito famosas e atraíam pessoas de todas as partes daquela região, dominada pelos romanos. Essas festas eram verdadeiras bacanais, com profusão de bebidas e licenciosidades. Daí Paulo adverte aos efésios para que não se comportem como antes, quando ainda estavam no paganismo, mas exorta que sejam fiéis à sua conversão à doutrina de Cristo. Com firmeza, ele os conclama: “Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Vivei como filhos da luz. E o fruto da luz chama-se: bondade, justiça, verdade. Discerni o que agrada ao Senhor. Não vos associeis às obras das trevas, que não levam a nada; antes, desmascarai-as.” (Ef 5, 8-11) Os rituais pagãos ainda representavam uma grande tentação aos convertidos e, certamente, alguns se deixavam levar pelos antigos costumes. Mas o tema da luz também serve como ponte para a leitura do evangelho, quando Cristo cura o cego de nascença, dando-lhe a luz dos olhos. Paulo faz uma espécie de trocadilho com a oposição de conceitos luz-trevas, que tanto se relaciona com o contexto da visão corporal quanto também com a visão espiritual, decorrente da conversão. Os efésios, antes do evangelho, eram como cegos que não conheciam a luz da verdade. Por isso, não devem agora retroceder ao estado anterior.


Na leitura do evangelho de João (9, 1-38), temos a narração do longo trecho referente à cura de um cego de nascença, milagre de Jesus que os fariseus teimavam em não aceitar, sobretudo porque fora realizado num sábado. Trata-se de um texto destinado à catequese dos novos cristãos gregos. João descreve o episódio da cura do cego com grande riqueza de detalhes, destacando a messianidade de Cristo e a incredulidade dos fariseus. João aponta ainda para o simbolismo da água da piscina de Siloé, local que é referido por diversas vezes na Bíblia, sendo um poço muito antigo, nos arredores de Jerusalém, que era utilizado como fonte de abastecimento de água da cidade e era também local de abluções rituais por ocasião da festa dos Tabernáculos.


Nessa narração da cura do cego, há vários detalhes importantes a serem destacados. Primeiro, o fato de que Jesus, como ocorreu em outras ocasiões, não realizou diretamente o milagre, ele apenas o iniciou. Fez uma gosma de areia com saliva e colocou nos olhos do cego, mandando que ele fosse lavar-se em Siloé. Era como se Jesus estivesse pondo à prova a fé daquele homem. Ele poderia não ter ido a Siloé, poderia ter se lavado em outro lugar e o milagre não teria se completado. Ele acreditou em Jesus e acreditou também no poder das águas rituais de Siloé, assim como Naaman, o sírio, foi banhar-se no rio Jordão, a mando do Profeta Eliseu. Isso indica que os milagres divinos não acontecem como passes de mágica, mas Deus se serve da nossa participação para realizar seus feitos admiráveis. Ele inicia a tarefa e deixa para que nós a completemos, tal como fez o cego do evangelho.


Em segundo lugar, temos a associação entre a cegueira e o pecado. Era comum, na cultura hebraica, relacionar um infortúnio, uma calamidade, uma doença a um castigo de Javeh pelo pecado de alguém. A narrativa do livro de Jó fora um ensinamento inserido na literatura religiosa hebraica com o intuito de bloquear essa crença cultural antiga, mas ela persistia mesmo assim. Os discípulos logo perguntaram: Mestre, quem pecou: ele ou os pais, para que nascesse cego? (Jo 9, 2) João faz questão de inserir esse diálogo na narrativa certamente porque, no seu tempo, essa tradição ainda era sintomática no pensamento dos judaizantes e os catecúmenos precisavam romper com isso. Jesus deu-lhes uma resposta muito elucidativa: nem uma coisa nem outra, mas isso aconteceu para que se manifestasse nele a glória de Deus. Trazendo o fato para a nossa vida cotidiana, devemos estar cientes de que os infortúnios acontecem para que, através deles, se manifeste a glória de Deus na nossa vida. Nesse contexto, podemos inserir a recente pandemia de origem chinesa. Assim deve ser a dimensão da nossa fé. Jesus veio ensinar, de forma definitiva, que o Deus castigador apresentado no Antigo Testamento era uma visão deturpada desenvolvida pelos antigos hebreus, pois na verdade, Deus é amor.


Em terceiro lugar, podemos notar a caturrice dos fariseus, teimando em não aceitar o óbvio. Pediram ao ex-cego que relatasse várias vezes o episódio, duvidaram que ele fosse mesmo um cego, achavam que estivesse apenas fingindo, alegaram que o cego era outra pessoa parecida com ele, não ele próprio, foram entrevistar os pais do ex-cego para confirmar a história, lembraram que aquele dia era um sábado e, portanto, alguém da parte de Deus não poderia fazer aquilo no sábado, porque estaria contrariando a lei divina, enfim, buscaram de várias formas justificar sua incredulidade. E o ex-cego contava sempre a mesma história. Por fim, não tendo mais como refutar a veracidade do caso, apelaram para ignorância, porque o cego disse que Jesus era um profeta: tu nasceste no pecado e estás querendo nos ensinar? E o expulsaram da cidade. (Jo 9, 34)


O objetivo catequético do evangelista João leva-o a esticar ainda mais o assunto, contando que Jesus mandou chamar o expulso e fez dele um seguidor, sob o olhar de censura dos fariseus que assistiram a isso e perguntaram: Será que nós somos cegos? A resposta de Jesus foi uma martelada na cabeça deles: “Se fôsseis cegos, não teríeis culpa” (Jo 1, 41), mas como dizeis que enxergais, então são culpados pela vossa cegueira moral. Meus amigos, devemos estar atentos para não agirmos assim como os fariseus, deixando de reconhecer Jesus no rosto do irmão que nos procura e pede a nossa ajuda. Às vezes, somos demasiadamente incrédulos diante dos acontecimentos e o nosso orgulho não nos permite ver a mão de Deus agindo na história e nos conclamando a fazermos a nossa parte. Ficamos esperando um milagre automático e não nos damos conta de que Deus espera a nossa participação, para que os milagres aconteçam, esquecemos que Ele age por nosso intermédio. Lembremo-nos sempre do conselho paulino: agora que somos luz, deixemos a luz brilhar em nós.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 11 de março de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 3º DOMINGO DA QUARESMA - 12.03.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO DA QUARESMA – A ÁGUA VIVA– 12.03.2023


Caros Confrades,


Na liturgia deste 3º domingo da quaresma, o tema principal é o simbolismo da água e sua importância para a vida material e espiritual. Dois fatos bíblicos são narrados, ambos associados à figura da água, como o elemento mais importante do contexto: as reclamações dos israelitas no deserto, em Massa e Meriba, quando a água faltou para o povo e para os rebanhos, e Moisés precisou, literalmente, tirar água da pedra; e o diálogo de Jesus com a samaritana, que ficou curiosa para obter a água viva, que Jesus oferecia e que não a deixaria mais sentir sede. Liturgicamente, a água é a figura simbólica do batismo, que lava e purifica o fiel, tornando-o apto a receber a divina graça.


