sábado, 31 de agosto de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 22 DOMINGO COMUM - 31.08.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 22º DOMINGO COMUM – RELIGIÃO DE APARÊNCIAS – 31.08.2024


Caros Confrades,


O tema da liturgia deste 22º domingo comum se expressa bem no refrão do cântico da comunhão, sugerido para a missa de hoje: o mal que sai de nós e vem do coração impuros, sim, nos faz. Essa mensagem nos convida a refletir sobre a qualidade da nossa prática religiosa. Temos atitudes coerentes com o que afirmamos de boca ou praticamos uma religião puramente exterior, de fachada, como faziam os fariseus no tempo de Jesus? A nossa fé está integrada na nossa vida ou praticamos a vida dupla: na igreja somos orantes, fora dela somos maledicentes? O espírito farisaico, criticado por Jesus naquele tempo, ronda permanentemente os templos e as vidas dos crentes, hoje como foi também no passado.


A primeira leitura litúrgica é retirada do livro do Deuteronômio (4, 1). Antes, só uma breve informação histórica sobre esse livro do Deuteronômio. Literalmente, esse título significa em grego “segunda lei”, mas não é outra lei diferente daquela de Moisés, apenas uma nova “versão”, a lei mosaica com outras palavras. Por isso, o nome hebraico deste livro é Devarim e significa “palavras”. O papiro com esse manuscrito foi encontrado casualmente por pedreiros que faziam uma reforma no altar do templo de Jerusalém. Era um rolo muito antigo, que estava enterrado sob a pedra do altar. Ao lê-lo, os escribas verificaram que se tratava de uma espécie de “repetição” ou adaptação dos discursos de Moisés, contendo muitas orientações práticas sobre a vida do povo, tendo sido escrito em data posterior, provavelmente, quando os israelitas já estavam bem próximo de adentrarem a terra prometida, ou seja, no final da vida de Moisés. Assim se entende porque o livro carrega esses dois nomes: deuteronômio (segunda lei, repetição da lei) e devarim (palavras, costumes da sociedade hebraica). Sempre devemos ter em mente que, naquela época em que não havia separação entre estado e religião e que as autoridades religiosas e estatais eram as mesmas, era perfeitamente comum que as normas sociais e estatais se confundissem com preceitos religiosos. Isto era assim não apenas entre os hebreus, mas entre todas as sociedades primitivas. Quem tiver interesse em ler mais aprofundadamente sobre esse assunto, sugiro a leitura do livro “A Cidade Antiga”, da autoria de Fustel de Coulanges.


Pois bem, passando ao texto do Deuteronômio, Moisés fala ao povo sobre as leis e decretos dados por Javeh aos seus ancestrais, lembrando a eles a exigência da fidelidade a essas normas, como uma maneira de demonstrar sabedoria diante dos povos vizinhos, porque nenhum dos deuses dos outros povos tinha este mesmo cuidado com os seus devotos do que o Deus de Abraão. Diz o vers. 6: “Vós os guardareis, pois, e os poreis em prática, porque neles está vossa sabedoria e inteligência perante os povos, para que, ouvindo todas estas leis, digam: 'Na verdade, é sábia e inteligente esta grande nação! ” Os fariseus gostavam muito do Deuteronômio, porque havia nele uma grande diversidade de preceitos, dos quais eles faziam uma espécie de tabela e com ela ensinavam o povo. Além disso, servia também para fiscalizar se os demais hebreus a estavam observando.


Segundo os estudiosos, os fariseus fizeram uma aplicação da Lei Mosaica através de 613 preceitos, destes, 365 eram proibitivos, fazendo uma exposição analítica das normas antigas. Eram esses preceitos que determinavam assuntos básicos de saúde pública, como, por exemplo, lavar as mãos antes das refeições, tomar banho quando chegavam da praça pública, jejuar nos dias estabelecidos, dar esmolas, etc. Para facilitar a memorização, havia uma espécie de tabela com especificações bem detalhadas. Pois bem, A questão que Jesus lançou contra eles, desafiando-os, não era pelo conteúdo das normas, mas porque dentro do excessivo formalismo deles, bastava cumprir aquilo rigorosamente para tornar-se um bom crente, quem não os cumpria estava desobedecendo a lei. Desse modo, por exemplo, se a norma mandava que, no dia de jejum, o máximo que alguém podia ingerir por dia era, por exemplo, 500g de alimento, então era preciso pesar na balança as refeições para não passar dessa cota, sob pena de descumprir o preceito. Ou seja, a sua preocupação era exageradamente formal em relação aos detalhes exteriores, no entanto, não se preocupavam com o interior, com o coração, isto é, intimamente eles podiam ser desonestos, maledicentes, exploradores, caluniadores, injustos, porque essas atitudes interiores não contavam, mas somente o que eles faziam externamente. Na verdade, a concepção religiosa deles era uma religião de fachada, de aparências.


Esta leitura do Deuteronômio tem, pois, conexão direta com o evangelho de Marcos, que narra mais uma das altercações entre Jesus e os fariseus, estes sempre tentando apanhá-lo em algum deslize. Viram que os discípulos de Jesus não lavaram as mãos antes de iniciarem a refeição e então eles foram interpelar Jesus, perguntando 'por que os discípulos dele não cumpriam a lei de Moisés' ? Jesus lançou-lhes em rosto o texto de Isaías: “Bem que Isaías falou a respeito de vocês: este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos'. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens' ” (Mc 7, 6). Os fariseus argumentavam que aquela era uma tradição dos antigos, fazendo referência não exatamente à lei de Moisés, mas aos costumes dos ancestrais, por isso Jesus os censurou porque deixaram de lado a verdadeira Lei divina e ampararam-se nas tradições humanas. Daí que Jesus disse: vocês não entenderam nada, não é nada disso, porque se importam muito com o exterior, mas no seu íntimo os seus pensamentos não são coerentes com as suas atitudes. Trazendo para os dias atuais, meus amigos, essa atitude hipócrita dos fariseus ainda pode ser encontrada nos cristãos que se benzem quando passam diante do templo, mas viram o rosto para não oferecerem ajuda a um irmão necessitado, que está sentado na porta da igreja. De que adianta apresentar exteriormente um comportamento correto, quando o interior é vazio? De que adianta andar com o terço na mão, o escapulário pendurado no pescoço, a Bíblia embaixo do braço e, ao mesmo tempo, ter a mente ocupada com frivolidades, o coração cheio de más intenções? Daí o veredito de Cristo, invocando a lamentação de Isaías: esse povo me honra só com os lábios, mas o coração deles tem outro dono. E completou: o que torna impura a pessoa não é o que entra nela vindo de fora, mas o que sai dela vindo do seu interior. O alimento ingerido sem lavar as mãos pode até, eventualmente, causar algum dano à saúde, mas pior do que isso é a maldade que sai distilada em palavras e atitudes, que causam danos mais desastrosos à felicidade das outras pessoas. E isso é o que realmente importa.


Portanto, Cristo está nos ensinando que a verdadeira religião é a que se pratica ao nível do coração, do entendimento, da intencionalidade e que se expressa em atos de caridade. Ter um comportamento contrito e piedoso quando está dentro do templo não é suficiente, se ao sair de lá essa contrição e essa piedade não se revelarem no relacionamento com os irmãos. Não se quer dizer que a oração, a piedade não são boas coisas, de modo nenhum, são ótimas atitudes. O erro está no descompasso, na incoerência entre o interior e o exterior. O nosso agir deve ser uma expressão concreta do nosso pensar, bem como a recíproca atitude. Por diversas vezes, Jesus brandiu contra os fariseus por causa disso. Por exemplo: quando jejuardes, não precisa por cinzas na cabeça e andar com roupa esfarrapada para que os outros vejam, porque o Pai do céu sabe do que se passa no vosso coração; quando derdes esmolas, fazei-o de forma reservada e não alardeando publicamente (nos dias de hoje, tirando “selfie”), de modo que não saiba a tua mão direita o que faz a tua esquerda. A verdadeira religião, a verdadeira fé é a que começa no pensamento, no coração e se traduz em atitudes relacionadas.


