COMENTÁRIO LITÚRGICO
– 24º DOMINGO COMUM – O SERVO SOFREDOR – 16.09.2012
Caros Confrades,
Na liturgia deste 24º
domingo comum, está em destaque a figura do servo sofredor,
recordando os versos de Isaías (na verdade, o deutero Isaías), que
preconizava o futuro sofrimento do Messias. Outro tema interessante
nesta liturgia, relacionado com o anterior, é a carta de São Tiago,
na qual ele fala acerca da fé operante, isto é, a fé que se
transforma em obras de misericórdia com os que sofrem.
Na primeira leitura
(Isaías, 50, 5-9), temos os versos clássicos do servo sofredor.
Conforme já expusemos em comentários anteriores, a partir do
capítulo 40 de Isaías, os biblistas denominam 'deutero Isaías',
isto é, o segundo Isaías, pois esses textos foram escritos pelos
discípulos de Isaías, complementando o trabalho do Mestre,
igualmente inspirados. Sabe-se disso porque a crítica histórica
demonstrou que são mencionados fatos que ocorreram após a morte de
Isaías, portanto, não poderiam ter sido relatados pelo próprio.
Ali estão esses antológicos cânticos do servo sofredor, que são
selecionados para leitura na Semana Santa, mas estão também na
liturgia de hoje, por causa da leitura do evangelho de Marcos, onde
Cristo narra a sua futura paixão.
Conforme também já
foi explicado aqui, a segunda parte do livro de Isaías foi composta
durante o cativeiro da Babilônia, então são frequentes as
referências ao sofrimento do povo, junto com as exortações de
penitência e de confiança em Javeh, que na hora certa virá
libertar o Seu povo. Assim, a figura do servo sofredor, num primeiro
momento, refere-se aos judeus em situação de sofrimento durante o
exílio, incentivando-os a não se deixarem sucumbir pelo sofrimento,
pois “o
Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o
ânimo, conservei o rosto impassível como pedra, porque sei que não
sairei humilhado.” Por isso, “não desviei o rosto de bofetões e
cusparadas.” Dentro
da interpretação trans-histórica, o servo sofredor do exílio
babilônico é a premonição do futuro Messias, que irá
personificar de forma plena esta figura, através da sua paixão e
morte, para nossa redenção. O cativeiro da Babilônia aconteceu
seis séculos antes de Cristo, sendo impressionante a riqueza de
detalhes com que seu autor descreve o futuro sofrimento do Messias.
Neste
contexto de sentido, se enquadra a leitura do evangelho de Marcos (8,
27-35), onde o evangelista narra os episódios da vida de Cristo que
antecedem sua ida a Jerusalém, onde viria a ser sacrificado. Após
três anos de catequese diária com os discípulos, Jesus vendo
aproximarem-se os seus dias finais, faz uma espécie de teste para
saber como está o entendimento do Seu grupo acerca da Sua pessoa.
Ele começa por longe: quem as pessoas dizem que eu sou? Jesus não
queria saber o que o povo pensava dele, mas o que os discípulos
pensavam, mas pedagogicamente começou com uma pergunta bem genérica.
Eles responderam: uns dizem que é João Batista, outros que é Elias
ou algum dos profetas que ressuscitou. Então, Jesus vai direto ao
ponto: e vocês, o que dizem? Antes que alguém respondesse, Pedro
saiu na frente: Tu és o Messias. O evangelista Marcos encerra aqui o
diálogo de Cristo com Pedro. Mas no evangelho de Mateus, quando o
mesmo episódio é narrado (Mt 16, 17), a conversa entre ambos
continua, sendo aquele momento em que Cristo diz a Pedro que ele é a
pedra sobre a qual será edificada a Igreja. Porém, o evangelista
Marcos é mais econômico nas palavras, e encerra o diálogo nesta
ocasião, proibindo os discípulos de saírem por aí espalhando que
Ele é o Messias.
A
propósito desse diálogo, algumas considerações merecem ser
feitas. 1. Primeiro, em relação à tradução portuguesa. No texto
oficial da CNBB, lido na missa, está escrito: tu és o Messias,
porém no texto latino da Vulgata de São Jerônimo, está escrito:
tu es Christus, igual como está no texto original do grego
(Krystos). Embora nós saibamos que se trata apenas de uma distinção
vocabular, pois em essência a mensagem não se modifica, na minha
opinião, por uma questão de respeito ao original e à tradução,
deveria constar como São Jerônimo escreveu: Tu és o Cristo. 2.