Na primeira leitura, do livro do Êxodo (17, 3-7), lemos sobre as reclamações do povo contra Moisés, quando tiveram de acampar nas quebradas do monte Horeb, num local extremamente seco, estando todos (pessoas e animais) cansados e sedentos. O povo murmurava contra Moisés, dizendo: Por que nos fizeste sair do Egito? Foi para nos fazer morrer de sede, a nós, nossos filhos e nosso gado?” (Ex 17, 3) Como de costume, ainda hoje é assim, o povo sabe mesmo é reclamar. E Moisés foi socorrer-se de Javeh, porque temia até ser apedrejado pelo povo irado. Passados alguns meses vagando pelo deserto, o povo pareceu ter esquecido de todos os prodígios feitos por Javeh em seu favor e, naquela situação, em vez de se voltarem para Ele novamente pedindo sua proteção, passaram a praguejar. É curioso como essa situação está sempre bem próxima do nosso dia-a-dia. Por mais favores que recebamos de Deus, sempre que acontece algo do modo como não queremos ou esperamos, passamos a murmurar palavras de infortúnio. Fazemos exatamente como o povo hebreu no deserto.


Mas Javeh, na sua misericórdia, teve piedade daquele povo, porque se fosse olhar a dureza dos corações deles, não mereciam consideração. Mandou que Moisés, na presença dos anciãos, batesse com o cajado na pedra, aquele mesmo cajado com o qual Ele operara o milagre anterior nas águas do rio Nilo, e fez brotar água daquela pedra seca. Moisés deu àquele lugar os nomes de Massa e Meriba, palavras que significam reclamação, murmuração, porque os israelitas foram injustos para com Javeh, quase que desafiando-o. Esse fato ficou tão presente na memória do povo e teve um impacto tão forte, que o salmista (possivelmente Salomão), muitos séculos mais tarde, ainda fez incluir esse incidente no salmo, que também se recita neste domingo: Não fecheis os corações como em Meriba, como em Massa, no deserto, aquele dia em que outrora vossos pais me provocaram, apesar de terem visto as minhas obras”. (Salmo 94). Não sei se vocês se recordam, mas este salmo 94 era rezado por nós todos os dias, na hora das Laudes, era uma introdução ao Oficio desta hora. Naquela época, sabíamos decorado. Moisés deu esses nomes àquele lugar para que a sandice daqueles incrédulos nunca fosse esquecida. Esta fonte, que jorrou em pleno deserto, por obra e misericórdia de Javeh, salvando a todos de uma provável morte naquela região inóspita, tornou-se o símbolo da água que vivifica e que Jesus vai retomar, em diversas outras ocasiões.


Na leitura do evangelho de João (4, 5-42), num texto bem longo, o evangelista narra com riqueza de detalhes o diálogo de Jesus com uma mulher da Samaria. Esta narrativa consta apenas no evangelho de João, não se encontrando nos textos sinóticos, o que demonstra ser do conhecimento apenas de João, com certeza, algo que ele próprio testemunhou. Além disso, o conjunto dos detalhes demonstra que essa narrativa era utilizada na catequese das primeiras comunidades da Ásia Menor, onde atuava João, e fora enriquecida com as reflexões e os comentários dos narradores. Atentemos para uma importante observação no versículo 4, 8: os discípulos tinham ido à cidade a fim de comprar alimentos. Jesus estava sozinho, sentado em alguma pedra ao lado do poço, quando chegou uma mulher, proveniente da cidade de Sicar, na Samaria, a fim encher sua vasilha com a água daquela fonte. Portanto, ninguém testemunhou o diálogo entre Jesus e a samaritana, no entanto, pela repercussão causada naquela cidade, deve ter-se tornado um fato muito comentado na região. Todos sabem que quem conta um conto aumenta um ponto. Logo, quando a narrativa foi colhida por João, para incluí-la no seu texto, essa história já havia passado por muitas bocas.


Através dela, João nos traz diversos ensinamentos importantes. O primeiro deles está na própria figura da samaritana, pelo fato de ser uma mulher e por ser da Samaria. Vejamos primeiro a questão do bairrismo ali embutida. Judeus e samaritanos, irmãos de crença, eram intrigados e não se falavam, isso desde o tempo do cativeiro da Assíria. Sim, houve o cativeiro da Assíria, antes do cativeiro da Babilônia. Os dois filhos de Salomão se desentenderam após a morte do pai e o reino ficou dividido em duas regiões: a região norte, com a capital em Samaria, reunia 10 tribos; a região sul, com capital em Jerusalém, reunia as outras duas tribos. Alguns anos após, o reino do norte (Samaria) foi vencido pelo rei assírio Assurbanipal e muitos foram levados cativos para Nínive, capital da Assíria. Os que ficaram se misturaram com povos pagãos e com estes se miscigenaram, o que era proibido pela lei mosaica. Por isso, os judeus do sul não consideravam mais os samaritanos como se fossem da sua mesma raça e criou-se grande rivalidade entre eles, tornando-se quase inimigos. Então, num primeiro momento, a narrativa de João mostrando Jesus dialogando com uma samaritana procura evidenciar que, para Ele, não há diferença entre judeus e samaritanos, todos são chamados à salvação. E João diz que muitos samaritanos acreditaram em Jesus. Vemos aí o aspecto da superação de uma antiga rivalidade através do ensinamento de Jesus, o que era muito importante para unir as comunidades locais.


Agora vejamos o aspecto da mulher de vida livre. Essas mulheres eram mal vistas pela comunidade e Jesus, em diversas ocasiões, as acolheu e as valorizou. Ela nem precisou dizer, porque Ele se antecipou e disse logo: eu sei que tu já tiveste cinco maridos e o que tens agora nem teu marido é. Ela ficou impressionada e logo correu até a cidade para avisar aos moradores de que estava ali um profeta, um profeta diferente, que não fazia discriminação entre judeus e samaritanos. E eles pediram para que Jesus permanecesse com eles e, diz João, Jesus ficou dois dias naquela cidade. E foi tamanha a adesão do povo que logo o identificaram como o Messias. Através dessa narrativa, João quer significar que até os não judeus (na verdade, eles eram judeus misturados) acreditaram em Jesus, logo não havia motivo para que os judeus (puros) desacreditassem nele. João é tão detalhista nesse episódio, a ponto de registrar que os discípulos de Jesus, ao retornarem, o viram conversando com uma mulher e se admiraram, mas nenhum teve coragem de perguntar sobre o que falavam. Certamente, a admiração deles não era por ser uma mulher, mas por ser uma samaritana, o que era duplamente de admirar, pelo fato da dupla discriminação: da feminilidade e da cidadania samaritana.