E agora uma breve mensagem sobre a segunda leitura, retirada da carta de São Tiago (1, 17), que reforça essa mensagem com seu conselho aos judeus da diáspora: “sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Com efeito, a religião pura e sem mancha diante de Deus Pai, é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações. ” Quem não pratica a mesma religião que ensina aos outros está se enganando a si próprio, como se diz na linguagem de hoje, é uma 'fake news', tem só a aparência boa, é armadilha com o intuito de ludibriar os incautos. A verdadeira religião é a que se revela nas obras de caridade, como fruto do amor ao próximo. A referência aos órfãos e viúvas reflete uma realidade daquele tempo e hoje deve ser entendida como “os irmãos necessitados”, começando com aqueles que estão mais próximos de nós. De forma direta ou indireta, através de entidades e associações que prestam esse tipo de serviço, a sociedade de hoje, talvez mais do que no tempo do apóstolo Tiago, necessita desse nosso exemplo de solidariedade.


Que as nossas atitudes religiosas exteriores sejam de fato a representação do nosso interior, do nosso coração, da nossa fé.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 24 de agosto de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 21 DOMINGO COMUM - 25.08.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 21º DOMINGO COMUM – DUREZA DO DISCURSO – 25.08.2024


Caros Confrades,


As leituras litúrgicas deste 21º domingo comum nos convidam a refletir sobre a nossa vivência na fidelidade à palavra de Deus. No Antigo Testamento, Josué, ainda no deserto, reuniu o povo, que teimava em adorar as divindades pagãs, e lhes dá um ultimato: escolham a qual Deus ireis servir, pois somente os adoradores de Javeh terão acesso à terra da promessa. E Jesus, tempos depois, coloca também para os discípulos o mesmo desafio, quando eles reclamam que a palavra dele é muito dura: o que foi que houve? isso vos escandaliza? Pois procurem outro rumo, só quero comigo, quem tiver coragem de ser assim. E foi então que Pedro respondeu pelos demais: calma, Mestre, só tu tens palavra da vida.


Na primeira leitura, do livro de Josué (cap. 24), ele que assumiu como sucessor de Moisés na condução do povo hebreu à terra prometida, verificando a contínua presença da idolatria entre os israelitas, convoca todos para uma grande assembleia e lhes põe a questão: a qual Deus ou deuses vocês irão adorar? “Se vos parece mal servir ao Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir: se aos deuses a quem vossos pais serviram na Mesopotâmia, ou aos deuses dos amorreus, em cuja terra habitais.” Os amorreus eram o povo que habitava a terra de Canaã, quando o povo de Israel ali chegou, depois da marcha de quarenta anos pelo deserto. Essas tribos eram descendentes de Caim e, portanto, tinham parentesco de sangue, embora longínquo, com o povo de Israel, mas já não tinham fidelidade a Javeh e adoravam seus próprios ídolos. Por isso, Josué fez a pergunta e completou: “Quanto a mim e à minha família, nós serviremos ao Senhor”. Em resposta, o povo jurou mais uma vez fidelidade a Javeh: “nós também serviremos ao Senhor, porque ele é o nosso Deus.” A convocação de Josué tinha então o caráter de opção definitiva, isto é, estavam chegando ao destino final de sua peregrinação, ali iriam se estabelecer e assim quem permanecesse fiel à promessa receberia a recompensa, quem desistisse, arcaria com as consequências da sua opção pelos ídolos. O povo então renovou a promessa a Javeh.


Uma situação análoga é vivenciada por Cristo diante dos seus discípulos, logo após o milagre da multiplicação dos pães, nas proximidades de Cafarnaum. Para melhor compreensão do discurso de Cristo na leitura de hoje, precisamos ler as frases anteriores, no evangelho de João. No dia anterior, Jesus havia feito aquele extraordinário milagre da multiplicação dos pães. No dia seguinte, uma multidão se apresentou para ouvir Jesus. Notando aquele invulgar incremento dos seus ouvintes, Jesus ficou curioso e perguntou: “viestes à minha procura para me ouvir ou para comer novamente aquele pãozinho? Porque eu sou o verdadeiro pão do céu.” Então, eles pediram a Jesus um sinal, para que acreditassem n'Ele, assim como Moisés havia dado aos seus ancestrais o maná do deserto. Foi quando Jesus explicou: não foi Moisés quem deu a eles aquele pão (o maná), mas o meu Pai. E agora, ele me mandou, eu sou o pão vivo que ele mandou para vós. Os vossos pais comeram o maná no deserto e morreram, mas quem comer deste Pão não morrerá. O pão que Eu vos darei é a minha carne para a vida do mundo. O povo não entendeu, pois muitos achavam que Jesus estava ali para liderar uma revolta, para expulsar os romanos da Palestina, e ficaram balançando a cabeça, murmurando que Jesus devia estar louco. Como é que alguém pode dar a sua carne para outros comerem? Sabendo o que eles pensavam, Jesus completou: Em verdade vos digo, quem não comer a minha carne e beber o meu sangue não terá a vida. Pronto, isso agora foi demais, ficou louco mesmo... Muitos dos que ouviram isso ficaram decepcionados, balançaram a cabeça, deram meia volta e começaram a se retirar.


Nesta situação embaraçosa, os discípulos ficaram preocupados se Jesus estava mesmo certo do que falava e disseram: este teu discurso é muito “duro”, Mestre, quem será capaz de ouvi-lo? A palavra grega que foi traduzida por “duro” é “sklirós”, que tem o sentido de algo áspero, rígido, inflexível. É como se dissessem: a tua palavra causa um choque na gente, como é que alguém pode dar seu corpo para os outros comerem? Isso é impossível. Ao que Jesus respondeu: ah, isso vos escandaliza? Pois outras coisas mais duras haverão de acontecer. E vendo que alguns dos ouvintes começaram a dispersar-se, Jesus intimidou os seus doze escolhidos: vocês também querem ir embora? Eu sei que alguns dentre vocês não acreditam nisso. Foi quando Pedro, inspirado, acalmou a situação: calma, Senhor, não é isso, a quem iremos? Só tu tens palavra da vida eterna. Nesse diálogo, João evangelista deixa transparecer duas situações ocultas. Primeiro, Jesus sabia que muitos o procuravam com a esperança de que ele fosse um Messias político, guerreiro, e Ele quis deixar claro que sua missão era outra, o seu reino era de outra natureza. Segundo, ele sabia que mesmo entre os doze havia alguns inseguros e até reticentes na fé.


Observamos uma clara analogia nesse diálogo de Jesus e seus discípulos com a situação vivenciada por Josué e o povo hebreu: resolvam agora, pegar ou largar. Jesus colocou para os discípulos a mesma opção que Josué colocou para o povo de Israel. E tal como no caso dos israelitas, que optaram por Javeh, também os doze renovaram sua opção pela missão de Cristo, cumpridor da vontade do Pai. Inclusive Judas, que resolveu ficar até a última hora, para ver o rumo que as coisas tomariam posteriormente. João diz textualmente no versículo 71 deste capítulo 6, que Jesus fez essa pergunta assim bem direta referindo-se a Judas. Mas não apenas ele. Além de Judas, Jesus sabia que havia outros discípulos fracos na fé, Ele sabia os que criam de fato e os que tinham dúvidas. Foi por isso que, após a ressurreição, Jesus passou ainda 'quarenta dias' na sua catequese final com os discípulos, preparando a vinda do Paráclito. Mesmo depois de ter concluído sua missão encarnada e ter-se imolado na cruz, Jesus continuou a preparar os discípulos para a sua missão futura, pois Ele sabia o material humano de que dispunha e sabia que, sem essa catequese residual, havia grande risco de dispersão, tal como acontecera com aqueles que, no relato de João, debandaram diante do seu duro discurso.


Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Efésios (5, 21-32), o Apóstolo aconselha os casais cristãos a se comportarem com dignidade, respeitando-se mutuamente, amando-se reciprocamente, assim como Cristo ama a sua Igreja. Daqui Paulo evolui para a sua doutrina do corpo místico de Cristo. A linguagem paulina não é mais aplicável aos tempos atuais, na relação entre maridos e esposas, porque reflete a situação social da época em que ele viveu, por isso não pode ser interpretada em sentido literal. Paulo diz que as mulheres devem “ser submissas” aos maridos, porque o marido é a cabeça da mulher. Assim era a compreensão da união conjugal na cultura grego-romana, que se transferiu para o direito civil e perdurou até as últimas décadas. Porém, pelo menos dos anos oitenta para cá, no Brasil, essa mentalidade deixou de ser aceita tanto no campo social quanto no campo jurídico, terminou essa ideia da submissão. Esse ponto de vista ainda se observa residualmente na cultura machista que marca a nossa tradição nordestina e é defendida pelos católicos tradicionalistas. Por essa razão é que muitas pessoas não cristãs dizem que a Bíblia está cheia de erros e, por não terem interesse de compreender o verdadeiro significado do livro sagrado, preferem desdenhar dele. Mas é também por isso que nós, crentes em Cristo, não podemos ler e aplicar os textos bíblicos de modo fundamentalista, literal, mas precisamos dar a interpretação adequada à mensagem ali contida. No caso, a mensagem é a do amor conjugal, como se encontra sintetizada na conclusão de Paulo: “Por isso o homem deixará seu pai e sua mãe e se unirá à sua mulher, e os dois serão uma só carne. Este mistério é grande, e eu o interpreto em relação a Cristo e à Igreja. ” (Ef 5, 31-32) Na época em que Paulo viveu, o amor entre os cônjuges era entendido como a submissão da esposa ao marido, porque as mulheres daquele tempo não estudavam, viviam apenas para o lar, não tinham conhecimentos outros do mundo social e profissional, eram como crianças grandes. Por isso, elas precisavam ser tuteladas pelos maridos. Assim era na Grécia e em Roma, como de resto, em toda a Europa, as mulheres nunca alcançavam a plena maioridade, elas deviam estar sempre sob a tutela de um homem, mesmo que elas fossem mais idosas do que este (por exemplo, um filho, um sobrinho, até um neto). As mulheres não tinham condições de governar-se, de administrar a própria vida de modo independente. Então, na mensagem de Paulo que deve ser trazida para os tempos atuais, em que as mulheres se encontram em posição de igualdade com os homens, deve prevalecer a ideia do amor mútuo, do respeito recíproco, da solicitude, da tolerância, da ajuda, da caridade plena, que se encontra simbolizada no conceito do amor-ágape, o amor-comunhão. Ao ler o texto paulino, devemos mentalmente fazer a transposição adequada dos conceitos, para que possamos compreender o recado que ele quer nos transmitir.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 17 de agosto de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - ASSUNÇÃO DE MARIA - 18.08.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 20º DOMINGO COMUM – FESTA DA ASSUNÇÃO DE MARIA – 18.08.2024


Caros Confrades,


Neste 20º domingo comum, a memória litúrgica celebra, no Brasil, a festa da Assunção de Maria, uma verdade de fé proclamada pelo Papa Pio XII, em 1950, a última proclamação dogmática feita por um Papa. Desde então, observa-se uma grande cautela dos Pontífices em relação a tais proclamações de caráter universal e perpétuo, muito ao gosto da cultura medieval, quando prevalecia aquela visão triunfalista da Igreja. Não fazia muito tempo que fora aprovado o dogma da “infalibilidade papal”, fato que ocasionou grande desgaste para a Igreja Católica, sobretudo na Europa. O Papa Pio XII, quando teve de fazer a declaração do dogma da Assunção de Maria, segundo ouvi de um sacerdote que estudou em Roma, ficou muito relutante se devia ou não fazê-la, porque o fato não tem base na Bíblia, mas apenas na tradição.


É, na verdade, uma tradição muito forte. Não apenas na Igreja Católica Romana, mas também no catolicismo ortodoxo das Igrejas Orientais, onde não foi definida como dogma, a assunção de Maria é celebrada desde os primeiros séculos, mesmo antes de Roma. Foi naquelas Igrejas que se iniciou, por volta dos séculos III e IV, a celebração da “dormição” de Maria, baseada em escritos antigos que circulavam naquelas comunidades, nos quais se afirmava que Maria não havia morrido, mas apenas adormecera e então foi levada ao céu pelos anjos. Oficialmente, a Igreja Católica interpreta a narração apocalíptica do capítulo 12, que descreve o aparecimento de um grande sinal no céu, com uma mulher vestida do sol, pisando sobre a lua e coroada com doze estrelas como sendo a figura de Maria. Mas no Oriente, há escritos muito antigos, como o “Liber Requei Mariae” (livro do descanso de Maria), do século III, que afirma que Maria não morreu, apenas descansou. E uma outro escrito, este do século V, intitulado “De transitu Mariae” (sobre o trânsito de Maria), que reforça a mesma afirmação. Estes dois são escritos anônimos, ou pelo menos cuja autoria não tem comprovação. Mas no século VI, o teólogo São João Damasceno defendeu essa doutrina, estendendo-a para outros países da Europa. Foi com base nesses textos que o Papa Pio XII decidiu fazer a proclamação. A teologia ensina que a morte é consequência do pecado. Se Maria foi concebida sem pecado, então a morte não sobreveio a ela.


A tradição do catolicismo oriental afirma que Maria teve morte natural e, ao terceiro dia, como aconteceu a Jesus Cristo, ela teve seu corpo elevado ao céu pelos anjos, nisto diferenciando-se de Jesus. Porém, a declaração papal não fez afirmação taxativa sobre a morte ou não morte de Maria, isto é, proclamou a assunção de Maria em corpo e alma ao céu, sem se pronunciar sobre o detalhe se ela havia morrido ou apenas dormido ou descansado, conforme consta nos escritos anônimos dos primeiros séculos. Essa omissão proposital é uma atitude de prudência, para que os eventuais adversários da proclamação não viessem a contraditá-la por haver-se baseado em escritos apócritos. Por isso, além da referência ao capítulo 12 do Apocalipse, a doutrina também referencia a carta de Paulo aos Coríntios (1Cor 15, 22-23): “Como em Adão todos morrem, assim também em Cristo todos reviverão. Porém, cada qual segundo uma ordem determinada: Em primeiro lugar, Cristo, como primícias; depois, os que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda. ” A Igreja entende que, logo depois da entrada gloriosa no céu de Cristo ressuscitado, foi a vez de Maria, pela sua condição de imaculada mãe de Deus. Na verdade, a definição dogmática da assunção de Maria é uma consequência lógica de outra definição dogmática conciliar, publicada no Concílio de Éfeso, em 431, que proclamou Maria como Mãe de Deus, desfazendo uma antiga heresia, segundo a qual Maria era mãe apenas de Cristo homem, mas não de Cristo Deus, porque Deus não pode ter mãe.


Sobre as leituras litúrgicas da festa de hoje, já nos referimos acima à primeira, retirada do Apocalipse (12, 1), que fala do grande sinal (signum magnum) visto por João no céu. Era uma mulher grávida e, ao seu lado, um enorme dragão esperando que ela despachasse a criança, a fim de devorá-la. Essa imagem é emblemática nos arquétipos teológicos de todos os tempos, como uma referência clara e explícita aos embustes demoníacos contra a Igreja. Mesmo sem termos em mente qualquer anjo do mal, como criatura espiritual, podemos enxergar esses “agentes demoníacos” no interior de alguns setores burocráticos da própria Igreja. Quem não se recorda dos asquerosos “corvos do Vaticano”, que tanto atormentaram o Papa Bento XVI, forçando a sua renúncia. Foram eles mesmos que dominaram o Papa João Paulo II, nos últimos anos de sua vida, período em que ele esteve muito debilitado e senil em consequência da doença de Alzheimer, produzindo documentos em nome do Papa e com a sua autoridade, com fortes evidências de que o Papa não sabia mesmo do que estava acontecendo. Dizem que, quando Napoleão Bonaparte assumiu o trono da França, logo depois da Revolução Francesa, teria colocado como um dos objetivos do seu governo a destruição da Igreja Católica. Sabendo disso, o arcebispo de Paris esteve conversando com o Imperador francês e teria revidado assim: desista do seu projeto de destruição da Igreja, porque os próprios padres já tentaram e não conseguiram. E olhando para os tempos atuais, observando o enorme carisma do Papa Francisco, admirado e exaltado até pelos ateus e fiéis de outras religiões, podemos concluir que as “portas do inferno” realmente não prevalecerão contra ela.


