Caros Confrades,
A liturgia deste 1º
domingo da quaresma põe para nossa reflexão o tema das tentações
de Satanás para Jesus Cristo, nos persuadindo e incentivando a
vencer as tentações de cada dia, do mesmo modo que Jesus venceu as
tentações que teve no deserto. Junto com este tema, temos a alusão
à simbologia do número 40, pois diz o hagiógrafo que Jesus passou
40 dias no deserto a jejuar, enquanto se preparava para a sua missão.
Comecemos abordando esta simbologia.
O nome 'quaresma' é
proveniente do termo latino 'quadragesima', que significa o mesmo que
a palavra portuguesa quadragésima, numeral ordinal correspondente a
40. Portanto, a quaresma está também incluída na simbologia do 40.
Dentro do cenário bíblico, o número 40 aparece sempre antes da
ocorrência de algo grandioso. O povo de Deus perambulou 40 anos no
deserto até chegar à terra prometida. Moisés passou 40 dias/noites
no monte Sinal até receber de Deus as tábuas da lei. No dilúvio,
choveu sem parar durante 40 dias, até chegar a bonança. Jonas
concedeu aos ninivitas o tempo de 40 dias para se arrependerem e
fazerem penitência. Jesus jejuou durante 40 dias no deserto. Após a
ressurreição, Jesus ainda passou 40 dias aparecendo aos apóstolos,
preparando a vinda do Espírito Santo, até ir definitivamente para o
Pai. São várias as 'quaresmas' na Bíblia, no entanto, é mais
comum a gente lembrar somente do tempo em que passamos preparando a
Páscoa do Senhor a cada ano.
É neste contexto da
simbologia do número 40 que devemos compreender o tempo de jejum de
Jesus no deserto. Nem sempre os 40 dias indicados nas leituras
bíblicas indicam 40 dias do calendário, porque aqui tratamos de uma
mensagem simbólica, significando que o número 40 sempre indica que
um grande acontecimento está sendo preparado. O tempo quaresmal nos
prepara para a grande solenidade da Páscoa.
A leitura do evangelho
de hoje é de Marcos (1, 12-15) e Marcos tem um texto muito sucinto,
mas nós podemos nos valer de Mateus 4, 1 para complementar a
narrativa. Após ter sido batizado por João Batista, o Espírito
conduziu Jesus ao deserto, onde ele jejuou durante 40 dias e foi
tentado por Satanás. Aqui, permitam-me e não me entendam mal, não
se trata daquele personagem com chifres na cabeça e pés de bode,
essa figura é produção estereotipada dos artistas medievais,
esqueçamos isso, Satanás tem natureza angélica e não está por aí
o tempo todo a azucrinar a vida das pessoas. As imagens tradicionais
de Satanás tentando Jesus são puras invenções dos pintores, não
levemos isso a sério.
Então, quais foram
mesmo as grandes 'tentações' de Jesus? 1. Transforma essas pedras
em pão... tentação do poder; 2. Eu te darei todos os reinos...
tentação da riqueza; 3. Joga-te daqui para baixo... tentação do
orgulho/vaidade. Meus amigos, Jesus Cristo tinha consciência da sua
natureza divina e também tinha conhecimento de tudo o que ele iria
enfrentar na sua missão de pregar a boa nova. Então, durante o
jejum, ele fez uma preparação psicológica para viver como homem
comum, pensar como homem comum, agir como homem comum, deixando em
segundo plano a sua condição divina. Ele sabia que iria passar fome
algumas vezes. Então, seria muito mais cômodo para ele fazer um
'milagrezinho' e transformar um pedaço de pedra ou de pau numa
iguaria deliciosa. Mas para ser um homem comum, ele não podia jamais
agir assim. Ou seja, ele só poderia utilizar o poder que a sua
condição divina lhe dava quando fosse o caso de fazer algo que
viesse corroborar seu ensinamento, complementar sua pregação,
demonstrar a glória do Pai, não a dEle própria. Assim, nós
entendemos aquela resposta dele a Maria, nas bodas de Caná, quando
disse: ainda não chegou a minha hora... Essa era a grande tentação
do poder, contra a qual ele precisava estar a todo momento alerta,
para não agir pela vontade própria, mas pela vontade do Pai.