Vejamos agora um pouco sobre o tema do diálogo propriamente dito, que deve ter sido conservado pela própria tradição dos samaritanos, já que nenhum dos discípulos estava presente. A mulher logo estranhou o fato de haver um judeu naquele local, pois os judeus evitavam passar por ali. E achou ainda mais estranho aquele judeu pedir-lhe água, pois os judeus nem falavam com os samaritanos, muito menos pediam alguma coisa. Obviamente, o pedido de água foi apenas um pretexto para iniciar a conversa, porque antes que ela se negasse, Jesus despertou logo a curiosidade dela dizendo que tinha a água viva, aquela que sacia a sede para sempre. Ela ficou logo interessada e pediu: dá-me dessa água também, para que eu nunca mais precise voltar aqui. Até então, ela pensava apenas no líquido material, mas depois que Jesus esmiuçou a vida dela, ela passou a entender que ali estava alguém que era maior do que o pai Jacó, que havia deixado aquele poço para os seus descendentes. E João insere nesse diálogo a referência ao Messias, como se a samaritana tivesse de imediato reconhecido com quem falava:  “Sei que o Messias (que se chama Cristo) vai chegar. Quando ele vier, vai nos fazer conhecer todas as coisas”. Disse-lhe Jesus: “Sou eu, que estou falando contigo”. (Jo 4, 25-26) Notem mais uma vez o detalhismo: João explica para os leitores que o Messias é o Cristo, até a samaritana percebeu isso. Essa temática foi, com certeza, muito repetida na catequese das primeiras comunidades.


Vejam, meus amigos, quantos ensinamentos estão embutidos nesse episódio, porém a liturgia se concentra apenas no simbolismo da água. A meu ver, o tema maior é o messianismo de Jesus. A figura da água apenas ilustra uma dimensão do Seu poder, que é a oferta de uma água especial, pela qual nos vem a salvação. A água do batismo é a vivência religiosa dessa água viva, que nos abre o caminho da vida eterna. Ela não é ingerida, mas aspergida, no entanto, o seu poder curador ultrapassa o de qualquer outro remédio purificador tanto do corpo quanto do espírito.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos.

sábado, 4 de março de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA QUARESMA - 05.03.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA QUARESMA – A LEI E OS PROFETAS – 05.03.2023


Caros Confrades,

Neste 2º domingo da quaresma, a liturgia nos traz a narração da transfiguração de Cristo perante três dos seus apóstolos. Após abordar a temática das “tentações” de Cristo, a liturgia faz uma antecipada demonstração da sua futura glória. A promessa de Javeh a Abrão dizendo que a sua descendência seria abençoada e preencheria toda a terra está na origem de toda a tradição judaico-cristã, que tem seu ponto culminante na pessoa de Jesus Cristo. E nesse tempo de penitência, recordamos a recomendação de Paulo a Timóteo, para que suporte os sofrimentos decorrentes da pregação do evangelho, tal como ele (Paulo) também está sofrendo como prisioneiro dos romanos.


Na primeira leitura, lemos o desafio que Javeh lança a Abrão: sai de tua terra e vai para o lugar que eu vou te indicar; farei de ti um grande povo e em ti abençoarei todas as famílias da terra. (Gn 12, 2) De acordo com os estudos de hebraico bíblico, que fiz no Instituto Bíblico de Israel, o nome do livro, que nós chamamos Gênesis, no idioma original se diz Bereshit e significa no início, no princípio. O nome Gênesis foi atribuído na tradução grega deste livro e lembra logo a ideia de criação do mundo. No entanto, verificamos que a narração da criação ocupa apenas os dois primeiros capítulos. A partir do cap. 3, inicia-se a história de Adão e Eva, Caim e Abel, o dilúvio, os primeiros povos até chegar ao personagem Abraão, no cap. 11. A leitura deste domingo, do cap. 12, narra os primórdios da aliança de Javeh com o povo hebreu, através do patriarca Abrão. Conclui-se que o título 'gênesis' não tem muita relação com o conteúdo da maior parte dos 50 capítulos deste livro, sendo o nome Princípio ou Início muito mais adequado. O objetivo do autor sagrado, neste escrito, foi mostrar o início do povo de Deus, a origem da aliança de Javeh com os patriarcas, não propriamente a criação do mundo. Daí a importância de se conhecer as línguas antigas, a fim de compreender melhor os textos da escritura, o que não se percebe quando se depende apenas de traduções. Diz o autor de Bereshit que Abrão partiu para uma terra distante e fez conforme o Senhor havia dito.


O autor sagrado quer destacar, nesse contexto, duas coisas: em primeiro lugar, a fé inabalável do seu patriarca Abrão, cujo nome foi depois mudado para Abraão. Ele não sabia para onde iria, porque Javeh deveria indicar isso quando já estivesse a caminho, mas assim mesmo, com toda a confiança, ele deixou o seu lugar natal (Ur, na Caldeia) e foi, com toda a sua família, seus escravos e seus bens, pois era um homem rico, seguindo as ordens de Javeh. Em segundo lugar, essas narrativas também serviam para explicar ao povo hebreu, descendente dos patriarcas, o motivo de serem eles um povo nômade. Ainda hoje, no território que atravessa o deserto do Saara, há os povos nômades. O hagiógrafo do Bereshit quer justificar para o povo que o nomadismo faz parte de uma missão, de uma promessa, de um trato realizado por seus ancestrais, por isso eles não se fixam em nenhum território. A ligação desse texto com o evangelho do dia (narrativa da transfiguração de Jesus) está na referência de ser Cristo o ponto culminante daquela primitiva aliança, o cumprimento perfeito da promessa feita por Javeh aos primeiros patriarcas.


Na segunda leitura, Paulo exorta seu discípulo Timóteo e lhe recomenda sofrer com paciência as agruras decorrentes da pregação do Evangelho. Timóteo fora colocado por Paulo como dirigente da comunidade que ele (Paulo) criou em Éfeso e, por extensão, dirigente das comunidades de toda a Ásia Menor, região que hoje corresponde à Turquia. Paulo estava preso e era levado para Roma, a fim de ser julgado pelo imperador, tendo deixado com Timóteo a árdua missão de ser o continuador do trabalho dele, pois Paulo sabia que não mais retornaria ali. Naquela ocasião, Timóteo enfrentava um sério problema com os judeus adversários de Paulo, que haviam sido responsáveis pela sua prisão. E não eram apenas perseguições ideológicas, mas incluía também ameaças físicas. Paulo tomou conhecimento desses fatos e, através de carta dirigida a Timóteo, exorta-o a perseverar na fé assim como ele, Paulo, também estava preso por causa do evangelho, mas confiava na promessa de Cristo que, ao vencer a morte, trouxe a imortalidade para os seus seguidores. “A graça de Deus nos foi dada por Jesus Cristo para toda a eternidade.” A tenacidade de Paulo, de Timóteo, de Tito e dos primeiros líderes cristãos daquelas comunidades foi altamente importante para a continuidade do cristianismo, o que possibilitou seu avanço até os dias de hoje.