A segunda leitura litúrgica é a carta de Paulo aos Coríntios, à qual já me referi acima, cuja lição sobre a derrota da morte pela ressurreição de Cristo é o fundamento teológico mais forte para a afirmação da assunção de Maria, sobretudo levando-se em consideração que, sobre Maria, a serpente do pecado foi imobilizada, conforme se vê nas imagens dos artistas que retratam a figura da Imaculada Conceição. Aliás, esse título de “imaculada”, de acordo com a revelação particular a Bernardete Soubirous, aceita e admitida pela Igreja, foi Maria mesma quem afirmou: “je suis l'immaculée conception”, assim está estampado na gruta de Lourdes, na França. Não é afirmação bíblica, mas a tradição é fortíssima e antiquíssima, devendo ser prestigiada a sua credibilidade.


A leitura do evangelho relata a visita de Maria a sua prima Isabel, que engravidou já com a idade avançada, e cuja notícia lhe foi dada pelo anjo, quando trouxe a ela, Maria, a notícia de que tinha sido escolhida para ser a mãe do Redentor. Nesse contexto, Isabel pronunciou a parte inicial da oração da Ave Maria, prece antiga e tradicional do catolicismo. E nessa mesma ocasião, Maria pronunciou o seu belo cântico de louvor ao Altíssimo, o conhecido Magnificat, que não é tão divulgado no meio popular como a Ave Maria, mas é teologicamente mais importante. Maria estava no início da gravidez, enquanto Isabel estava na etapa final, então Maria ficou com ela durante três meses, ajudando nos preparativos e na chegada do bebê João, como é praxe ainda hoje as mulheres se ajudarem mutuamente nessas ocasiões. Esses relatos nós viemos a saber por intermédio de Lucas, o grande repórter da vida particular de Maria.


Uma curiosidade, porém, que Lucas não revela é onde Maria terminou seus dias. As crenças tradicionais são divergentes acerca do fato. Segundo algumas tradições, ela teria permanecido em Jerusalém, até o seu “passamento” - digamos assim, para não afirmarmos nem que ela morreu nem que descansou. Segundo outras tradições, ela teria terminado seus dias em Éfeso, onde existe uma casa, que é visitada pelos peregrinos e venerada como sendo a “casa de Maria” e de onde ela teria sido trasladada para o céu. Sabemos que João, o evangelista, era bispo de Éfeso e foi a ele que Jesus confiou os cuidados com Maria, ainda no Calvário. Talvez por isso a tradição se incline a aceitar que Maria teria terminado a vida em Éfeso. Mas pode ser também que João tenha se mudado para Éfeso somente depois da “passagem” de Maria, pois também não se sabe em que ano isso aconteceu. João teria se transferido para Éfeso, conforme a tradição, por volta do ano 50. Supondo que Maria teria engravidado com cerca de 15 anos, como era o padrão da sua época, no ano 55 ela teria cerca de 70 anos de idade. Por isso, tanto uma tradição quanto outra (Jerusalém ou Éfeso) são compatíveis com os fatos e assim não tem como solucionar a controvérsia.


Meus amigos, penso que é crença incontroversa o fato de que Maria ocupa um lugar central e incomparável em toda a economia da salvação (para usar um termo clássico da teologia). Não é por acaso que ela é reverenciada com tantos títulos. Que ela sempre nos vigie a todos com a sua ternura maternal.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 10 de agosto de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 19º DOMINGO COMUM - 11.08.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 19º DOMINGO COMUM – O MILAGRE DO PÃO – 11.08.2024


Caros Confrades,


Pelo terceiro domingo seguido, a liturgia coloca em perspectiva o tema do pão, seja como alimento do corpo, seja como alimento do espírito: o pão de cada dia, o pão vivo, o pão que dá vida, o pão da palavra, o pão da eucaristia, aquele pão que é penhor da vida eterna. Desta vez, Jesus vai responder aos comentários maldosos dos judeus, que se admiraram ao ouvirem-no falar que ele é o “pão descido do céu”. Como assim? Eles conheciam o pai, a mãe, os familiares de Jesus e sabiam a sua origem, como podia ter ele vindo do céu? Difícil de entender, sob a ótica linear e fundamentalista traçada pelos judeus daquele tempo e, com todo respeito, também os judeus de hoje, para os quais Jesus não passa de judeu famoso, nada mais do que isso. Só quem crer e se alimentar desse pão viverá eternamente.


Na primeira leitura litúrgica, retirada do primeiro Livro dos Reis (1Rs 19, 4), temos o emblemático episódio em que o profeta Elias foi alimentado com um pão especial, trazido pelo anjo de Deus, quando estava exausto e com fome no deserto. A ingestão daquele pão milagroso lhe deu sustança para caminhar durante quarenta dias e quarenta noites. Embora fosse de um tipo especial e prefigurasse, com muita antecedência, a eucaristia, este pão do deserto saciava a fome corporal apenas, mas não tinha o condão de preservar para a vida eterna quem o comesse. E, como é bastante comum ocorrer nos textos do Antigo Testamento, faz-se aqui mais uma referência à mística do número 40, que deve ser entendida no sentido alegórico, não no sentido literal da contagem matemática, mas dentro de sua simbologia, que indica que algo extraordinário e grandioso está por acontecer. O pão trazido a Elias pelo anjo deu-lhe alento para caminhar durante quarenta dias e quarenta noites, sem sentir fome, até chegar ao monte Horeb (Sinai), para onde ele se dirigia, obedecendo à ordem de Javeh. Esse é o sinal do poder daquele pão miraculoso.


É importante salientar que o nome Elias significa “Javeh é meu Deus” e este profeta teve um papel importantíssimo na defesa do monoteísmo hebraico, na época em que o povo hebreu passava por um período de vacilação na sua fé religiosa. A missão do Profeta era trabalhar junto às comunidades da região do Sinai, para que abandonassem os deuses pagãos e retornassem ao seu único Deus, Javeh. Ocorre que Elias não conseguia sensibilizar aquele povo para ouvir suas palavras e retornar ao seguimento da aliança e estava assim por demais desgastado com a dureza dos seus corações. Passando de aldeia em aldeia, anunciando a ordem de Javeh, ele não recebia a esperada adesão por parte dos seus coirmãos de fé. Elias então entrou numa verdadeira crise existencial. Parecia que Javeh tinha dado a ele uma missão impossível. Além da incredulidade do povo, sobressaía o cansaço físico e a dificuldade de se alimentar, porque ele não era bem recebido por onde andava.


Naquele dia, em meio a essa crise psicológica, atravessando uma região desértica, padecendo em consequência da fome e da descrença dos hebreus, Elias surtou. Deitou-se no chão, na sombra do junípero e disse a Javeh: agora basta, Senhor, podeis tirar a minha vida, eu não tenho mais forças para cumprir a missão que me destes. E adormeceu. Foi despertado por um anjo, que lhe trouxe para refeição um pão assado sob as cinzas, que ele comeu e dormiu novamente. Daí a pouco, o anjo o acordou de novo e deu-lhe outra porção do pão, que ele comeu outra vez e pronto. Com este alimento, Elias não teve mais fome nem cansaço e pôde terminar sua tarefa, percorrendo toda a região do deserto, até chegar ao Sinai.


A região atravessada por Elias é aquela grande península do Sinai, pertencente hoje ao Estado de Israel, que ao longo da história tem sido objeto de intermináveis contendas e a paz ainda não se fixou por ali, desde os tempos bíblicos. Vejamos que Elias, que viveu no século IX antes de Cristo, já não conseguia atravessar aquela região em paz, do mesmo modo que os seus atuais habitantes. A dificuldade de convivência dos judeus com os seus vizinhos prossegue hoje com a mesma ou até maior intensidade do que nos tempos bíblicos.


