domingo, 26 de março de 2023

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 5º DOMINGO DA QUARESMA

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 5º DOMINGO DA QUARESMA – JESUS DIVINO E HUMANO – 26.03.2023


Caros Confrades,


Neste 5º domingo da quaresma, a liturgia traz para nossa reflexão um outro trecho do evangelho de João que era utilizado na catequese antiga, durante a preparação dos catecúmenos, completando uma trilogia de ensinamentos. No domingo anterior, o tema foi a luz, com a cura do cego; no domingo mais anterior, o tema foi a água, no diálogo com a samaritana; neste domingo, o tema é a vida, com a ressurreição de Lázaro. Jesus é a luz que dissipa as trevas, a água que sacia para sempre a sede, a vida que nunca se acaba. Nessa narrativa da ressurreição de Lázaro, o evangelista faz questão de salientar o lado humano e emocional de Jesus. Por duas vezes, o texto fala que Jesus emocionou-se profundamente diante da comoção das irmãs do falecido e uma vez diz mesmo que Jesus chorou. O apóstolo João mostra, nesse episódio, os dois lados da personalidade de Cristo: a humanidade da emoção e a divindade do poder de ressuscitar.


Na primeira leitura, o profeta Ezequiel (37, 12-14) destaca o poder divino sobre a vida e a morte, ao anunciar: “vou abrir as vossas sepulturas e conduzir-vos para a terra de Israel; e quando eu abrir as vossas sepulturas e vos fizer sair delas, sabereis que eu sou o Senhor”. Mais de uma vez, Jesus demonstrou esse poder sobre a vida, fazendo ressuscitar a filha de Jairo (Mt 9, 18), o filho da viúva de Naim (Lc 7, 11), e o evento mais comentado: a ressurreição de Lázaro, pelo grau de amizade que Jesus mantinha com a família dele. O profeta Ezequiel foi discípulo de Jeremias e sucedeu a este na atividade profética, tendo sido levado cativo para a Babilônia. A sua profecia é cheia de imagens enigmáticas, que trazem divergências nas interpretações dos teólogos, os quais comparam suas visões àquelas narradas por João, no Apocalipse. O livro de Ezequiel faz parte da chamada “literatura apocalíptica”, que foi dominante num certo período da história de Israel. Esse trecho lido na liturgia de hoje refere-se aos israelitas mortos durante o cativeiro, que mesmo assim serão conduzidos para a terra de Israel, porque o Senhor é poderoso, Ele diz e faz.


Na segunda leitura, da carta aos cristãos de Roma (Rm 8, 8-11), Paulo desenvolve também a temática da ressurreição, fazendo o paralelo entre a vida segundo a carne e a vida segundo o espírito. A primeira leva à morte, a segunda conduz à vida plena. “Vós não viveis segundo a carne, mas segundo o Espírito, se realmente o Espírito de Deus mora em vós. Se alguém não tem o Espírito de Cristo, não pertence a Cristo.” (8, 9) Quem vive segundo o espírito, tem o Espírito Santo dentro dele e isso é a garantia de que aquele que ressuscitou Jesus dentre os mortos também vivificará nossos corpos mortais. Neste último domingo da quaresma, as leituras litúrgicas estão chamando a atenção dos cristãos para o mistério da Redenção operada por Cristo, cuja memória celebramos na festa da Páscoa. Embora a tradição religiosa que nos foi legada tenha uma tendência mais forte a enxergar sobretudo o aspecto do sofrimento e da paixão, a liturgia já está nos exortando que o foco central da preparação da Páscoa deve ser a fé na ressurreição de Cristo, porque esta é a verdade básica do cristianismo. Paulo fez essa síntese catequética extraordinária, quando declarou: se Cristo não ressuscitou, vã é a nossa pregação e vã é a vossa fé (1Cor 15, 14). Devemos, portanto, enxergar para além do sentimentalismo, que a devoção tradicional associou aos eventos da semana santa, concentrados nos sofrimentos de Cristo, para alcançarmos o verdadeiro sentido da Páscoa cristã.


No evangelho (Jo 11, 3-45), lê-se um dos trechos mais longos das leituras dominicais, no qual o apóstolo narra com riqueza de detalhes os fatos circunstanciais relativos ao milagre da ressurreição de Lázaro. O propósito catequético joanino está bem evidente no destaque que ele dá a esses detalhes, para demonstrar a figura divina de Cristo, que não se dissocia do seu lado humano. João fala da amizade de Jesus com Lázaro e suas irmãs. Mostra o receio dos discípulos pelo fato de Jesus querer voltar para a Judeia, onde morava Lázaro, pois de lá eles haviam escapado fazia pouco tempo, com medo da ira dos judeus, que queriam apedrejar Jesus. E no meio de tudo isso, mostra um fenômeno raro nos evangelhos, que evidencia a humanidade de Jesus, quando diz que ele se emocionou profundamente até o ponto de chorar. Nenhum trecho do evangelho afirma que Jesus sorriu, mas nessa leitura de hoje João afirma que ele chorou. E ele deve ter visto isso.