Na leitura do evangelho de Mateus (17, 1-9), temos a narração da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Primeiramente, podemos refletir sobre a escolha desses três, isto é, por que Jesus não se transfigurou diante de todos os apóstolos? Certamente, eram esses três os que tinham sua maior confiança. Pedro já estava escolhido para ser o líder do grupo e Jesus o preparava para essa missão. João era o discípulo mais jovem, aquele em que Jesus depositava total confiança. Quanto a Tiago, havia dois discípulos com esse nome. O evangelista Mateus diz que quem estava no trio era o Tiago (maior) filho de Zebedeu, irmão de João, porém os outros dois evangelhos sinóticos (Marcos 9, 2 e Lucas 9, 28) não afirmam se era este mesmo ou o outro Tiago (menor) filho de Alfeu. Este último é considerado, por algumas tradições, como 'irmão” de Jesus, deixando assim uma dúvida sobre a identidade do terceiro discípulo a presenciar aquele extraordinário fenômeno. Se levarmos em consideração o grau de parentesco, podemos supor que o Tiago referido na narração da transfiguração seja o outro, o irmão de Jesus, não o irmão de João.


Importa explicar aqui nesse contexto o significado de “irmão”, pois isso é motivo de polêmicas entre algumas igrejas cristãs. Com efeito, a palavra grega “adelphos”, que se traduz geralmente por irmão, também significava primo, meio-irmão, irmão de criação, ou seja, um parentesco bastante próximo, não necessariamente irmão consanguíneo. Sou levado a crer que o Tiago do trio que presenciou a configuração poderia ser este Tiago Adelphos, o menor, e não o filho de Zebedeu, irmão de João. Isso entra em choque com o texto de Mateus, mas os motivos que acima destaquei me levam a sustentar a segunda hipótese, com todo o respeito. Trata-se de uma questão polêmica, sem dúvida, mas não se deve interpretar o texto bíblico de forma puramente literal, e sim buscando elementos circunstanciais que auxiliem a uma compreensão mais ampla. Devemos considerar que, durante séculos, esses textos passaram pelas mãos de vários copistas e não se descarta a eventual possibilidade de ter havido pequenas alterações ou adaptações do texto primitivo, involuntárias ou voluntárias.


Um outro ponto a se destacar no texto da narração da transfiguração é a metamorfose de Jesus ante a presença de dois personagens da tradição hebraica: Moisés e Elias. Eles representam, respectivamente, a Lei e os Profetas. Diz o narrador que a face de Jesus ficou resplendente igual ao sol e as suas roupas brancas tanto quanto a neve. Eu achei interessante essa comparação da roupa de Jesus com a neve, porque as pessoas da região da Palestina, onde os apóstolos viviam, não têm familiaridade com a neve, sendo essa uma experiência mais comum na Europa. Pois bem, no texto original em grego, está escrito que as roupas de Jesus ficaram “leuka ôs tô phôs” e S. Jerônimo traduziu em latim como sendo “alba sicut nix”. Bem, phôs em grego significa luz (phôs, photos). Então, conclui-se que S. Jerônimo utilizou uma metáfora europeia para traduzir o original grego. Para ser mais fiel ao texto grego, em lugar de roupas “brancas como a neve” deveria ser roupas “brancas como a luz”.


Nesta narração, Jesus quis provar aos seus discípulos duas verdades que ele vinha pregando há muito tempo: primeiro, a sua origem divina, a sua verdadeira feição gloriosa; segundo, que os seus ensinamentos não são contrários à lei mosaica, como muitas vezes os fariseus o acusavam, mas ao contrário, Ele se apresentar ao lado de Moisés e de Elias, dialogando com eles, queria significar que havia pleno entendimento entre os respectivos ensinamentos. Os discípulos eram judeus e, certamente, também podiam ter ainda dúvidas dessas duas verdades. Afinal, o judaísmo farisaico interpretava a lei de uma forma tão própria e exclusiva que, à primeira vista, dava a impressão que o ensinamento de Jesus estava indo contra a sua tradição. Com aquela visão futurista, Jesus estava dando provas de que a sua doutrina era mesmo a continuidade daquilo que a tradição guardava como ensinamentos de Moisés e dos Profetas.


Para nós, a figura do Cristo transfigurado é um constante e eloquente apelo a que tenhamos sempre na mente o nosso destino glorioso, cuja antecipação Ele demonstrou naquele memorável cenário. Nossa missão é fazer com que Cristo se apresente através de nós, transfigurando-nos.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 25 de fevereiro de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 1º DOMINGO DA QUARESMA - 26.02.2023

 

COMENTÁRIO LITURGICO – 1º DOMINGO DA QUARESMA – ORIGEM E SIMBOLISMO DO PECADO – 26.02.2023


Caros Confrades,


A liturgia deste 1º domingo da quaresma põe para nossa reflexão o tema da origem do pecado, através da narração bíblica da legendária árvore do bem e do mal, já tantas vezes tema de criações artísticas e sempre motivo de polêmica entre os leitores bíblicos. Logo a seguir, apresenta um trecho de Paulo igualmente polêmico, no qual ele faz um trocadilho sobre a origem do pecado, remetendo o argumento à árvore do paraíso, e lembrando a “tentação” sofrida pela mulher. Na sequência, o evangelho de Mateus vai abordar outro tema controvertido acerca das “tentações” de Cristo. Trata-se de assuntos que precisam ser entendidos com clareza, para evitarem-se discussões inúteis e questionamentos insolúveis. Mais do que narrar um fato, as leituras bíblicas trazem para nossa consideração a simbologia do pecado, para destacar a força da graça divina, que é infinitamente superior.


