COMENTÁRIO LITÚRGICO – 22º DOMINGO COMUM – RELIGIÃO DE APARÊNCIAS – 31.08.2024
Caros Confrades,
O tema da liturgia deste 22º domingo comum se expressa bem no refrão do cântico da comunhão, sugerido para a missa de hoje: o mal que sai de nós e vem do coração impuros, sim, nos faz. Essa mensagem nos convida a refletir sobre a qualidade da nossa prática religiosa. Temos atitudes coerentes com o que afirmamos de boca ou praticamos uma religião puramente exterior, de fachada, como faziam os fariseus no tempo de Jesus? A nossa fé está integrada na nossa vida ou praticamos a vida dupla: na igreja somos orantes, fora dela somos maledicentes? O espírito farisaico, criticado por Jesus naquele tempo, ronda permanentemente os templos e as vidas dos crentes, hoje como foi também no passado.
A primeira leitura litúrgica é retirada do livro do Deuteronômio (4, 1). Antes, só uma breve informação histórica sobre esse livro do Deuteronômio. Literalmente, esse título significa em grego “segunda lei”, mas não é outra lei diferente daquela de Moisés, apenas uma nova “versão”, a lei mosaica com outras palavras. Por isso, o nome hebraico deste livro é Devarim e significa “palavras”. O papiro com esse manuscrito foi encontrado casualmente por pedreiros que faziam uma reforma no altar do templo de Jerusalém. Era um rolo muito antigo, que estava enterrado sob a pedra do altar. Ao lê-lo, os escribas verificaram que se tratava de uma espécie de “repetição” ou adaptação dos discursos de Moisés, contendo muitas orientações práticas sobre a vida do povo, tendo sido escrito em data posterior, provavelmente, quando os israelitas já estavam bem próximo de adentrarem a terra prometida, ou seja, no final da vida de Moisés. Assim se entende porque o livro carrega esses dois nomes: deuteronômio (segunda lei, repetição da lei) e devarim (palavras, costumes da sociedade hebraica). Sempre devemos ter em mente que, naquela época em que não havia separação entre estado e religião e que as autoridades religiosas e estatais eram as mesmas, era perfeitamente comum que as normas sociais e estatais se confundissem com preceitos religiosos. Isto era assim não apenas entre os hebreus, mas entre todas as sociedades primitivas. Quem tiver interesse em ler mais aprofundadamente sobre esse assunto, sugiro a leitura do livro “A Cidade Antiga”, da autoria de Fustel de Coulanges.
Pois bem, passando ao texto do Deuteronômio, Moisés fala ao povo sobre as leis e decretos dados por Javeh aos seus ancestrais, lembrando a eles a exigência da fidelidade a essas normas, como uma maneira de demonstrar sabedoria diante dos povos vizinhos, porque nenhum dos deuses dos outros povos tinha este mesmo cuidado com os seus devotos do que o Deus de Abraão. Diz o vers. 6: “Vós os guardareis, pois, e os poreis em prática, porque neles está vossa sabedoria e inteligência perante os povos, para que, ouvindo todas estas leis, digam: 'Na verdade, é sábia e inteligente esta grande nação! ” Os fariseus gostavam muito do Deuteronômio, porque havia nele uma grande diversidade de preceitos, dos quais eles faziam uma espécie de tabela e com ela ensinavam o povo. Além disso, servia também para fiscalizar se os demais hebreus a estavam observando.
Segundo os estudiosos, os fariseus fizeram uma aplicação da Lei Mosaica através de 613 preceitos, destes, 365 eram proibitivos, fazendo uma exposição analítica das normas antigas. Eram esses preceitos que determinavam assuntos básicos de saúde pública, como, por exemplo, lavar as mãos antes das refeições, tomar banho quando chegavam da praça pública, jejuar nos dias estabelecidos, dar esmolas, etc. Para facilitar a memorização, havia uma espécie de tabela com especificações bem detalhadas. Pois bem, A questão que Jesus lançou contra eles, desafiando-os, não era pelo conteúdo das normas, mas porque dentro do excessivo formalismo deles, bastava cumprir aquilo rigorosamente para tornar-se um bom crente, quem não os cumpria estava desobedecendo a lei. Desse modo, por exemplo, se a norma mandava que, no dia de jejum, o máximo que alguém podia ingerir por dia era, por exemplo, 500g de alimento, então era preciso pesar na balança as refeições para não passar dessa cota, sob pena de descumprir o preceito. Ou seja, a sua preocupação era exageradamente formal em relação aos detalhes exteriores, no entanto, não se preocupavam com o interior, com o coração, isto é, intimamente eles podiam ser desonestos, maledicentes, exploradores, caluniadores, injustos, porque essas atitudes interiores não contavam, mas somente o que eles faziam externamente. Na verdade, a concepção religiosa deles era uma religião de fachada, de aparências.