O relato da ressurreição de Lázaro é um texto clássico na literatura cristã e apresenta uma verdade incontestável. Nenhum daqueles judeus que estavam presentes na casa das irmãs Marta e Maria, quando Jesus ali chegou depois de Lázaro ter sido sepultado, pôs em dúvida este fato. No caso do cego de nascença, conforme vimos no domingo passado, houve questionamentos se o homem era mesmo cego, até os pais dele foram inquiridos para atestarem isso. Mas no caso de Lázaro, a prova foi tão contundente que João diz apenas assim, no fim da narrativa: muitos dos judeus que viram isso creram nele. Lázaro já estava sepultado há quatro dias, não havia como alegar algum tipo de armação ou fingimento. As irmãs até alertaram Jesus: ele já cheira mal. Não havia nada que alguém pudesse alegar para tentar desconstituir aquele espetacular milagre que Jesus produziu. É de se destacar ainda a oração que Jesus fez ao Pai antes de operar o milagre: “por causa do povo que me rodeia, para que creia que tu me enviaste ” (Jo 11, 42)


Quero comentar um detalhe dentre os muitos contidos nessa narrativa, que é este: e Jesus chorou. João relata que os judeus viram Jesus chorando e até comentaram: veja como Ele o amava... Isto é, ninguém duvidou de que Jesus estivesse realmente chorando, ninguém alegou que fosse fingimento. Por que estou eu insistindo nesse detalhe? Porque o principal mistério da teologia cristológica é exatamente esse das duas naturezas de Cristo: a natureza divina e a humana. Esse foi um dos temas mais difíceis enfrentados pelos primeiros teólogos do cristianismo, por causa da dificuldade de sua compreensão. Foi nesse contexto que surgiu a principal heresia dos tempos iniciais do cristianismo, o arianismo, criada por um bispo chamado Ario. A doutrina dele era assim: Jesus é filho de Deus, mas não é Deus, porque Deus é um só. Ele seria filho de Deus, criado desde o início dos tempos, conforme consta na Bíblia, mas não seria igual a Deus, ou seja, ele não teria a natureza divina. Ele estaria colocado numa posição acima dos homens e abaixo de Deus, uma espécie de semi-deus. Em resumo, Ario negava a natureza divina de Cristo. Ele seria um ser humano especial, mas não igual a Deus, porque só existe um Deus. Com isso, Ario negava também a Trindade Santa, o Deus Uno e Trino, porque essa verdade da fé não pode ser explicada pela razão humana. Desde o início, a teoria ariana foi rejeitada pelos teólogos orientais, porém os cristãos gregos admitiam o arianismo com facilidade, por causa da semelhança dessa doutrina com as divindades gregas, que eles cultuavam antes do cristianismo.


Foi o sustentáculo dos teólogos orientais, sobretudo de Santo Atanásio, bispo de Alexandria, que fez prevalecer a doutrina de que Cristo é “homo-ousios”, ou seja, tem a mesma essência do Pai. A consolidação dessa doutrina atanasiana se deu no Concílio de Niceia, em 325, quando foi redigido o símbolo dos Apóstolos, o Credo que se reza na missa: Cristo foi gerado (não criado), consubstancial ao Pai, e o Espírito procede do Pai e do Filho. Dizem os historiadores que, ao final daquele Concílio, onde foi vencedora a tese de Santo Atanásio, alguns bispos presentes que tiveram voto vencido (os bispos arianos), mesmo não concordando, terminaram por assinar o documento oficial do Concilio, porém houve bispos que se recusaram a assinar e esses foram destituídos dos seus cargos e expulsos da Igreja. Dizem ainda os historiadores que isso não determinou o fim do arianismo, pois esses bispos expulsos fugiram para outras localidades mais distantes, onde continuaram pregando a sua doutrina como verdadeira e assim, durante séculos, várias comunidades continuaram professando a fé ariana, especialmente no território oriental.


Meus amigos, quando lemos sobre essas difíceis polêmicas suportadas pelo cristianismo primitivo, compreendemos melhor o motivo de termos, nos dias de hoje, tantas divergências doutrinárias dentro do universo cristão católico. Ou seja, essas dissensões sempre existiram e já foram causa de inomináveis ações separatistas, as quais tenta-se evitar nos dias de hoje. Os casos mais recentes são o da comunidade São Pio X, do Monsenhor Lefébvre, logo após o Concílio Vaticano II, e cujo realinhamento com a Santa Sé vem sendo negociado já faz alguns anos, embora ainda não tenha se concretizado; e recentemente, um grupo de bispos (três alemães e um norte americano) que desafiaram o Papa Francisco, alegando erros doutrinários em seus escritos oficiais. E o Papa Francisco carrega consigo essa enorme responsabilidade de unificar as comunidades divididas, para que haja um só rebanho. Que a Páscoa seja uma festa inspiradora para a união de todos aqueles que creem em Cristo e estão comprometidos com a sua mensagem de salvação.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

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