Na primeira leitura (Gen 2, 7 – 3, 7), temos aquela conhecida história sobre o “fruto proibido”, que teria sido ingerido por Eva e Adão, por influência da serpente. Como já inúmeras vezes tive ocasião de comentar, não se pode realizar interpretação literal dessa legenda, pois ela é simbólica e pedagógica. O seu objetivo é mostrar que a origem do pecado está, em primeiro lugar, na soberba humana de querer igualar-se a Deus e, em segundo lugar, na ousadia da desobediência. Sabe-se muito bem que serpente não fala e nunca falou, além do que a narrativa explora o aspecto da curiosidade feminina, envolvendo a ação da mulher na origem do pecado, fato que se transformou nessa, ainda hoje presente, discriminação social contra a mulher, persistente e resistente, apesar de todo o empenho do movimento feminista mundial. Nem mesmo a inclusão de dispositivos nas leis e na constituição acerca da igualdade dos gêneros consegue força para superar tão arraigado preconceito. As matrizes da cultura hebraica, associadas e reforçadas pela mentalidade greco-romana antiga, colocam raízes demasiado profundas neste comportamento masculino (machismo), que consegue sobreviver a todas as tentativas de extirpá-lo. Essa simbologia do pecado, escondida nos meandros mais obscuros do inconsciente coletivo, tem uma força de regeneração extremamente poderosa.


Podemos observar uma explicação didática da simbologia do pecado no trecho paulino da Carta aos Romanos (5, 12-19). Foi muito importante a adesão da elite romana ao cristianismo primitivo, fruto do apostolado de Paulo, motivo pelo qual ele procurou explicar muito claramente esse tema complexo e difícil para seu público romano constituído, em grande parte, de pessoas instruídas na cultura grega. Paulo era um judeu fervoroso, ortodoxo, então ele conhecia bem a Torah e os seus ensinamentos, inclusive a história do paraíso do Éden. Utilizando-se de seus conhecimentos da cultura grega, ele compôs um raciocínio lógico bastante criativo, fazendo uma espécie de trocadilho paralelo entre a história da árvore do bem e do mal e a redenção operada por Cristo, ao contrapor o pecado e a graça personificados, nas figuras de Adão e de Cristo. “Como a falta de um só acarretou condenação para todos os homens, assim o ato de justiça de um só trouxe, para todos os homens, a justificação que dá a vida. ” (Rm 5, 18). Pela culpa de Adão, o pecado entrou no mundo; pela ação redentora de Cristo, a graça venceu o pecado. Por um homem (Adão), veio o pecado; por um homem (Cristo), veio a graça. Paulo nem precisou fazer referência à participação de Eva no episódio da origem do pecado, talvez até propositalmente omitiu isso, para não complicar ainda mais a situação social das mulheres em Roma, pois elas já eram postas em segundo plano na sociedade romana. Esse texto de Paulo, não obstante o seu didatismo, trouxe enormes dificuldades teológicas para a sua interpretação, sendo ainda hoje motivo de inquietação por parte de teólogos que não conseguem ultrapassar a sua estrita literalidade. Com certeza, Paulo não tencionava defender uma “tese científica” sobre a origem da humanidade, mas apenas construir um argumento teológico servindo-se da lógica filosófica grega, muito conceituada entre os romanos, para demonstrar que o cristianismo era uma religião compatível com a filosofia grega. A sua tese de “por um só homem” tem gerado memoráveis polêmicas quando confrontada com as teorias da evolução das espécies, opondo de forma desnecessária a Bíblia e a ciência. Sem adentrar nos detalhes dessa problemática, eu sustento o entendimento teológico de que o pecado se origina da própria natureza humana imperfeita e, nessa linha de pensamento, a graça que Cristo veio nos trazer com a sua encarnação não configura um “restabelecimento” ou retorno a uma situação anteriormente vivida no paraíso bíblico e que fora perdida por causa das ações mal sucedidas dos antepassados, mas se trata de uma situação futura, dentro do processo de aperfeiçoamento contínuo da própria criação divina.


Portanto, nessa nova linha de raciocínio, não teríamos a sequência graça original→ pecado original→ nova graça cristã, mas apenas natureza humana originalmente imperfeita (e por isso passível de ser atingida pelo pecado) e natureza humana socorrida pela graça divina trazida por Cristo, com a qual o ser humano tem a ajuda suficiente para superar as imperfeições naturais e se plenificar cada vez mais. Ao desenvolver-se, por via de consequência, o ser humano leva para toda a criação esse processo evolutivo. Aí, sim, vale a observação de Paulo em Romanos 5, 20: “onde abundou o pecado, superabundou a graça.” Esse trecho, que não está incluído na leitura deste domingo, é exatamente o versículo seguinte de onde termina o texto lido na liturgia.


A leitura do evangelho de Mateus 4, 1-11 traz a narração das “tentações” de Jesus no deserto, onde ele jejuou durante 40 dias. Vale recordar nesse contexto a simbologia do número 40. Dentro do contexto bíblico, o número 40 aparece sempre antecedendo um fato muito importante, não significa contagem matemática de 40 dias, mas do tempo oportuno para o poder de Deus se manifestar através de alguma obra grandiosa. Por sua vez, as tentações de Jesus representam os 'perigos' que a sua natureza divina poderia representar em situações de extrema pressão psicológica como ser humano que era. Para cumprir os desígnios do Pai e para cumprir o plano salvífico, Jesus precisava passar por todo aquele padecimento enquanto pessoa humana. De fato, nós sabemos que Jesus enfrentou diversos desafios, que para Ele teriam sido facilmente resolvidos se usasse o poder divino, mas ele não podia fazer assim. As chamadas “tentações” foram, na verdade, uma espécie de treinamento que ele realizou para comportar-se plenamente conforme a natureza humana.


Então, quais foram mesmo as grandes 'tentações' de Jesus? 1. Transforma essas pedras em pão... tentação do poder; 2. Eu te darei todos os reinos... tentação da riqueza; 3. Joga-te daqui para baixo... tentação do orgulho/vaidade. Quantas vezes, os fariseus tentaram Jesus para que Ele realizasse um “milagrezinho” na presença deles. Herodes foi um que disse na cara de Jesus: “você é uma piada”, porque insistiu pra Jesus atravessar a piscina dele andando sobre a água (cf Lucas 9, 7 e 23, 6), e Jesus não fez. Portanto, se quisermos encontrar a figura de satanás tentando Jesus, não busquemos essa no deserto, onde ele jejuou, mas nos diversos fariseus que o tentaram em vão. O próprio Judas, que certamente vira Jesus fazer vários milagres, não conseguia acreditar que Ele fosse suportar todas aquelas humilhações impostas pelos chefes dos sacerdotes e iria 'dar a volta por cima', até pagou pra ver, mas perdeu a aposta. Desculpem-me, meus amigos, talvez alguns não concordem com o que vou escrever, mas muitas vezes, a figura de satanás é utilizada para encobrir nossas próprias fraquezas e nossa personalidade imperfeita. As grandes tentações que nos afetam não nos vêm de um agente exterior, mas da nossa “trindade” interior: id, ego e superego (tomando emprestada a terminologia de Freud), que são as verdadeiras “donas” da nossa personalidade.


