COMENTÁRIO LITÚRGICO
– 27º DOMINGO COMUM – O MATRIMÔNIO CRISTÃO – 07.10.2012
Caros Confrades,
Neste 27º domingo
comum e primeiro domingo do mês de outubro, escolhido pela CNBB como
mês missionário, o tema da liturgia enfoca o matrimônio cristão,
fundamentando nas leituras do Gênesis e do evangelho de Marcos.
Na primeira leitura,
retirada do livro do Gênesis (2, 18-24), temos a conhecida narração
lendária da denominação dos animais, feita por Adão, seguida de
outra narração também muito enraizada na nossa cultura, que é a
da criação da mulher a partir da costela do homem. Naturalmente,
são duas narrativas de sentido figurado pois, embora no passado se
aceitasse que fossem descrições de fatos acontecidos, na
hermenêutica bíblica contemporânea entende-se como histórias
narradas com um conteúdo pedagógico, para ensinamento do povo
hebreu. Na verdade, são duas lendas.
A fim de evitar
qualquer mal entendido, peço a atenção de vocês para o
significado da palavra lenda. Na nossa língua e cultura, tem-se por
lenda uma narrativa inventada por alguém, sem um fundamento de
verdade. Mas não é nesse sentido que os estudiosos da Bíblia
entendem esse gênero literário. Trata-se de leituras edificantes,
leituras que devem ser lidas por todos porque contém uma mensagem
valiosa. Etimologicamente, a palavra lenda vem do vocábulo latino
'legenda', que quer dizer literalmente coisas que devem ser lidas,
temas cuja leitura é obrigatória. É nesse sentido que eu escrevi
acima que o texto do Gênesis incluído na liturgia de hoje contém
narrações lendárias.
O objetivo dessa
legenda como leitura obrigatória não é propriamente atestar um
fato verídico, uma ocorrência, mas servir-se de uma pequena
história com a finalidade de transmitir uma mensagem. Nesse sentido,
a legenda de que Deus chamou Adão e mandou que ele desse nome aos
animais significa, na cultura hebraica, o poder ou o domínio que o
homem devia ter sobre os outros seres vivos. Para a cultura hebraica,
dar o nome significava poder de mando sobre o nominado, quem dá o
nome a algo ou a alguém tem autoridade sobre aquilo ou aquele. No
caso, ao dar nomes aos animais, o personagem Adão simbolizava todos
os homens em relação aos animais, ou seja, a superioridade do homem
e o poder dado por Deus para que o homem utilizasse os animais para
se alimentar e para auxiliar no trabalho de transporte de objetos e
no aproveitamento de sua força física.
De acordo com a
descrição bíblica, Adão não encontrou no meio desses animais
“uma auxiliar semelhante a ele” (Gn 2, 20). Esse detalhe tem a
finalidade pedagógica de ensinar ao povo que a mulher tem uma
característica diferente no seu relacionamento com o homem, que faz
dela um ser distinto dos animais. Sim, porque nas culturas daquele
tempo, era comum a mulher ser considerada propriedade do homem, um
objeto do qual ele podia dispor como quisesse. O autor bíblico está
ensinando que não é assim, mas que a mulher deve receber do homem
um tratamento diferente dos animais, porque ela é uma outra espécie
de 'auxiliar'. Neste aspecto, a pedagogia bíblica era mais avançada
do que as culturas dos povos do seu tempo, as quais consideravam a
mulher submissa e escrava do homem.
De que modo o autor
bíblico explica essa diferença? Por que a mulher deve receber um
tratamento diferente? Por que os animais não são semelhantes ao
homem, mas a mulher é semelhante? Para explicar isso, criou-se a
outra legenda do sono de Adão e da retirada de sua costela. Observem
bem que não há verossimilhança nisso, porque se assim fosse,
haveria um número diferente das costelas do homem no lado esquerdo
em relação ao direito, e não há. O texto bíblico diz que o lugar
de onde teria sido retirada a costela foi preenchido com carne (Gn 2,
21). Ora, se nós fôssemos tomar essa narrativa ao pé da letra,
como um fato ocorrido, os homens teriam uma costela a menos de um dos
lados do esqueleto, o que não é verdadeiro.
Qual seria, então, o
objetivo dessa narrativa simplória e incoerente? Ela visa demonstrar
que a mulher é feita do mesmo 'material' que o homem, portanto, ela
é semelhante a ele. Nesse momento, o texto bíblico inclui uma
curiosa afirmação de Adão (Gn 2, 23): “Ela
será chamada 'mulher', porque foi tirada do homem'.”
Na nossa língua, essa frase tem um conteúdo enigmático e
dogmático, porque não faz sentido. Quem tem a ver 'mulher' porque
foi tirada do homem? É, mas na língua hebraica, o autor bíblico
faz uma espécie de trocadilho que esclarece bem a mensagem
pretendida. A palavra 'homem' diz-se em hebraico 'ish' e a palavra
mulher diz-se 'isha'. Então, aí fica explicado: ela foi chamada
mulher (isha) porque foi tirada do homem (ish). Daí que Adão teria
dito: agora sim, esta é osso dos meus ossos e carne da minha carne.