Na leitura do evangelho de João (6, 41-51), Jesus falara ao povo de sua cidade natal que Ele é o pão descido dos céus. Pra que ele disse isso! ... Os conhecidos ficaram logo a cochichar entre si: nós o conhecemos, não é Ele o filho de José e Maria? Por que ele diz que desceu do céu? Foi por isso que Jesus, depois, se lamentou: É isso mesmo, ninguém consegue ser profeta na sua própria terra. (Lucas, 4, 24). Era difícil explicar aos conterrâneos que ele é o pão vivo descido do céu e quem comer deste pão não morrerá eternamente. Teve de justificar que somente aquele a quem o Pai atraiu poderá reconhecê-lo como pão do céu. “Ninguém pode vir a mim, se o Pai que me enviou não o atrai.” (Jo 6, 44) Ou seja, numa perspectiva puramente humanística, não havia condição de alguém reconhecer em Jesus o Filho de Deus, era necessário que os seus conterrâneos primeiramente aceitassem o Pai, através dos ensinamentos de Jesus, para que então pudessem entender a que tipo de pão Ele estava se referindo.


E Jesus aproveitou para dizer que os antepassados deles haviam comido outro pão descido do céu, o maná solicitado por Moisés, quando estavam no deserto, todavia não era aquele tipo de pão o que Jesus trazia, porque o pão do deserto não livrava da morte eterna. Já o pão vivo, que era ele próprio, traz a recompensa da vida eterna a quem com ele se alimenta. Lembrando-nos dos domingos anteriores, em que comentei aqui outras passagens evangélicas com essa mesma temática do pão, fiz referência a que o pão vivo, que é Cristo, não alimenta apenas o corpo material, mas também a alma espiritual, daí porque Ele produz como resultado a vida eterna. Aquela multidão que buscou Jesus após o milagre da multiplicação dos pães buscava tão somente, outra vez, o pão material e Jesus fê-los ver que o pão que alimenta o corpo não pode estar separado do pão que alimenta o espírito.


Desse modo, o pão vivo, que é Jesus, não é apenas a sua carne por ele entregue para a vida do mundo. É necessário que o pão = carne seja consumido juntamente com o pão = palavra, com a mensagem de sua doutrina. A catequese que se desenvolveu no Brasil ao longo do tempo não foi capaz de demonstrar ao nosso povo a necessidade de unir essas duas dimensões do pão do céu (corpo de Cristo): a palavra e a eucaristia. Sempre carregou mais na obrigação de comungar, porque com a comunhão, nós nos unimos ao próprio Cristo, Ele ingressa no nosso ser. Sem dúvida, isso é verdade. No entanto, aqui temos apenas a primeira parte do seu ensinamento. Para que este pão eucarístico produza o efeito que Cristo prometeu (“quem come deste pão viverá eternamente”) é necessário unir a comunhão eucarística com o cumprimento dos mandamentos de Cristo (“amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”), ou seja, com a ingestão do pão da palavra e do pão eucarístico, pelos quais tanto o corpo quanto o espírito se alimentam e fortalecem.


A participação no sacramento da eucaristia, quando não é acompanhada da prática dos ensinamentos de Cristo, equivale àquela advertência de Paulo de que não se deve comer e beber indignamente o Corpo e o Sangue de Cristo (1Cor 11,27). Tradicionalmente, sempre se ensinou que isso ocorre com quem vai comungar sem ter-se confessado antes. A meu ver, come e bebe indignamente o Corpo e o Sangue de Cristo quem dissocia o pão da eucaristia do pão da palavra, porque o pão vivo, que é Cristo, só está completo com essas duas funções. Foi isso que Ele ensinou, nas diversas passagens que lemos nos últimos domingos, em que a temática do pão vem sendo repetida e reforçada. Jesus somente deu o pão da sua carne aos Apóstolos na última ceia, depois de passar três anos instruindo-os com o pão da palavra. Ele afirmou, por várias vezes, que quem comesse da sua carne teria a vida eterna, todavia, ele só demonstrou como seria isso na prática após todo o período de catequese dos Apóstolos, quando eles já haviam absorvido suficiente quantidade dos seus ensinamentos.


Só uma breve palavra sobre do conceito de “carne”, que aparece diversas vezes nesse discurso acerca do pão. A palavra grega em referência é 'sarx', que se traduz por carne, porém, o seu significado vai além da carne = músculo, como costumamos entender em português. De fato, sarx significa qualidade de ser humano, humanidade, ser vivo e pensante, é como se Jesus tivesse dito “quem come a minha humanidade”, isso é bem mais amplo e profundo do que a carne meramente muscular, fisiológica. Lembremo-nos, a propósito, de outra passagem do evangelho, onde diz que “o Verbo se fez carne”, o que significa: o Verbo tornou-se gente, transformou-se em ser humano. Tenhamos em mente esses conceitos, ao participar da eucaristia.


Cordial abraço a todos.

Antonio Carlos

sábado, 27 de julho de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - PÃO PARA TODOS - 28.07.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 17º DOMINGO COMUM – PÃO PARA TODOS – 28.07.2024


Caros Confrades,


As leituras litúrgicas deste 17º domingo comum narram episódios de multiplicação de pães, preconizando o milagre eucarístico, que seria depois realizado por Jesus, perpetuando-se na história e chegando até nós. O alimento que chamamos pão está presente desde os tempos mais remotos da humanidade, em todas as culturas. O tipo mais comum é o pão de trigo e sua presença na Bíblia se encontra em diversos momentos, aquele cuja fartura saciou a fome de milhares de fiéis, tanto no Antigo quanto no Novo Testamentos. Por isso, ao despedir-se, Jesus quis deixar o pão como o símbolo de sua permanência entre nós e instituiu-se a si próprio em pão da vida, não somente para saciar a fome natural, mas sobretudo para locupletar o espírito com o pão vivo e imortal.


Na primeira leitura de hoje, retirada do Livro dos Reis (2Rs 4,42), narra-se um fato miraculoso operado pelo profeta Eliseu vários séculos antes de Cristo, sendo um evento antecipatório do futuro milagre da multiplicação dos pães, que seria realizado pelo Messias. Num tempo de grande seca e, portanto, de fome para o povo, Eliseu ganhou de presente 20 pães, trazidos por um estrangeiro, mas não os recebeu, porque seria egoísmo de sua parte saciar a própria fome, enquanto o povo padecia faminto. Então, ele mandou que os pães fossem distribuídos para o povo. O portador dos pães ficou preocupado: como vou distribuir tão poucos pães para tantas pessoas famintas? Ele, prudentemente, deve ter logo imaginado o tumulto que isso iria ocasionar e as brigas entre as pessoas disputando os pedaços, podendo até ocorrer agressões e ferimentos e ele mesmo poderia ser vítima do episódio. E queixou-se ao Profeta. Mas este o tranquilizou: O Senhor disse – comerão e ainda sobrará. E assim aconteceu e essa foi a primeira vez da repartição do pão para todos.


A imagem do pão, encontrada em todas as culturas, desde as mais remotas, com o passar dos séculos, não perde a sua primazia, porque o pão continua sendo o alimento básico do ser humano. Além daquele padrão, feito de trigo, há as variantes regionais, de acordo com as produções agrícolas locais, com uso de milho, de mandioca, de batata, daquele tipo de massa que for mais abundante numa região. O pão é um símbolo da própria vida que ele alimenta. Por causa da sua importância cultural, o pão ultrapassa a pura matéria física para significar os diversos dons que acompanham a vida humana, além da simples satisfação da fome corporal. O saciamento da fome induz ao bem-estar, à alegria, à boa convivência, faz elevar o espírito para as realidades sobrenaturais, então o pão é muito mais do que um alimento material, é um verdadeiro mantenedor vital do ser humano. Foi por esse motivo que Jesus, quando quis deixar um sinal perpétuo da sua presença no meio da humanidade, adotou o símbolo do pão, transformando a Si mesmo em pão da vida.