Este mesmo raciocínio
vale para as outras ocasiões tentadoras. Estando diante daquela
multidão ávida por presenciar um feito extraordinário, Jesus não
poderia 'cair na tentação' de demonstrar sua condição divina
apenas para ser aplaudido por aquela gente, por vaidade ou orgulho
próprio. Ao contrário, quando ele fazia algum milagre, proibia o
favorecido de sair contando pra todos, porque não era isso o que ele
pretendia. Os fariseus ficavam o tempo todo a provocá-lo para ele
provar que era filho de Deus e assim eles acreditarem. Jesus nunca
fazia milagres nessas ocasiões, muito menos para provar nada perante
os fariseus, porque estes deviam acreditar na sua mensagem pelo
conteúdo dela, não pelas demonstrações pretidigiosas que Ele
fizesse.
Jesus nasceu de uma
família pobre e sempre viveu pobre. Ele mesmo dizia que os pássaros
tinham ninhos, mas Ele não tinha onde reclinar a cabeça. É claro
que ele tinha possibilidade de viver no maior luxo e conforto
possíveis, mas para viver como um homem comum, ele tinha de
renunciar a isso. Andava a pé sempre, somente na entrada em
Jerusalém tomou a liberdade de montar num jumento. As demais
andanças eram feitas a pé, como as pessoas comuns do seu tempo. Ele
não podia ceder à tentação da riqueza, vestir roupas finas, comer
iguarias sofisticadas e morar em palácios, ter escravos para
transportá-lo, como os fariseus pensavam que seria o Messias
esperado por eles. Mesmo depois de ressuscitado, Jesus comeu peixe
assado na praia, a mesma comida dos homens comuns.
Portanto, Jesus passou
40 dias a jejuar e meditar no deserto, antes de começar suas
pregações, para se conscientizar sempre mais da necessidade que ele
tinha de ser um homem igual aos outros, no jeito de morar, de vestir,
de andar, de se alimentar, de sofrer, de se alegrar, de falar, de
demonstrar seus sentimentos, etc, tudo como um ser humano comum. Ele
sabia desde o princípio e mais do que todos os discípulos o final
que o aguardava, os padecimentos atrozes que teria de suportar e Ele
estava ali para passar por tudo isso, para cumprir a promessa do Pai,
para a nossa salvação. Não foi sem motivo que ele suou sangue no
Getsêmani e pediu: se for possível, Pai, afasta de mim este
cálice... mas logo completou: não se faça a minha vontade, mas a
Tua. No seu jejum no deserto, tudo isso deve ter passado pela mente
de Jesus e para tudo isso ele estava se preparando, porque iria
iniciar a sua atividade primordial, aquela pela qual Ele tinha vindo
ao mundo e não podia fraquejar nem se esquivar.
Meus amigos, o que nós
testemunhamos foi que Jesus venceu todas as tentações. Passou por
todas as agruras que devia sofrer, enfrentou todas as dificuldades
que já sabia iriam acontecer e, por fim, triunfou. Ao deixar em
segundo plano sua condição divina e viver como um homem comum,
Jesus veio nos mostrar que nós, homens comuns, também podemos e
devemos estar acima das nossas tentações, que são bem mais brandas
do que as que Jesus suportou, e além de tudo, ainda temos o seu
exemplo e a sua graça para nos ajudarem. Então, não fiquemos a
atribuir a Satanás as 'tentações' e justificando que a carne é
fraca... A fonte das nossas tentações são as nossas fraquezas, a
nossa imperfeição, o nosso orgulho, a nossa vaidade e,
principalmente, a nossa sede de poder, de ter sempre mais, de querer
sempre mais. Enquanto isso, esquecemos do nosso irmão que precisa da
nossa ajuda e tem direito àquilo que nós temos de sobra. Aquilo que
nós temos em excesso ou em duplicidade não nos pertence, pertence
ao nosso irmão necessitado. Lembro-me agora do refrão de uma música
antiga, dos anos 60, daquele LP que tinha como título “uma
mensagem em cada canção”. Esse refrão dizia assim: como posso
ser feliz, se ao pobre meu irmão eu fechei o coração, meu amor eu
recusei. A aceitação do irmão é a melhor forma de demonstrar que
nós vencemos as nossas tentações.
Que o Mestre nos ensine
sempre e nos dê sempre força para superarmos as nossas tentações
de cada dia.
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