COMENTÁRIO LITÚRGICO
– 4º DOMINGO COMUM – 03.02.2013 – A CARIDADE E A PROFECIA
Caros amigos,
Após três semanas de
intervalo, em decorrência de viagem e dificuldade de acesso à
internet, volto com as nossas reflexões semanais, animado por
mensagens recebidas dos generosos confrades, instando-me a continuar
a fazê-las. Fico deveras agradecido.
Neste quarto domingo
comum, a liturgia traz para nossa reflexão dois temas interessantes:
o hino da caridade, uma inspirada página do apóstolo Paulo a
Coríntios (1Cor 12,31) e a vocação para a profecia, nas pessoas de
Jeremias e do profeta que falava em nome próprio, Jesus Cristo.
Nesse antológico
texto, que já foi transformado em música popular, Paulo foi de uma
felicidade muito grande, ao tecer louvores à caridade. No texto
grego, Paulo usa o vocábulo “agape”, que é uma das palavra
traduzidas por “amor”, mas como palavra amor é polissêmica em
português, para evitar uma compreensão equivocada do seu sentido,
costuma-se traduzir por 'caridade'. Apenas para esclarecer aos
confrades, na língua grega, utiliza-se a palavra “eros” para
significar o amor carnal, aquele voltado para a satisfação dos
sentidos corporais, quase sempre numa perspectiva egoista,
individualista e interesseira, enquanto a palavra “agape” é
utilizada para significar o amor doação, desinteressado, amor que
quer o bem do outro e não o seu próprio, daquele que é capaz de
tudo para fazer feliz o seu semelhante. É o amor compartilhado, que
se perfaz na entrega de si e que se plenifica com a felicidade do(a)
amado(a). Como podem ver, não há uma palavra em português que
carregue todo esse significado, nem mesmo a palavra 'caridade' tem
essa conotação total. No entanto, é o vocábulo que mais se
aproxima do significado da palavra grega “agape”, embora na nossa
língua a palavra 'caridade' seja também variadamente polissêmica.
Pois bem, no famoso
'hino à caridade', Paulo adverte para a verdadeira expressão dessa
forma de amor, que não se limita a meras atitudes externas, mas deve
unir o interior com o exterior, para alcançar o seu pleno
significado. Se eu falasse todas as línguas, isto é, se eu fosse um
exímio comunicador, mas sem a caridade, seria igual a uma sineta que
toca; se eu tivesse toda ciência e toda fé, ou seja, se eu fosse um
sábio extraordinário e um crente ardoroso, mas sem a caridade eu
nada seria. Se eu me desfizesse de todos os meus bens a serviço dos
pobres, ou seja, se eu praticasse a filantropia para ser elogiado
pelas pessoas, mas não tiver a caridade, de nada isso serve. E por
aí segue. Meus amigos, que fantástico desafio Paulo põe diante de
nós. De nada valem as nossa devoção, nossos jejuns, nossas obras
de misericórdia, nossa pregação, nossas leituras da Bíblia,
nossos grupos de oração, nossas participações na missa e nos
sacramentos, nosso dízimo pago para o culto divino, nossos trabalhos
pastorais, etc, se tudo isso não vier de uma convicção interior,
de um ato original de entrega plena e total do nosso próprio ser a
Deus, de um compromisso firme e permanente de seguir o ensinamento de
Cristo. Se tudo o que fizermos tiver como motivação só o
cumprimento do dever, a tradição familiar ou social, o peso na
consciência ao ver um irmão ou irmã necessitado(a), ou pior ainda,
se for para mostrar-se aos outros, se for para angariar elogios e
fama na comunidade, meus amigos, estaremos sendo o que Paulo chama de
'címbalo que tine', ou seja, um corpo sem espírito, que não
funciona por si, mas manipulado por uma força externa.
E passa a discorrer
sobre as qualidades do amor-ágape: “A
caridade é paciente, é benigna; não é invejosa, não é vaidosa,
não se ensoberbece; não faz nada de inconveniente, não é
interesseira, não se encoleriza, não guarda rancor; não se alegra
com a iniqüidade, mas se regozija com a verdade. Suporta tudo, crê
tudo, espera tudo, desculpa tudo.
” (1Cor 13, 4-7) Se nós observamos bem, Paulo está descrevendo a
personalidade de Jesus Cristo, está colocando em conceitos aquilo
que Jesus praticou em toda a sua vida e nos deixou como exemplo. Ele
é a 'caridade' (amor-ágape) em pessoa, o modelo acabado e perfeito
desta virtude. Não era à toa que entoávamos com frequência aquela
jaculatória, que todos ainda devem se lembrar: “Deus charitas est
et qui manet in charitate in Deo manet et Deus in eo”. A caridade é
o próprio Deus. Daí porque, Paulo conclui: a caridade nunca
acabará. Todas as profecias, todas as palavras, promessas e virtudes
acabarão, a esperança desaparecerá e a própria fé se extinguirá
um dia, mas a caridade permanecerá para sempre. Fica fácil de
compreender o porquê disso: a caridade é o próprio Deus e estando
na caridade, estamos nele.