Segundo, a atitude de Jesus em mandar Pedro se calar e exortar os
discípulos que não saíssem espalhando isso por aí afora, deixa a
impressão de que Ele não gostou do que ouviu, quando era de se
esperar o oposto, ou seja, que os discípulos haviam aprendido a
lição. Mas acontece que eles não aprenderam a lição
corretamente. Andar espalhando que Ele era o Messias poderia ter um
efeito devastador no meio do povo, por causa da expectativa que a
cultura judaica tinha em torno da figura do messias, o libertador do
povo, e Jesus não queria que as pessoas o procurassem com esta
intenção, porque isso teria uma conotação política muito forte e
a missão de Jesus era bem outra. 3. Por que razão o evangelista
Marcos e também Lucas (9, 20) são tão abreviados nesta passagem,
enquanto Mateus (16,17) descreve um diálogo bem mais longo? A
explicação está nas fontes que cada evangelista pesquisou. Visto
que os três evangelhos sinóticos foram escritos em locais
diferentes e em épocas diferentes, nem todos os evangelistas tiveram
acesso aos mesmos documentos. Na verdade, os evangelhos sinóticos
têm esse nome porque foram escritos fazendo uma espécie de sinopse
de diversos outros documentos esparsos que circulavam pelas
comunidades cristãs primitivas. Nem todos esses textos existiam em
todas as comunidades e assim nota-se nas narrativas dos três
evangelhos que alguns fatos se repetem, outros aparecem nuns e não
noutros e ainda alguns detalhes aparecem em alguns e não em outros.
Pois
bem, voltando ao assunto de Jesus ter repreendido Pedro e proibido os
discípulos de falarem que Ele era o Messias. Jesus percebeu que os
discípulos estavam com uma ideia parcialmente errada a respeito
dele, porque só estavam percebendo o 'lado bom' da história, não
estavam levando muito a sério aquelas indicações dadas diversas
vezes por Jesus de que ele teria de sofrer muito e morrer, para que a
sua glória se manifestasse. Parece que os discípulos pensavam que
Jesus estava falando aquilo como algo metafórico, que não iria
acontecer. Em suma, Jesus percebeu que eles não estavam conscientes
de que Ele era um servo sofredor, que o Messias previsto por Isaías
não seria um salvador glorioso e forte do ponto de vista material e
político, mas de um reino diferente, eterno, espiritual, que não
seria conquistado ao fio da espada, mas com o coração e na
obediência aos desígnios do Pai. Então, Jesus proibiu que eles
ficassem espalhando essa notícia, porque haveria um tempo próprio
para isso, após a sua morte e ressurreição. Daí que Ele foi
pacientemente explicar novamente: antes que Ele pudesse entrar na sua
glória, teria de ser preso, espancado, maltratado, torturado até a
morte, que Ele não iria reagir tal como dissera o Profeta, que
deveria passar por tudo isso, a fim de que a sua glória se
manifestasse. Assim, enquanto seguiam para Jerusalém, onde todas
essas coisas iriam acontecer, ele aproveitou a viagem para reciclar
outra vez essa lição fundamental, ou seja, a figura do Messias
estava associada ao servo sofredor de Isaías, não àquele protótipo
do guerreiro como foi Ciro, o libertador do povo cativo na Babilônia.
Era preciso que os discípulos entendessem essa diferença essencial,
sob pena de eles confundirem as figuras do messias no antigo e no
novo testamentos.
Jesus
falava essas coisas especialmente por causa de Judas Iscariotes,
porque dentre os discípulos, era ele o que mais ansiava pela 'hora
fatal' em que Jesus iria dar o grande golpe e comandar uma revolta
gigantesca contra os romanos, para expulsá-los do território judeu.
Judas achava que Jesus estava blefando quando falava dos sofrimentos
pelos quais iria passar, quem sabe, Judas ficava repassando para os
outros discípulos que isso era só conversa e Jesus, que sabia o que
se passava no coração dele e de todos, estava dando a Judas mais
esta oportunidade de repensar os seus planos. Judas, porém, era um
cabeça dura, um radical que só pensava em planos materiais, ele via
no grupo do discípulos os futuros comandantes de um grande exército
popular, que retornaria a liberdade ao povo judeu. Até a última
hora, quando ele levou os soldados romanos para prenderem Jesus,
Judas ainda tinha essa esperança de sublevação.
Meus
amigos, nós não devemos ser ingênuos como os demais discípulos de
Jesus, nem também ser radicais como Judas. Devemos estar atentos à
mensagem de Cristo com o coração aberto e a mente solícita,
procurando descobrir qual a missão que ele espera de cada um de nós.
A oração, a meditação e as obras de misericórdia são os
recursos que temos para perceber isso. Que o divino Mestre nos
ilumine nas nossas tarefas de cada dia, para que estejamos
conscientes dos nossos deveres de seguidores da verdadeira mensagem
cristã, não daquilo que nós caprichosamente teimamos em aceitar.
Por
questão de espaço, para não me alongar demais, deixo para comentar
a carta de São Tiago em outra oportunidade.
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