No relato do evangelista João (6, 1-15), Jesus revive a cena histórica do profeta Eliseu, diante da multidão que o acompanhara de longe, na sua travessia do Lago de Tiberíades, encontrando-o na margem oposta. Ele próprio fez uma provocação aos apóstolos, indagando-lhes pedagogicamente, mesmo já sabendo da solução que adotaria: onde arranjaremos pão pra esse povo todo comer? E Felipe avaliou: nem duzentas moedas seriam suficientes para comprar um pedaço pra cada um. Foi quando André trouxe a informação: tem ali um rapaz com cinco pães e dois peixes, mas de que adianta isso para tanta gente? Jesus só não repetiu o refrão de Eliseu (“comerão e ainda sobrará”), mas fez que o povo sentasse e mandou distribuir os pães e os peixes, depois de abençoá-los. E o milagre da fartura se repetiu, todos comeram até ficarem saciados e ainda sobraram doze cestos com os pedaços deixados. Juntem tudo, para que nada se perca. Aquelas sobras, provavelmente, poderiam saciar novamente outros famintos, pois como vimos no evangelho do domingo passado, as pessoas estavam sempre a seguir aonde Jesus e os apóstolos estavam, de modo que eles não tinham uma folga nem para comer. E o número de cestas que sobraram (doze cestas) contém uma alusão implícita às doze tribos de Israel. Simbolicamente, aquela recolha do excedente representava a totalidade do povo judeu.


Pois bem, nesse relato do evangelista João, podemos destacar alguns detalhes interessantes. Primeiro, a preocupação de Jesus com a fome daquelas pessoas. As pessoas não foram se queixar de fome para Ele, ao contrário, estavam ali para ouvi-Lo. Mas Jesus sabia que, sem a alimentação corporal adequada, a mente não funciona, a concentração não ocorre, o aprendizado é nulo. Então, antes de alimentar o espírito, é necessário alimentar o corpo. Isso significa que a Igreja não pode se descuidar dos aspectos materiais da vida social, da melhoria das condições de vida e de trabalho dos fiéis, ou seja, não compete às autoridades religiosas apenas celebrar missas e oficiar os sacramentos, mas junto com isso, deve ter a preocupação com a vida material justa. Junto com o pão da palavra, os pastores devem também preocupar-se com a assistência material das pessoas mais carentes da comunidade, enquanto os fiéis melhormente aquinhoados devem colaborar para a efetivação desse serviço. Viver a religião não deve se resumir a frequentar o templo nos dias celebrativos, fazer as novenas e rezar o terço. Isso é importante, sem dúvida. Mas ficam faltando os atos concretos, as “obras” de caridade, que devem ser inseparáveis da fé.


Outro detalhe que importa destacar é que o milagre de Jesus foi possibilitado pela presença de um rapaz trazendo cinco pães e dois peixes. Ele poderia ter feito o milagre independentemente disso, podia ter transformado até pedras em pão ou ter feito cair pão das nuvens, mas, não, Ele quis a colaboração de alguém da comunidade. Isso significa que Deus prefere agir por nosso intermédio, com a nossa colaboração, mesmo para fazer as coisas mais extraordinárias. Santo Tomás de Aquino ensinava, utilizando a terminologia filosófica de Aristóteles, que Deus age por causas segundas. Essas “causas segundas” são as ações indiretas. Ele pode atuar de forma direta e imediata, mas muitas vezes, Deus se serve de nós, de um coirmão ou coirmã nosso(a) para operar prodígios e, nesse caso, Deus nos honra grandemente agindo por nosso intermédio. Quando Ele nos dá fartura de bens materiais, Ele também espera que nós contribuamos com maior generosidade para o serviço dos irmãos. É bem verdade que, nas sociedades modernas, tais obras assistenciais devem ser acionadas pelas autoridades públicas, porém, mesmo que isso aconteça (o que nem sempre ocorre), não ficamos dispensados de colaborar com a nossa parte. Portanto, nós precisamos estar sempre disponíveis para Deus agir por nosso intermédio, através da nossa fé operante, através do nosso exemplo e do nosso testemunho. Muitas vezes, nós nem atentamos para isso, mas as nossas atitudes estão sendo percebidas por outras pessoas e o nosso bom exemplo pode estar sendo decisivo para que um irmão, momentaneamente fraco na fé, ganhe força e supere um obstáculo na sua vida. Se deixarmos Deus agir por meio de nós, nós também poderemos ser esses agentes transformadores, sem que isso necessariamente cause em nós canseira ou preocupação. Na nossa vida cristã cotidiana, as nossas atitudes normais de cada dia podem se transformar em importantes instrumentos divinos para a realização de obras valiosas na sociedade.


Quando Jesus, na última ceia, serviu-se do pão para tornar-se presente permanentemente no nosso meio, ele quis associar a Si próprio a este alimento, que desde os primórdios da raça humana tem sido indispensável. Assim como o pão da massa material é um artigo universalmente inerente às sociedades humanas, Jesus quis que o seu corpo em forma de pão tivesse a mesma presença e mesma participação na nossa vida. Eu, particularmente, sinto um certo desconforto quando vejo a celebração eucarística sendo realizada com aquela composição do trigo, que chamamos de hóstia, porque me dá a impressão que assim nos afastamos da verdadeira intenção de Cristo, quando fez-se pão, visto que a aparência física da hóstia, embora saibamos que é produzida com a mesma massa do pão, não tem nenhuma semelhança visual com este. E eu fico pensando que Cristo quis que o Seu corpo fosse associado ao visual do pão comum, aquele alimento básico e essencial, conhecido por todos. Nós não tomamos café com hóstia, leite com hóstia, e eu acho que Cristo queria que fizéssemos uma associação visual entre o pão eucarístico e Ele, que se elevasse à dimensão da fé. O pão que alimenta o corpo também, e ao mesmo tempo, alimenta o espírito. Nas Igrejas Católicas Ortodoxas, o pão eucarístico é o pão comum mesmo, não tem esse formato de hóstia, que estamos acostumados a ver. A mim, parece que lá a vontade de Jesus esteja sendo cumprida mais fielmente.


Com a devida vênia dos Confrades que não concordam, um cordial abraço a todos.


Antonio Carlos

sábado, 13 de julho de 2024

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 15º DOMINGO COMUM - 14.07.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 15º DOMINGO DO TEMPO COMUM – O ENVIO – 14.07.2024


Caros Confrades,


Neste 15º domingo do tempo comum, o tema litúrgico em destaque é o envio dos apóstolos para pregarem o Evangelho nas cidades da região da Galileia. Essa foi uma espécie de estágio, que Jesus deu aos apóstolos, após um período de ensinamento, para que eles colocassem em prática o que haviam aprendido. Tempos depois, por ocasião de sua ascensão, Jesus os mandou novamente, mas dessa vez, para evangelizarem todos os povos. Numa visão hermenêutica transistórica, o mandado do envio se direciona também a nós, seus discípulos dos dias atuais e a todos os discípulos de Jesus, em todos os tempos. Com nossa vida e com nosso testemunho, continuamos a evangelizar, seguindo o mandado de Jesus.


A temática do envio encontra-se presente também na primeira leitura, retirada do profeta Amós (7, 12). Este era um profeta de poucas letras, pastor de rebanhos, agricultor, homem simples e humilde, não tinha antepassados na atividade no ramo profético. Mas sua profecia causava incômodo às elites israelitas, exatamente por ser ele um homem do povo, não pertencente à linhagem tradicional. Então, o sacerdote do templo de Betel, de nome Amasias, a pedido do rei, o chamou e mandou que fosse profetizar em Judá e lá trabalhar, para ganhar a vida, advertindo-o a não profetizar ali em Betel, porque neste local estavam localizados a corte do rei e o templo oficial, onde Amasias era o sacerdote e, portanto, o 'profeta' oficial. Em outras palavras, Amasias estava querendo se livrar de Amós, porque este, a mando de Javé, denunciava a tibieza e a exterioridade da religião oficial de Israel, cujos cultos não agradavam a Javé por causa da ausência de devoção e do excesso de formalismo, além da permissividade para o culto dos deuses pagãos. A resposta de Amós foi bem desaforada, como o sacerdote não esperava: eu não sou profeta nem filho de profeta, sou pastor de gado, mas o Senhor me chamou quando eu estava pastoreando o rebanho e me mandou profetizar em Israel, é aqui que eu vou ficar. Com risco da própria vida, Amós prosseguiu no seu trabalho desafiando as autoridades, seguindo o mandado de Javé.