Passo agora ao assunto
da vocação à profecia. Em primeiro lugar, o exemplo de Jeremias,
lido na primeira leitura (Jr 1, 4). Primeiramente, explico o sentido
da palavra 'profeta'. Deriva do grego “prophetés”, que por sua
vez, é uma palavra ligada à raiz do verbo “phêmi”, que
significa 'dizer, proclamar'. A palavra 'prophetés' significa
'aquele que fala em nome de alguém', no caso da Bíblia, fala em
nome de Javeh. Jeremias foi aquele profeta que ousou desafiar Javeh
ao dizer: eu não vou mais falar em teu nome, porque todas as vezes
em que faço isso, sou ameaçado, sou humilhado, sou expulso, não
vou mais fazer isso. Então, o próprio Jeremias confessa: eu não
consigo ficar calado, há um fogo abrasador dentro de mim que me
impele a profetizar, mesmo que eu não queira. Foi aí que Javeh o
tranquilizou: “ põe a roupa e o cinto,
levanta e comunica-lhes tudo o que eu mandei dizer … eu
te transformarei hoje numa cidade fortificada, numa coluna de ferro,
num muro de bronze contra todo o mundo,
” (Jr 1, 18) E Jeremias se enche de coragem e vai cumprir a sua
missão, enfrentando todos os riscos decorrentes dela.
A nossa vocação
profética também nos coloca diante de desafios semelhantes e não
podemos nos acovardar. O exemplo de Jeremias é uma motivação para
nós. Ai de mim se eu não anunciar o evangelho, disse Paulo
parafraseando Jeremias. (1Cor 9, 16) Cada um de nós, no exercício
da nossa missão de seguidor de Cristo e de Francisco, deve também
sentir dentro de si esse fogo abrasador que não permite que a nossa
voz se cale, que não deixemos passar uma ocasião para testemunhar a
nossa fé, para comunicar aos outros o ensinamento que recebemos de
Cristo. Os profetas de outrora falavam em nome de Javeh, nós hoje
falamos em nome de Cristo, que é a própria Palavra de Javeh
materializada e encarnada, que nos mandou para continuarmos a sua
missão, quando chamou os apóstolos e estes criaram as primeiras
'ekklesias' (comunidades), através das quais nós somos hoje
chamados ao mesmo apostolado.
E aqui passamos a
considerar a missão profética de Cristo, que não falava em nome de
Javeh, como os profetas antigos, mas falava em nome próprio, porque
Ele é a própria Palavra de Javeh. No evangelho do domingo passado,
cuja continuação lemos hoje, vemos o autotestemunho de Cristo,
quando ele se proclama o Messias, ao ler a passagem do profeta
Isaías, cap 61: (O Espírito do Senhor
Deus está sobre mim. E Ele me ungiu para pregar o evangelho. Para
resgatar o pobre da sua pobreza) e depois, fechando o livro,
acrescentou: hoje se cumpriu aquilo que foi dito pelo profeta. Foi
uma rara ocasião em que Cristo assumiu publicamente que Ele era o
Messias esperado. Alguns judeus o chamava de 'profeta', mas na
verdade, ele era mais que um profeta porque falava em nome próprio.
Mas os seus concidadãos tinham dificuldades em aceitar isso: como
pode? É o filho de José carpinteiro, como pode ser o Messias? E
ficavam esperando dele sinais extraordinários para que acreditassem,
o que Cristo se recusava a fazer.
Pode até parecer
estranha essa atitude de Cristo. Por que ele não dava logo os
“sinais” que eles tanto queriam e assim os convencia de uma vez?
Por que ficava se negando a fazer milagres em sua própria cidade? A
resposta é simples: Ele queria que todos acreditassem na sua
pregação, no seu testemunho, não em demonstrações de poder, em
exibicionismos. Jesus queria que eles cressem na Sua pessoa sem a
necessidade de ter de provar isso por meios miraculosos, porque isso
levaria a uma atitude de submissão da parte deles, não a uma adesão
consciente. Fazer um milagre para demonstrar poder era como
obrigá-los a acreditar e esse não era o Seu objetivo. A crença
devia ser fruto de uma decisão da vontade livre, não de uma
situação forçada. Ele esperava que os seus concidadãos, aqueles
que conheciam a sua família e O conheciam desde criança, fossem
capazes de enxergar n'Ele mais do que os olhos carnais mostravam, mas
isso não aconteceu. Ao contrário. Ficaram irritados e tentaram
linchá-los. E Jesus terminou fazendo um milagre diferente nessa
ocasião, como diz o evangelista Lucas (4, 30): passando pelo meio
deles, continuou o seu caminho. Ora, de que modo Jesus teria
conseguido se libertar de uma multidão irada, senão tornando-se
invisível a eles e passando pelo meio da turba sem que O vissem? No
entanto, mesmo assim, não perceberam o milagre nem acreditaram
n'Ele.
Meus amigos, para não
me alongar demasiado, concluo convidando todos a meditarem sobre a
nossa vivência da vocação profética, à qual fomos chamados pelo
batismo, e que em nós se consolidou com a formação recebida nas
dependências seráficas.
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