COMENTÁRIO LITÚRGICO
– 26º DOMINGO COMUM – RELIGIÃO E IGREJAS – 30.09.2012
Caros Confrades,
A liturgia deste 26º
domingo nos propõe para a reflexão um tema sempre atual e complexo,
capaz de suscitar as mais acaloradas polêmicas: a dualidade entre os
conceitos de religiosidade ou religião e de igrejas ou agremiações
religiosas. Na semana que passou, este tema foi objeto de uma
mensagem que circulou no grupo. Observemos de que modo a liturgia nos
coloca este assunto.
A primeira leitura,
retirada do livro dos Números (11, 25-29), narra um episódio
ocorrido logo que os hebreus, em fuga do Egito, chegaram ao monte
Sinai. Depois de vários meses de caminhada, comendo perdizes, maná
e frutos do deserto, o povo estava descontente, com saudade da comida
que tinham no Egito, onde comiam carne fresca e legumes e começaram
a murmurar contra Moisés. Então, Javeh desceu da nuvem e mandou
Moisés separar 70 homens dentre os mais idosos do povo para formarem
uma espécie de 'conselho' de anciãos. Moisés fez isso e, diz o
livro dos Números, que Javeh “Retirou
um pouco do espírito que Moisés possuía e o deu aos setenta
anciãos. Assim que repousou sobre eles o espírito, puseram-se a
profetizar, mas não continuaram.”
(11, 25). Este trecho traz, ao mesmo tempo, um enigma e uma
curiosidade. Diz que os anciãos começaram a profetizar mas não
continuaram, sem explicar o motivo disso, deixando para nós a
interrogação. Dá a entender que apenas dois deles (Eldad e Medad)
continuaram profetizando, também sem esclarecer o motivo. De todo
modo, o hagiógrafo não diz que o conselho foi desfeito. E nós
sabemos, pela tradição, que o conselho dos anciãos continuou a
funcionar junto ao povo, eram uma espécie de senadores que
auxiliavam o dirigente. Há inclusive uma tradição muito antiga
afirmando que a primeira tradução da Bíblia (antigo testamento) do
hebraico para o grego foi feita por este conselho de setenta anciãos,
sendo conhecida como o a 'tradução dos setenta' ou Septuaginta.
Mas o que mais nos
interessa aqui nesta narrativa é a sua sequência, quando diz que
Josué, ajudante de Moisés e pretenso futuro chefe do povo, ficou
preocupado com os dois (Eldad e Medad) que continuaram a profetizar,
provavelmente receando que isso poderia ameaçar o seu futuro posto.
Então, Josué pediu a Moisés que ordenasse que eles dois parassem
de profetizar, ao que Moisés respondeu: 'Tens
ciúmes por mim? Quem dera que todo o povo do Senhor fosse profeta, e
que o Senhor lhe concedesse o seu espírito!' (11,29).
Nesse
mesmo sentido, segue a narrativa do evangelho de Marcos (9, 38-43),
quando os discípulos vieram dizer a Jesus: “'Mestre,
vimos um homem expulsar demônios em teu nome. Mas nós o proibimos,
porque ele não nos segue'. Jesus disse: 'Não o proíbais, pois
ninguém faz milagres em meu nome para depois falar mal de mim. Quem
não é contra nós é a nosso favor.”
Os discípulos certamente achavam que somente a eles, do grupo de
seguidores próximos de Jesus, era dado o poder de expulsar demônios,
mas Jesus fá-los ver que o Espírito sopra onde quer e ninguém pode
inibir a ação do Espírito em sua liberdade total.
Meus
amigos, nós sabemos que Jesus tinha centenas de seguidores à
distância, anônimos, que ouviam suas pregações e o acompanhavam
pelos caminhos do seu ministério, embora não fizessem parte do
seleto grupo dos doze. Isso demonstra por que motivo, após a morte
de Jesus, quando os discípulos começaram a pregar a boa nova, houve
logo muitas adesões. Obviamente, os fariseus e os adeptos ferrenhos
do judaísmo tradicional não acreditavam em Jesus, mas o povo a quem
Jesus se dirigia, aqueles mesmos para os quais Ele fez vários
milagres, inclusive fatos de grande abrangência, como foi o caso da
transformação de água em vinho, nas bodas de Caná, como também o
conhecido episódio da multiplicação dos pães. Isso sem falar nos
inúmeros milagres de alcance mais restrito, curando doentes de
diversos males, restituindo a visão aos cegos, dando mobilidade aos
paralíticos, até ressuscitando pessoas, tudo isso se transformava
em boatos que iam correndo de boca em boca e produzindo uma legião
de admiradores de Jesus entre o povo simples.