Isso aconteceu setecentos anos antes de Cristo. A vocação de Amós, um homem simples e de poucos estudos, antecipava o chamado que Jesus fez aos discípulos galileus, num contexto bastante similar, pois eram também pessoas do povo, pescadores, pessoas de poucas letras, e deveriam enfrentar também perseguições e dificuldades inerentes ao cumprimento da sua missão, junto às elites do povo judeu. Jesus disse aos discípulos que eles deviam pregar em todos os lugares, sem levar nenhum dinheiro, nem alforje, nem muda de roupa, nada, devendo receber o seu sustento pelas pessoas da comunidade. E onde não fossem bem recebidos, deviam sacudir a poeira das sandálias contra aquelas pessoas em protesto. E deu a eles o poder de expulsar demônios e curar doenças.


O profeta Amós, e em geral todos os profetas do Antigo Testamento, são personificações antecipadas dos discípulos que Cristo iria preparar para a pregação do seu Evangelho. Desse modo, os discípulos de Cristo em todas as épocas passaram a ser os profetas do seu tempo. Como resultado do cumprimento desta missão de envio, nós temos hoje a doutrina cristã presente em todos os recantos do mundo e nós somos os continuadores desta missão, espalhados em todas as camadas da sociedade. Isto é, os profetas dos nossos dias somos nós, seguidores de Cristo e comprometidos com a nossa vocação de enviados. O Papa Francisco é o nosso profeta-mor, com seu carisma, seu zelo, seu exemplo que encanta até mesmo os ateus.


Provavelmente, um seguidor de Cristo que pode ser apresentado como modelo mais perfeito do cumprimento desta missão talvez seja o nosso Seráfico Patriarca Francisco de Assis, sem dúvida, um grande profeta do seu tempo. Num momento em que a Igreja de Cristo passava por uma grave crise de identidade, ante a influência do secularismo, e as suas autoridades estavam sucumbindo às ambições do ter e do poder, bem como às seduções dos pecados capitais, o Senhor tocou o coração de Francisco e o enviou para 'reconstruir' a sua Igreja. Tão ingênuo, ele imaginou, a princípio, que seria apenas um pequeno serviço de reparos nas paredes, pinturas, limpeza, só depois entendeu o verdadeiro sentido do seu chamado. Mas, por sua humildade, soube ser totalmente fiel à sua missão. Enquanto outros reformadores históricos (como, por exemplo, Lutero), com arrogância e orgulho, entraram em rota de colisão com as autoridades cujos desmandos eles denunciavam, Francisco, ao contrário, fez todas as suas ações de forma tranquila e obediente às mesmas autoridades, cujo comportamento atípico ele reprovava com seu exemplo de seguidor do evangelho. E o que Francisco fez? Exatamente aquilo que Cristo mandou, quando enviou os seus discípulos: sem preocupações com a aquisição e acúmulo de bens, sem necessidade de provisões de alimentos nem vestimentas, recebendo da própria comunidade o seu sustento, como fruto do seu trabalho. Todos nós nos recordamos que é isso o que está contido na 'regra de vida' que Francisco deixou como herança para os seus frades. Por isso, podemos dizer que, se houve alguém que cumpriu fielmente o mandado de Cristo na pregação do Evangelho, este foi Francisco de Assis. Deste modo, o nosso compromisso com o engajamento na missão tem uma dupla fonte. De um lado, o envio de Cristo aos seus discípulos, conforme relatado por Marcos no evangelho; de outro lado, o exemplo modelar de Francisco, de cuja herança nós participamos, através da formação que recebemos no tirocínio da vida franciscana. Seguir a Francisco se equipara a seguir a Cristo, só que com maior entusiasmo e alegria, pois, juntamente com o envio, temos o exemplo mais efetivo do seu cumprimento.


Na segunda leitura, retirada da carta aos Efésios (1, 3), Paulo elabora um inspirado hino de louvor ao Pai, que em Cristo nos escolheu, antes da fundação do mundo, para que sejamos santos e irrepreensíveis, sob o seu olhar, no amor. Naquela época, dos primeiros tempos do cristianismo, a palavra “santo” era usada para referir-se aos cristãos, pois esse nome “cristão” ainda não era usual nas comunidades. Por diversas vezes, Paulo retoma esta palavra para se referir aos seguidores de Cristo, não tinha portanto, o sentido específico que o termo hoje possui. Nessa carta aos Efésios, ele exalta o dom da vocação que envolve todos os santos (cristãos) para serem profetas e evangelizadores, continuadores da missão salvadora de Cristo, através do envio que todos recebemos, como tributo do nosso batismo e da nossa adesão pela fé. Por Ele, nós fomos confirmados no Espírito, segundo o projeto do Pai, que assim nos predestinou para colocar a nossa esperança em Cristo e no seu evangelho da salvação.


Conforme a promessa de Cristo, são inerentes ao envio os poderes de expulsar espíritos malignos e curar os doentes. Estes poderes, que são transmitidos aos sacerdotes na cerimônia da ordenação, sintetizam o cerne da missão do evangelizador, isto é, curar os males corporais e espirituais, e não devem ser interpretados literalmente, e sim no sentido daquilo que Jesus disse, como resumo de sua missão: que todos se convertam e vivam. Quem interpreta estas palavras no sentido fundamentalista passa a praticar rituais de exorcismo, muito característicos de algumas entidades religiosas católicas e não católicas da atualidade, que até fazem demonstrações teatralizadas disso através da televisão. No meu modo de entender, o poder de expulsar demônios deve ser entendido como o poder de vencer o mal, em todas as suas formas de manifestações, principalmente aquelas mais presentes na sociedade contemporânea, materializadas na discriminação de pessoas, na exclusão social, na exploração do próximo através das nefastas práticas capitalistas, que tanta indignação causam às pessoas de boa fé. E o poder de curar doenças pode ser entendido como a aceitação e a promoção das pessoas mais necessitadas física e psicologicamente, levando apoio e auxílio aos irmãos mais frágeis e vulneráveis. Não existe uma receita ou um padrão de comportamento a ser indicado, mas isso será percebido pela sensibilidade de cada um, perante a sua consciência iluminada pela fé. Os sacerdotes recebem essa missão de forma plena, mas pelo batismo, também nós leigos a recebemos em grau genérico, conforme a promessa de Cristo, e compete a cada um de nós encontrar a melhor forma de pô-los em prática na nossa vida, com nossas ações e nosso testemunho.


Que o divino Mestre e o nosso Seráfico Patriarca nos ajudem no fiel cumprimento da missão que Cristo reservou e espera de cada um de nós.


Com um cordial abraço.

Antonio Carlos


sábado, 6 de julho de 2024

COMENTARIO LITÚRGICO - 14 DOMINGO COMUM - 07.07.2024

 

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – A FORÇA DA GRAÇA – 07.07.2024


Caros Confrades:


A liturgia deste 14º domingo do tempo comum traz, nas suas leituras, um tema muito importante que é a doutrina da graça, a graça suficiente, a graça que basta. Deus dá a todos a sua graça, mas ele respeita a nossa liberdade, não fica nos puxando pela mão o tempo todo, espera que nós saibamos construir conscientemente o nosso caminho. A graça que Deus dá não obriga nada a ninguém. A cada um é dada a força da graça em tamanho suficiente, porém, se cada pessoa não fizer também a sua parte, a graça por ele recebida restará ineficaz. A maior graça divina que nos foi dada é a redenção, trazida por Cristo. Mas ela só tera efeito naqueles que acreditarem. Pela fé nele, inicia-se o processo de abertura do nosso ser para a graça, mas a salvação de cada um deve ser conquistada com o testemunho dessa fé através das obras. Se fosse de outro modo, a graça não nos ajudaria, mas nos anularia como pessoas, porque se poria acima da nossa liberdade. Desse modo, Deus dá a sua graça mas espera que nós a aceitemos livremente e ajamos de acordo com ela, para sermos merecedores dessa distinção.