Meus amigos, veio-me a lembrança agora uma frase emblemática do filósofo austríaco Edmund Husserl, que insistia sempre: “voltemos às coisas mesmas”. Este apelo de Husserl corresponde ao início da filosofia fenomenológica, por ele defendida, instruindo-nos a reconhecer e valorizar as nossas próprias percepções e não procurarmos a todo custo racionalizar os acontecimentos, buscar explicações lógicas e racionais para tudo, através da generalização conceitual abstrata. Trago esta frase para este contexto pela mensagem que ela encerra. Encaremos de frente o nosso próprio ser, sem ocultações ou subterfúgios. Voltemo-nos para nós mesmos e tenhamos coragem de assumir nossas fraquezas, deixemos de culpar o demônio pelos males que fazemos, pois somente assim estaremos criando condições de superar a nós mesmos. A literatura transformou essa autoanálise em tentação e na figura do tentador. Mas nós devemos ir além dessa metáfora tradicional. Se sairmos disso, seremos capazes de reciclar também a nossa noção de pecado.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 18 de fevereiro de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 7º DOMINGO COMUM - 19.02.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 7º DOMINGO COMUM – PERDÃO SEM MEDIDA – 19.02.2023


Caros Confrades,

Neste 7º domingo comum, a liturgia nos recorda que somos santuários vivos de Cristo, que habita em nós. E a característica própria do cristão é o amor os irmãos, mesmo aqueles que são maldosos e causam ofensas. Por isso, é preciso aprender a perdoar sem medida. No evangelho de Mateus, Jesus pergunta: o que vocês fazem a mais do que os pagãos? Amar os amigos e fazer o bem a quem lhe faz bem, isso não é grande coisa, os pagãos também fazem assim. Para fazer diferente, o cristão deve amar os inimigos e fazer o bem aos que lhe fazem o mal.


Na primeira leitura, do livro do Levítico (19, 1-18), Moisés transmite ao povo o recado dado por Javé: sede santos assim como eu sou santo e, recordando o primeiro mandamento, repete o refrão da santidade: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Anos depois, Jesus Cristo irá dizer aos discípulos que este é o primeiro e o maior mandamento. Mas a lei de Moisés ainda era muito restritiva em relação a este amor ao próximo, pois considerava o próximo apenas os compatriotas, os amigos, permitindo o ódio aos inimigos. Na sua pregação, Jesus veio ampliar o conceito do próximo, estendendo-o inclusive aos não compatriotas, como é o caso famoso da parábola do Bom Samaritano. Aqui está a grande e essencial diferença entre a lei antiga e a nova lei, entre o cumprimento restrito da lei e o cumprimento desta com sabedoria, conforme tema abordado no comentário do domingo passado. O escritor do Levítico dizia: não procures vingança nem guardes rancor dos teus compatriotas (v. 18), referindo-se ao povo de Israel apenas. Jesus vai dizer: teus compatriotas são todos os teus semelhantes, porque a pátria a ser considerada, neste caso, é o céu. E a exortação de não guardar rancor nem procurar vingança se estende a todos, sem medida.


Na continuação da primeira carta aos Coríntios (1Cor 3, 16-23), Paulo continua o ensinamento já abordado no domingo anterior, dizendo que os cristãos não se devem deixar levar pela sabedoria das coisas do mundo, mas pela sabedoria que provém de Deus. E como isso será possível? Porque nós somos santuários de Deus e o Espírito de Deus habita em nós. Aquele que se inebria com a sabedoria mundana é um insensato e destrói em si próprio esse templo onde Deus habita, tornando-se habitação do mal. Assim ele diz no versículo 18: “Ninguém se iluda: Se algum de vós pensa que é sábio nas coisas deste mundo, reconheça sua insensatez, para se tornar sábio de verdade.” Quem não abomina essa sabedoria insensata e fugaz, fundada apenas em conceitos e experiências materiais, ao contrário, a cultua, este fecha a porta ao Espírito de Deus e não será capaz de compreender a sabedoria verdadeira. O Senhor conhece os pensamentos dos sábios (da terra) e sabe que são vãos. O cristão deve buscar a verdadeira sabedoria, aquela que vem do alto e que foi ensinada por Cristo, atualizando o verbete da lei, reconhecendo em todos (judeus e gentios) a mesma irmandade. Diz Paulo, no v. 23, tudo vos pertence, mas vós sois de Cristo e Cristo é de Deus.


Prosseguindo também na mesma temática do domingo passado, o evangelho de Mateus (5, 38-48), nos mostra outra vez Cristo ensinando, com toda a sua criatividade pedagógica, o verdadeiro sentido da lei mosaica, que Ele não veio abolir, mas aperfeiçoar. Neste domingo, Ele nos traz dois novos exemplos, que se somam aos que já comentamos antes.


No primeiro exemplo de hoje, diz Ele: “ouviste o que foi dito aos antigos: olho por olho e dente por dente” (Mt 5, 38). Esse preceito multimilenar está presente em todas as culturas antigas e simboliza o conceito mais primitivo de justiça que os seres humanos formularam, isto é, a justiça proporcional ou vingança controlada. Os estudiosos apontam que essa regra do “olho por olho, dente por dente” veio do Código de Hamirábi, um rei que governou a Babilônia cerca de dois mil anos antes de Cristo. Esse preceito foi incorporado nas culturas da época, havendo referências a ele entre os hebreus, gregos e romanos. Na primeira lei romana escrita, conhecida como Lei das XII Tábuas, essa regra já fora inserida para os casos em que não houvesse acordo, estabelecendo que uma pessoa não podia “cobrar” da outra mais do que o prejuízo causado, dando início assim ao conceito de equidade, que foi aperfeiçoado por Aristóteles e se encontra hoje nos direitos de todos os povos. Jesus faz referência, portanto, a um preceito bastante conhecido e amplamente praticado pelos judeus.


Pois bem, diz Jesus: os antigos ensinaram isso – olho por olho, dente por dente. Eu, porém, vos digo: “não tomem como modelo as pessoas más”. É assim que eu prefiro traduzir a frase que está em Mt 5, 39. O original grego transliterado é: “mê antistenai tô ponero”, frase que São Jerônimo traduziu em latim como “non resistere malo” e a CNBB traduziu como “não enfrenteis quem é malvado”. Com todo respeito, parece-me que São Jerônimo se equivocou na tradução do verbo grego “antistenai” e traduziu por “resistire”, que em português seria “resistir”. Mas, pelo meu entendimento, o verbo grego tem o sentido de “não vos compareis” com os maus, isto é, não façais como os maus, não imitem o comportamento deles. Da forma como está traduzido (não enfrenteis quem é malvado) dá uma ideia de fraqueza, de acovardamento, como se o cristão devesse ter medo dos maus, não reagir aos maus, não enfrentar o malvado. Mas a mim parece que, quando Cristo aconselhou “oferecer a outra face” para quem te bate no rosto, ele quis dizer outra coisa: os maus agem de forma agressiva, vocês, porém, não devem tomar esse comportamento como exemplo, façam diferente deles, não por medo, mas por convicção. Em resumo, não se equiparem aos maus, não repitam suas ações deles, não se comportem como eles. Esse deve ser, segundo penso, o significado metafórico da recomendação de Cristo sobre “oferecer a outra face”. Se você revidar a um bofete, você estará repetindo o mau exemplo dado por quem lhe ofendeu. Então, não retribua a violência com violência, mas com o amor, isto é amar sem medida, perdoar sem medida.