Esta leitura do Deuteronômio tem, pois, conexão direta com o evangelho de Marcos, que narra mais uma das altercações entre Jesus e os fariseus, estes sempre tentando apanhá-lo em algum deslize. Viram que os discípulos de Jesus não lavaram as mãos antes de iniciarem a refeição e então eles foram interpelar Jesus, perguntando 'por que os discípulos dele não cumpriam a lei de Moisés' ? Jesus lançou-lhes em rosto o texto de Isaías: “Bem que Isaías falou a respeito de vocês: este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim. De nada adianta o culto que me prestam, pois as doutrinas que ensinam são preceitos humanos'. Vós abandonais o mandamento de Deus para seguir a tradição dos homens' ” (Mc 7, 6). Os fariseus argumentavam que aquela era uma tradição dos antigos, fazendo referência não exatamente à lei de Moisés, mas aos costumes dos ancestrais, por isso Jesus os censurou porque deixaram de lado a verdadeira Lei divina e ampararam-se nas tradições humanas. Daí que Jesus disse: vocês não entenderam nada, não é nada disso, porque se importam muito com o exterior, mas no seu íntimo os seus pensamentos não são coerentes com as suas atitudes. Trazendo para os dias atuais, meus amigos, essa atitude hipócrita dos fariseus ainda pode ser encontrada nos cristãos que se benzem quando passam diante do templo, mas viram o rosto para não oferecerem ajuda a um irmão necessitado, que está sentado na porta da igreja. De que adianta apresentar exteriormente um comportamento correto, quando o interior é vazio? De que adianta andar com o terço na mão, o escapulário pendurado no pescoço, a Bíblia embaixo do braço e, ao mesmo tempo, ter a mente ocupada com frivolidades, o coração cheio de más intenções? Daí o veredito de Cristo, invocando a lamentação de Isaías: esse povo me honra só com os lábios, mas o coração deles tem outro dono. E completou: o que torna impura a pessoa não é o que entra nela vindo de fora, mas o que sai dela vindo do seu interior. O alimento ingerido sem lavar as mãos pode até, eventualmente, causar algum dano à saúde, mas pior do que isso é a maldade que sai distilada em palavras e atitudes, que causam danos mais desastrosos à felicidade das outras pessoas. E isso é o que realmente importa.
Portanto, Cristo está nos ensinando que a verdadeira religião é a que se pratica ao nível do coração, do entendimento, da intencionalidade e que se expressa em atos de caridade. Ter um comportamento contrito e piedoso quando está dentro do templo não é suficiente, se ao sair de lá essa contrição e essa piedade não se revelarem no relacionamento com os irmãos. Não se quer dizer que a oração, a piedade não são boas coisas, de modo nenhum, são ótimas atitudes. O erro está no descompasso, na incoerência entre o interior e o exterior. O nosso agir deve ser uma expressão concreta do nosso pensar, bem como a recíproca atitude. Por diversas vezes, Jesus brandiu contra os fariseus por causa disso. Por exemplo: quando jejuardes, não precisa por cinzas na cabeça e andar com roupa esfarrapada para que os outros vejam, porque o Pai do céu sabe do que se passa no vosso coração; quando derdes esmolas, fazei-o de forma reservada e não alardeando publicamente (nos dias de hoje, tirando “selfie”), de modo que não saiba a tua mão direita o que faz a tua esquerda. A verdadeira religião, a verdadeira fé é a que começa no pensamento, no coração e se traduz em atitudes relacionadas.
E agora uma breve mensagem sobre a segunda leitura, retirada da carta de São Tiago (1, 17), que reforça essa mensagem com seu conselho aos judeus da diáspora: “sede praticantes da Palavra e não meros ouvintes, enganando-vos a vós mesmos. Com efeito, a religião pura e sem mancha diante de Deus Pai, é esta: assistir os órfãos e as viúvas em suas tribulações. ” Quem não pratica a mesma religião que ensina aos outros está se enganando a si próprio, como se diz na linguagem de hoje, é uma 'fake news', tem só a aparência boa, é armadilha com o intuito de ludibriar os incautos. A verdadeira religião é a que se revela nas obras de caridade, como fruto do amor ao próximo. A referência aos órfãos e viúvas reflete uma realidade daquele tempo e hoje deve ser entendida como “os irmãos necessitados”, começando com aqueles que estão mais próximos de nós. De forma direta ou indireta, através de entidades e associações que prestam esse tipo de serviço, a sociedade de hoje, talvez mais do que no tempo do apóstolo Tiago, necessita desse nosso exemplo de solidariedade.
Que as nossas atitudes religiosas exteriores sejam de fato a representação do nosso interior, do nosso coração, da nossa fé.
Com um cordial abraço a todos.
Antonio Carlos
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