Em outras palavras, a legenda bíblica está ensinando a isonomia que
deve existir entre homens e mulheres, não havendo hierarquia de
gênero.
Seria então o caso de
se perguntar: por que na cultura ocidental tradicional, a sociedade
sempre reconhecia no homem uma superioridade sobre a mulher? Por que
somente após o movimento feminista, as mulheres conquistaram o
direito de igualdade social perante os homens, tanto na profissão
como na família? Aí o motivo foi outro, no meu modo de entender.
Vou explicar.
A cultura hebraica
original, que reconhecia a semelhança entre homens e mulheres,
recebeu a influência cultural do mundo romano, seja pelo fato de que
os romanos dominaram o território palestino (na época de Cristo, os
hebreus estavam sob a dominação dos romanos), seja porque o
cristianismo se desenvolveu em Roma e nos territórios romanos,
tornando-se inevitável as influências recíprocas entre as duas
culturas. Então, a cultura romana, que considerava as mulheres
inferiores aos homens, terminou subvertendo a cultura hebraica da
semelhança, passando a prevalecer o domínio masculino. Essa
tradição modificada é a que nos foi transmitida pela colonização
européia, gerando a tendência machista que é marcante na nossa
tradição cultural.
Nós podemos ver uma
referência a isso no evangelho de Marcos (10, 5), quando Cristo
censura os fariseus acerca do divórcio que, segundo eles, teria sido
permitido por Moisés. Disseram eles que Moisés havia instituído
uma espécie de 'carta de repúdio' que o homem podia fazer para
despedir a mulher. Vejam bem, o homem podia fazer isso com a mulher,
mas a mulher não podia fazer o mesmo com o homem. Foi quando Cristo
discordou, dizendo: desde o começo da criação, Deus os fez homem e
mulher (ou seja, semelhantes) e por isso os dois serão uma só
carne, através do matrimônio. E arremata taxativamente: o que Deus
uniu, o homem não separe. (Mc 10, 9)
Da leitura desse texto,
podemos também concluir que não foi Moisés o autor do livro do
Gênesis, como durante muito tempo se pensou. Vejam só. Os fariseus
afirmaram que Moisés havia permitido o divórcio por iniciativa
masculina, isto é, está embutida aí a ideia da superioridade do
homem sobre a mulher. Contudo, no livro do Gênesis, a legenda da
costela ensina o oposto disso, ou seja, a igualdade entre homens e
mulheres. Como é que Moisés poderia ter escrito uma coisa e outra?
Como ele poderia ter ensinado a isonomia entre homens e mulheres e,
ao mesmo tempo, ter admitido uma carta de repúdio? Alguns irmãos
separados interpretam isso como sendo somente em caso de adultério.
Mas vemos na leitura do evangelho de Marcos que Cristo não faz
nenhuma exceção ao rejeitar a carta de repúdio, dizendo
simplesmente que quem se divorciar de sua mulher e casar com outra
cometerá adultério, e reciprocamente a mulher também cometerá.
Nesse contexto, meus
amigos, todos já devem estar se lembrando dos casos de 'segunda
união matrimonial' entre católicos, que é um dos grandes dilemas
da teologia católica nos dias de hoje. É um problema pastoral
enorme que os padres enfrentam no dia a dia de suas comunidades e
isso não ocorre apenas com pessoas que possam ser chamada de
levianas. Ocorre também com pessoas responsáveis e bem
intencionadas. Essa é uma questão que a doutrina oficial vem
'empurrando' faz tempo, sem saber como encarar esse problema, que em
tese contraria o ensinamento de Cristo no evangelho de Marcos que
lemos hoje, onde Cristo foi taxativo acerca do divórcio.
Eu, particularmente,
tenho uma sugestão para isso, que exponho agora pra vocês,
interpretando as próprias palavras de Cristo. Quando Ele disse: o
que Deus uniu, o homem não separe, podemos entender que os próprios
cônjuges não podem fazer isso, nem outra autoridade humana. Mas a
Igreja exerce uma autoridade divina, delegada que foi pelo próprio
Cristo, através do poder de ligar e desligar. Bem, a Igreja poderia
utilizar o seu poder de 'desligar' para reconhecer o fracasso de
certas uniões matrimoniais, após o minucioso estudo de cada caso, e
assim solucionar os problemas existenciais de muitos católicos, que
vivem nessa crise. Isso, ao meu ver, não entraria em conflito com o
que Cristo ensinou, porque não é o homem quem faz, mas a Igreja
agindo em nome de Deus. Quem sabe, um dia os teólogos católicos
venham a aceitar essa interpretação das palavras de Cristo.
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