Na leitura da carta de Paulo a Coríntios (2Cor 12, 7), esse tema está bem explicado, quando ele declara que foi espetado na carne por um espinho que é como um anjo de Satanás a esbofeteá-lo. No texto original grego, a expressão paulina é 'skólops tês sarxi'', que significa ‘estaca na carne’ (faz lembrar as histórias de Drácula isso), e no texto latino, a tradução usada por São Jerônimo é 'stimulus carnis', que nas traduções portuguesas mais antigas era vertido como ‘aguilhão na carne’. A tradução atual substituiu o aguilhão por espinho, porém espinho é algo muito brando para simbolizar a imagem proposta por Paulo. Espinho lembra algo pontiagudo, mas delgado e frágil. Já a palavra grega 'skólops' tem um peso muito maior do que simples espinho, simbolizando uma madeira pontiaguda, algo mais poderoso e difícil de evitar.


Pois bem, Paulo diz que esse 'skólops' foi enfiado na sua carne para que ele não se ensoberbecesse com a maravilhosa revelação que ele teve, após a sua conversão, quando foi tocado por Jesus e se transformou em fervoroso discípulo. Por três vezes, diz ele, pedi ao Senhor que me livrasse disso, mas Ele respondeu: ‘basta-te a minha graça’ (2Cor 12, 9). Então, Paulo reflete acerca da suficiência da graça divina para a nossa salvação, ensinando-nos a não nos deixarmos sucumbir diante das dificuldades da vida, das nossas fraquezas, do desânimo e da falta de compreensão, muitas vezes, daqueles que nos são mais próximos. Quer ele dizer, com isso, que a graça de Deus que nos é dada não afeta a nossa condição humana, no sentido de que nós continuamos a possuir as mesmas imperfeições e ambiguidades da nossa natureza. O fato de acreditar em Cristo não torna o cristão, humanamente falando, melhor do que o não crente. Porém, o cristão passa a ter um recurso extra para superar as suas fraquezas humanas. Diz Paulo que é na fraqueza que a força se manifesta. E arremata: ‘porque quando me sinto fraco, então é que sou forte’. Isto é: quando as adversidades me atacam, quanto mais elas me perseguem, mais eu conto com a graça divina. Por outras palavras, a graça divina não retira de nós o pecado, mas nos proporciona condições para vencer o mal e trilhar o caminho do bem. Aqui é que o resultado vai depender de cada um de nós.


Essa doutrina desenvolvida pela teologia da graça ensina que Deus dá a todos os homens a graça suficiente para a salvação, porém, cada um deve fazer a sua parte para que ela frutifique. Desse modo, ela contrasta com a doutrina da graça de outras religiões, aquela que se denomina de predestinação. Segundo esta, algumas pessoas estão marcadas para a condenação, independente do que venham a fazer. De outro lado, outras pessoas estão escolhidas para a salvação, não importa o que fizerem na vida. Essa doutrina, se verdadeira, tornaria inútil qualquer esforço nosso para escolher o bem e praticar a virtude, além de levar à conclusão de que Deus seria sumamente injusto conosco, zombando da nossa condição e desrespeitando a nossa liberdade, o que seria incompatível com a natureza perfeita da divindade. Por isso, a teologia cristã católica ensina que a graça nos é dada, sim, sem que a peçamos, porém ela não funciona de forma automática, mas vai depender da forma como cada qual corresponde aos dons divinos. Ou seja, a graça divina é suficiente, mas não surtirá efeito sozinha e, portanto, a salvação é um dom de Deus, mas é também uma conquista de cada um através da sua fé e das suas obras de misericórdia, não bastando apenas a fé. Agir em desacordo com a graça é o que se constitui em pecado e isso, às vezes, termina sendo inevitável, dadas as imperfeições da nossa natureza. Observa-se que, quando Paulo pediu a Deus: livra-me do “skólops”, ele estava querendo dizer “livra-me dessa condição de pecador”. Mas a resposta divina foi: não, a graça que te dou pode superar o pecado, isso só depende de ti. Eis o nosso cotidiano desafio.


Esse tema da “graça que basta” está representado também no evangelho de Marcos (6, 1-6), onde lemos que Jesus voltou a Nazaré, sua terra, acompanhado dos discípulos e lá se apresentou na sinagoga, no sábado, para fazer a leitura da Torah e depois explicá-la para os ouvintes. Foi quando os fariseus e os doutores da lei se ‘escandalizaram’ e ficaram se questionando: quem deu a Ele essa sabedoria? Com que autoridade Ele vem nos ensinar? Os doutores da lei não admitiam que alguém do povo, que não pertencesse ao grupo deles, fosse ler na sinagoga e explicar a palavra de Deus. Somente eles poderiam fazer isso. Ora, Jesus tinha vivido muito tempo em Nazaré e era conhecido, assim como os seus familiares. Diziam eles: não é este o filho do carpinteiro José? Nós conhecemos sua mãe, seus irmãos e irmãs, que ainda moram na cidade. Ora, meus amigos, aqueles fariseus tiveram diante de si, em pessoa, a própria Graça divina e não a reconheceram, e a recusaram. É interessante observar que o verbo ‘escandalizar’, nesse contexto, nada tem a ver com o sentido comum dessa palavra na nossa língua, mas significa descrença, não aceitação, incredulidade. Os fariseus se escandalizaram com Jesus quer dizer que não o aceitaram como Messias, não reconheceram nele o prometido por Deus. Portanto, aqueles fariseus tiveram a graça suficiente, mas pela sua incredulidade, pela rebeldia de sua vontade, a graça não operou efeito neles. Talvez se Jesus tivesse se “exibido” diante deles com algum milagre, tivessem acreditado. Mas, diz o evangelista, Jesus não fez milagre algum, apenas curou alguns doentes, impondo-lhes as mãos. Essas curas eram sempre feitas de forma privada, sem presença de público. Mas os fariseus tinham conhecimento de outros milagres, porque a fama de Jesus, nessa ocasião, circulava em toda a região. Portanto, embora tivessem a própria Graça entre eles, os seus efeitos não ocorreram, porque Deus respeita a liberdade humana e pela falta de fé deles, a salvação trazida por Jesus não se realizou ali.


Essa atitude de incredulidade dos fariseus já estava prevista pelo profeta Ezequiel, conforme lemos na primeira leitura deste domingo. Javeh disse a Ezequiel: vai lá, apresenta-te ao povo e fala em meu nome, eu sei que não vão acreditar em ti, porque são (Ez 2, 3): nação de rebeldes, que se afastaram de mim. Eles e seus pais se revoltaram contra mim  até ao dia de hoje. A estes filhos de cabeça dura e coração de pedra, vou te enviar …” E depois acrescenta: “Quer te escutem, quer não, ficarão sabendo que houve entre eles um profeta.” Foi assim que Jesus retornou a Nazaré, para que se cumprisse a profecia pois, crendo ou não, os líderes religiosos do povo ficariam sabendo que o Messias passou entre eles. A mesma atitude de recusa relatada pelo profeta Ezequiel em tempos passados se repetiu em relação àquele que, no dizer de João Batista, é mais do que um Profeta, pois o profeta fala em nome de Deus, mas Jesus falava em nome próprio. Isso torna a atitude rebelde dos fariseus mais grave e ofensiva do que a dos seus antepassados, porque estes rejeitaram a pessoa de um representante de Deus, enquanto os fariseus rejeitaram o próprio Deus.


Meus amigos, a pedagogia catequética tradicional promovia uma satanização do pecado, como se este fosse obra do demônio. Mas podemos concluir, pela leitura da carta de Paulo, que o pecado é fruto da condição humana e que ele não deve nos afastar de Deus, mas devemos nos amparar na graça que Deus nos concede, para superá-lo. Uma antiga oração penitencial dizia assim: ‘prometo nunca mais pecar...’ ora, sabemos que isso é impossível, porque para isso acontecer, teríamos de deixar de ser humanos. O pecado faz parte da natureza humana e assim é uma realidade sempre possível na nossa vida. Porém, sabendo que Deus nos concede a sua graça, temos a confiança de que é sempre possível também evitá-lo e, em qualquer caso, temos o remédio para sanar as suas consequências.


Que o Senhor nos ajude sempre a descobrir em nós a graça que recebemos e nos dê coragem para agir de acordo com ela.


Com um cordial abraço a todos.

Antonio Carlos.