Quando
Jesus repreendeu os discípulos que haviam 'proibido' aqueles que não
eram do grupo, para que não expulsassem demônios, era como se Jesus
estivesse antevendo os diversos movimentos religiosos que iriam
surgir, no futuro, os diversos 'missionários' que se apresentariam
em nome dele, prometendo curas e arrebanhando grupos mais ou menos
numerosos de seguidores. Em outras palavras, o que Jesus propunha era
uma religião enquanto modo de vida, Ele não mandou que fosse
fundada uma 'organização' estruturada com cargos e hierarquias,
portanto, Ele não mandou que se constituíssem 'igrejas'. Estas
foram surgindo de forma espontânea, com a reunião de fiéis em
redor de um líder. De início, esse líder era um dos apóstolos,
depois passou a ser uma pessoa a quem eles delegavam este poder,
através da 'imposição das mãos' (ordenação), e assim foram
sendo criados os vários 'cargos' internos: diáconos, sacerdotes,
bispos, estruturando-se aos poucos uma hierarquia. Nos primeiros
séculos, o que havia era essas 'ekklesias' (comunidades) de irmãos
unidos pelo evangelho. A organização burocrática mais genuína
começou a surgir com a aproximação e até uma certa confusão com
a administração romana, pois até as designações de paróquias e
dioceses eram similares às divisões do império romano.
Isso
lança o polêmico tema sobre a autenticidade e veracidade das
diversas entidades que se apresentam como 'igrejas de Cristo'. A
Igreja Católica reivindica o reconhecimento de ser a verdadeira
organização que continua a tradição dos Apóstolos, de forma
ininterrupta desde os primeiros séculos, e assim nós cremos. Os
diversos líderes dissidentes dos primeiros séculos não lograram
constituir novas 'igrejas' porque foram simplesmente exterminados
antes que isso acontecesse. O primeiro que conseguiu escapar desse
destino foi Lutero, porque foi protegido pelos príncipes alemãos
descontentes com o Papa, e assim foi a partir de Lutero que começaram
a surgir outras 'igrejas' diferentes da 'católica romana', as quais
nunca pararam de proliferar até os dias de hoje.
A
questão básica, portanto, é: qualquer 'igreja' reproduz o ideal
religioso proposto por Cristo? Ou somente uma delas, no caso a Igreja
Católica Romana? Ou alguma outra 'igreja' também pode ser
considerada autêntica igreja de Cristo? Tradicionalmente, a doutrina
católica sempre afirmou que 'fora da Igreja Católica não há
salvação'. Após o Concilio Vaticano II, essa doutrina foi bastante
flexibilizada, a partir do conceito de ecumenismo. Assim, embora a
Igreja Católica se considere a autêntica igreja de Cristo sucessora
daquela iniciada pelos Apóstolos, admite que em outras agremiações
que seguem os mandamentos evangélicos são também validamente
reconhecidas. Nesse contexto, tivemos um fato curioso. Quando houve o
grande 'cisma do ocidente', ou seja, a cisão entre as igrejas
cristãs orientais e a igreja de Roma, ambas se excomungaram
reciprocamente, cada uma reivindicando para si ser a autêntica
igreja de Cristo. Essa excomunhão, que durou séculos, foi
'levantada' num encontro entre o Papa Paulo VI e o Patriarca
Atenágoras, no final dos anos 60.
Sob
o aspecto jurídico, a Igreja Católica reconhece, no Direito
Canônico, os batismos aplicados pelas seguintes igrejas: igreja
ortodoxa, igreja vetero-católica, igreja anglicana, igreja luterana,
igreja metodista, igreja presbiteriana, igreja batista, igreja
congregacionista, igreja adventista, assembléia de Deus (fonte:
CNBB, doc.21). Ora, se a Igreja Católica reconhece os batismos
realizados nessas igrejas, então as reconhece como seguidoras
autênticas da doutrina cristã. De acordo com o Código de Direito
Canônico, uma pessoa que tenha sido batizado em uma dessas igrejas,
se se converter ao catolicismo, o batismo nelas recebido é válido,
será apenas registrado nos livros próprios, não será necessário
batizar-se novamente.
Numa
perspectiva mais ampla, podemos admitir que alguém possa,
individualmente, seguir os ensinamentos de Cristo, mesmo sem
pertencer a nenhuma igreja. Nesse caso, teríamos na prática a mesma
situação da repreensão que Cristo fez aos discípulos: não lhos
proibais, porque não está contra nós, está conosco. E assim,
podemos concluir que a fé em Cristo é vivenciada, de modo mais
apropriado, junto a uma comunidade eclesial, de acordo com a crença
que cada um possui. O importante mesmo é a pureza do coração e a
retidão da consciência, a fidelidade ao ensinamento de Cristo e a
demonstração prática da sua vivência cristã. Já o inverso não
será considerado válido, ou seja, pertencer a uma igreja e
frequentá-la regularmente, porém sem que isso se transforme em
ações e atitudes coerentes com a fé publicamente professada.
Que
o Divino Mestre nos ajude a sermos fiéis ao nosso compromisso, para
que a nossa religião não seja apenas da boca pra fora, mas brote
verdadeiramente do nosso coração.