Esta mesma lição nós encontramos em Paulo aos Romanos (12, 20), quando ele diz: “se teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer; se tiver sede, dá-lhe de beber, assim amontoarás brasas sobre a sua cabeça”. Fora do contexto bíblico, o jogador Pelé ensinava aos jogadores mais jovens: quando algum adversário te empurrar, não faça resistência, caia e ele cairá junto contigo. Porque ele espera que você resista, então ele será surpreendido. Em todas essas situações, o ensinamento é o mesmo, ou seja, não tomem como exemplo o adversário, façam o oposto, faça o que ele não espera, surpreenda-o e assim você terá uma atitude superior, uma atitude de bem, um testemunho de ser verdadeiro seguidor do ensinamento de Cristo.


Complementa esta lição o outro exemplo dado por Cristo, na sequência do evangelho de Mateus (5, 43): os antigos diziam – ama teu próximo e odeia teu inimigo. Eu, porém, vos digo: amai vossos inimigos, orai pelos que vossos perseguidores. Meus amigos, com essa, Cristo pegou pesado e nos colocou o maior desafio do evangelho. Amar os amigos e odiar os inimigos é fácil, todos fazem isso. Mas se for assim, que diferença haverá entre o cristão e o não cristão? O cristão tem que ser diferente: amar os amigos e os inimigos, fazer o bem a quem faz o mal. O escritor James C. Hunter, no conhecido livro “O monge e o executivo”, faz uma interpretação interessante desse ensinamento de Cristo. Diz ele que na frase “amar os inimigos”, o significado do verbo “amar” é diferente da frase “amar os amigos”. Explicando melhor, seria assim: em relação aos amigos, amar tem o sentido de sentimento, afeto; em relação aos inimigos, amar tem um sentido puramente comportamental, ético. Então, a frase “amar os inimigos” quer dizer comportar-se de um modo ético mesmo com aquelas pessoas que fizeram algum mal a você, isto é, não exercitar a vingança, não ficar esperando uma ocasião futura para ir à desforra. Amar os inimigos significaria, dessarte, ser ético com todos, tratar as pessoas más da mesma forma como se deve tratar qualquer pessoa, com ética e dignidade, mesmo que intimamente a sua vontade seja de esganar o adversário.


Parece-me que o escritor tem certa razão. No texto grego, o verbo que está traduzido por “amai” é “agapate”, verbo com o mesmo radical da palavra “ágape”. Quando eu estudei antropologia teológica, aprendi que os gregos conheciam três significados para o verbo “amar”: 1 – amor erótico (eros); 2 – amor amizade (filia); 3 – amor fraternidade (ágape). Esse terceiro sentido se refere à convivência humana, ao modo respeitoso como as pessoas devem tratar umas às outras, independente de quem seja. Então, seguindo o raciocínio de J. Hunter, podemos concluir que a ordem de amar os amigos tem o sentido 2, enquanto amar os inimigos tem o sentido 3. Eu continuo pensando que a doutrina de Cristo não faz essa distinção, no entanto, pode ser uma forma de atenuar o rigor do desafio que Cristo nos deixou e, assim fazendo, quem sabe, aos poucos chegaremos a encarar o desafio de forma completa.

Que o divino Mestre nos socorra com engenho e arte, para conseguirmos colocar em prática os seus ensinamentos.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos



domingo, 5 de fevereiro de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO COMUM - 05.02.2023

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO COMUM – A LUZ E O SAL – 05.02.2023


Caros Confrades,


Neste 5º domingo comum, a liturgia coloca para nossa reflexão a figura da luz, exemplificando com o brilho da autora, que ilumina a terra. A luz que brilha sobre nós, semelhante à aurora, é exatamente a luz da graça divina, que recebemos de Deus no nosso batismo e que deve permanecer viva e brilhante, de modo a iluminar os atos da nossa vida e, ao mesmo tempo, deve funcionar como guia para clarear sobre os irmãos, especialmente aqueles mais fracos na fé. O evangelho associa a figura da luz com outro elemento essencial para a nossa vida, que é o sal. Um e outro são metáforas dos compromissos que nós, batizados, assumimos como autênticos discípulos de Cristo.


A teologia da revelação ensina que nós nascemos com a sombra do pecado original, uma falha da natureza humana, que não devemos atribuir ao Criador, que é perfeito, mas à nossa própria condição de humanidade, herdeiros de Adão e Eva. Para extirpar essa sombra, que carregamos como uma consequência da fragilidade humana, nós temos o remédio eficaz, que é a graça divina. Através da aspersão com a água batismal, nós somos purificados dessa mácula, todavia, essa purificação não funciona de modo automático, mas precisa ser renovada e reforçada com as nossas boas ações, o que só é possível quando nós abrimos nosso coração para receber a graça e, em consequência, orientamos nossa vontade para que a graça atue em nós e produza seus divinos efeitos. A referência a Adão e Eva é a linguagem simbólica pela qual o escritor sagrado personifica de um modo genérico as duas figuras humanas de homem e mulher, imperfeitos pela natureza, mas aperfeiçoados pela graça recebida do Criador. E o pecado original não deve ser identificado com aquela vetusta história da maçã, mas com a vulnerabilidade inerente à natureza humana, que nos impede de conseguirmos alcançar, sozinhos, a salvação. Para isso, todos nós dependemos essencialmente da graça e da misericórdia de Deus.


Na primeira leitura, o profeta Isaías exemplifica, de um modo bem didático, algumas ações humanas que tipificam aquilo que a teologia chama de “pecado original”: “Se destruíres teus instrumentos de opressão e deixares os hábitos autoritários e a linguagem maldosa, … a tua vida obscura será como o meio-dia.” (Is 58, 9) Esses instrumentos de opressão são aquelas forças instintivas que nos impelem para o egoísmo, o autoritarismo e a inveja, ou seja, uma tendência inata para agir de forma injusta com os irmãos. Aquele que consegue superar essas imperfeições decorrentes da nossa natureza desviada, esse andará na luz, a sua vida será clara como o meio-dia. Diz ainda Isaías em 58, 7: “Reparte o pão com o faminto, acolhe em casa os pobres e peregrinos, quando encontrares um nu, cobre-o, e não desprezes a tua carne [teu semelhante]. Então, brilhará tua luz como a aurora.” Lembremo-nos de que, na época do profeta, ainda não havia sido instituído o batismo da conversão, que somente surgiu com a pregação de João Batista. No entanto, Isaías já preconizava aquelas ações que seriam propostas pelo Batista para os que se preparavam para a chegada o Messias, aplainando os caminhos e capinando as veredas. E quando, tempos depois, Cristo instituiu o batismo sacramental, o batismo da salvação, os benefícios da graça batismal atuaram de modo pleno no tempo, incluindo presente, passado e futuro, de modo que os que viveram segundo a orientação do Profeta foram também alcançados pela graça da salvação. O sacrifício redentor de Cristo foi realizado num tempo histórico determinado, no entanto, os seus efeitos se estendem em plenitude para um tempo indeterminado (anterior e posterior), referendando todas as práticas de justiça que as pessoas efetivaram, como consequência de sua fé. Com sua morte e sua ressurreição, Cristo aspergiu seu sangue sobre todos, independentemente da época em que viverem ou viverão, alcançando a todos estes os benefícios decorrentes da consumação da antiga aliança de Javeh com o povo hebreu. A única condição para isso é a adesão que cada um deve fazer a esse “contrato” patriarcal, renovado e consolidado pela intervenção do Messias, cujo conteúdo é o compromisso batismal, e cuja assinatura é traçada pela água derramada em nossas cabeças.


Na segunda leitura, de Paulo aos Coríntios (1Cor 2, 1-5), o Apóstolo diz que foi àquela cidade para anunciar ao povo o “mistério de Deus”. Que mistério seria esse? O próprio Paulo responde: Jesus Cristo crucificado. E para esse anúncio, Paulo não usou discursos bonitos nem oratória erudita, mas apenas a linguagem comum, para que o conteúdo de sua pregação se destacasse, e não a sonoridade das palavras bonitas. Meus amigos, a palavra “mistério” significa aquilo que estava escondido e foi revelado. Paulo utiliza o termo para referir-se àquilo que antes era obscuro e incompreensível aos homens, mas que tornou-se claro e iluminado, pela força da luz de Cristo. Ele é a própria luz e é através dele que nós, seus discípulos, podemos iluminar o mundo. Pelos sacramentos, que Ele instituiu e nos deixou, sob a coordenação da comunidade eclesial, nós participamos da claridade que essa luz transmite. A partir do recebimento do batismo, abre-se para nós a porta de acesso aos demais sacramentos, isto é, aos diversos canais pelos quais Ele distribui a sua graça. Paulo fez isso na comunidade de Corinto e noutras cidades daquela região. Nos dias de hoje, a Igreja dá continuidade a essa tarefa de acolher os fiéis e conduzi-los ao ambiente onde essa graça continua a ser distribuída. Dentro da comunidade eclesial, a graça que recebemos deve ser potencializada para que, em nossa vida cotidiana fora do ambiente típico da sacralidade, as demais pessoas possam perceber a luminosidade do nosso ser através do nosso comportamento, do nosso modo de agir.


O evangelho de Mateus (Mt 5, 13-16) associa duas metáforas muito poderosas: a luz e o sal. Desde os tempos mais remotos, as pessoas compreenderam a importância do sal para a vida humana. Chegou ao ponto de que, em eras primitivas, o pagamento de trabalhos realizados pelos operários era feito não com dinheiro, mas com sal (donde vem o termo “salarium”). Os minerais trazidos pelo sal são essenciais para o nosso organismo, de modo que a vida humana se tornaria inviável sem o consumo de porções (moderadas) de sal. Do mesmo modo como a vida humana seria inviável sem a luz, assim também seria sem o sal. Atuando de modos diferentes, mas sempre em caráter indispensável, a luz e o sal são insumos que tornam possível a vida humana, seja individual, seja social. Daí porque Cristo utilizou muitas vezes essas figuras como recursos pedagógicos para a sua catequese.


Ora, diz Jesus, imaginem se o sal viesse a perder a sua funcionalidade básica, com o que iríamos salgar os alimentos? Nos dias de hoje, a indústria química já consegue produzir materiais alternativos que geram efeito similar ao sal para o preparo dos alimentos a pessoas que possuem certas doenças agravadas com a ingestão do sódio, componente principal do sal. Mas na época de Cristo, isso não existia e ele falava para o povo daquela época, do modo que fosse mais compreensível para eles. Um sal que não produzisse seus efeitos não serviria para mais nada. Quando muito, seria usado como pedrisco para pavimentar os caminhos. Com isso Jesus vem nos dizer que um cristão que não desenvolver em si a graça que recebeu com o batismo, é como se a graça recebida não produzisse os efeitos que deveria gerar, portanto, haverá um desperdício da graça, pois um tal cristão não seria capaz de “salgar” a sociedade com o seu exemplo e o seu testemunho. Meus amigos, essa é uma séria advertência para que cada um de nós avalie de que modo a graça que recebemos está ou não produzindo seus frutos na nossa vida, para que não estejamos nos arriscando a ser esbanjadores da graça divina. No caso, essa graça inócua em nós, além de não contribuir para que superemos as vicissitudes próprias da nossa natureza imperfeita, ainda nos tornará réus de uma acusação muito grave, qual seja, de sermos desperdiçadores desse valioso dom.


Numa consideração analógica com a luz, a graça divina deverá nos tornar iguais a grandes lamparinas em noite de apagão. Ninguém acende uma lucerna e a coloca debaixo de uma vasilha, pois assim ela não cumprirá a sua finalidade. A graça divina que recebemos não deve ficar restrita ao nosso ser, à nossa subjetividade, mas deve ser compartilhada com os irmãos. Colocar a luz escondida significa agir egoisticamente, usar a lamparina para clarear apenas o nosso próprio caminho. Não foi para isso que Jesus veio abrir para nós a porta da salvação. Ninguém se salva sozinho, a salvação se realiza na comunidade. Houve uma época em que a catequese pregava: “salva a tua alma”... hoje em dia esse discurso mudou completamente para “salva o teu irmão e assim tu também serás salvo”. Por isso é que a luz deve ser colocada num local elevado, a fim de clarear o caminho para muitos, a fim de chamar a atenção dos incautos, daqueles que se encontram envolvidos com as coisas mundanas, daqueles onde a graça está dormitando, a fim de incentivá-los a também se tornarem luminares eficazes e generosos. Manter a luz escondida é uma contradição com ela própria, cuja existência só se justifica se for um ponto de orientação para todos, assim como o farol orienta os que viajam pelo mar.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos