COMENTÁRIO LITURGICO –
1º DOMINGO DA QUARESMA – AS TENTAÇÕES DE CADA UM – 17.02.2013
Caros Confrades,
A liturgia deste 1º
domingo da quaresma põe para nossa reflexão, como de costume, o
tema das tentações suportadas por Jesus Cristo, nos persuadindo e
incentivando a vencer as tentações de cada dia, do mesmo modo que
Jesus venceu as tentações que teve no deserto. Nas duas primeiras
leituras, o tema em destaque é a fé na dimensão da universalidade:
no texto de Deuteronômio, a fé do povo hebreu em Javeh; no texto de
Paulo a Romanos, a fé em Cristo, que congrega todos os crentes.
Apenas para recordar um
tema que já foi abordado aqui outras vezes, temos nas leituras de
Deuteronônio e no evangelho de Lucas a simbologia do numero 40.
Dentro do cenário bíblico, o número 40 aparece sempre antecedendo
a ocorrência de um fato muito importante. Não significa
literalmente a passagem de 40 dias ou meses ou anos, mas o tempo
oportuno para o poder de Deus se manifestar através de alguma obra
grandiosa. Na liturgia moderna, a simbologia dos 40 dias é observada
no período que antecede a Páscoa (quaresma) e no período que vai
da Ressurreição até a Ascensão de Jesus.
Na primeira leitura
(Deuteronômio, 26, 4-10), o texto traz as instruções de Moisés ao
seus auxiliares, porque ele já sabia que não chegaria até a terra
prometida, apenas a veria de longe. Possivelmente, a instrução
seria para Josué, que foi o sucessor de Moisés no comando do povo,
na reta final. Quando eles chegassem à terra prometida, deviam levar
ao altar do Senhor em oferenda os primeiros frutos da terra e ali
professar o agradecimento de todo o povo pela condução que tiveram
durante a peregrinação pelo deserto, tempo em que tiveram de
enfrentar um sem número de desafios físicos e espirituais, tendo o
Senhor os conduzido sempre e constantemente perdoado as infidelidades
deles. O livro tem esse título (deuteros+nomos=segunda lei) porque
se trata de um compêndio encontrado casualmente numa escavação no
templo e que repete em parte normas já contidas na Torah, os cinco
primeiros livros. Este livro é um verdadeiro 'código de legislação'
hebraica, tantas e tão pormenorizadas são as prescrições e os
rituais descritos. É uma verdadeira compilação do direito hebreu,
que não fazia distinção entre normas religiosas e normas civis,
porque a sua organização era um estado teocrático.
Nos dias de hoje, temos
ainda a sobrevivência dos estados teocráticos no Irã, no
Afeganistão, além de outros países orientais islâmicos, onde as
pessoas podem ser presas por blasfêmia (transgressão religiosa em
geral). Um repórter perguntou a um nativo afegão, quando em viagem
por lá no período conhecido como Ramadã, tempo em que os islâmicos
fazem jejum obrigatório, o que aconteceria se ele (repórter) fosse
visto 'quebrando o jejum'. O nativo respondeu: as pessoas reconhecem
que o senhor é um estrangeiro e não farão nada, mas se for um de
nós, eles chamarão a polícia. Curioso nisso, que eu não sabia, é
que o jejum é apenas durante o dia, porque após o por do sol, as
pessoas podem ser alimentar à vontade. Existem os locais já
conhecidos pela população onde são servidas refeições gratuitas
após o por do sol, porque evidentemente ninguém aguenta passar o
mês sem comer.
Temos na segunda
leitura (Paulo a Romanos, 10, 8-13), a lição paulina sobre a
universalidade da fé em Cristo: é irrelevante se alguém é judeu
ou grego – e nós podemos acrescentar: europeu ou americano,
africano ou indiano – o que importa é crer em Jesus com o coração
e confessar essa fé com a boca, pois todo que nEle crer não ficará
confundido. Quando Paulo fez essa afirmação, pensava apenas no
mundo do seu tempo, mas por extensão, alcança todos nós. Foi
naquela polêmica que surgiu em Roma dos cristãos judaizantes, que
achavam que só podia ser cristão quem aderisse à lei de Moisés e
fizesse a circuncisão. Então, Paulo ensinou que o batismo cristão
supre e substitui todos os rituais da antiga lei. Roma, a grande
metrópole na qual o cristianismo se universalizou, era uma grande
babel daquele tempo, abrigando pessoas das mais diversas origens e
nacionalidades, consequentemente, dos mais diversos idiomas e
costumes. Foi o primeiro grande desafio enfrentado na pregação do
evangelho para os pagãos ou gentios, resolvido graças à
intervenção oportuna e sábia de Paulo.
A leitura do evangelho
de hoje, de Lucas 4, 1-13, repete a narração contida nos outros
dois sinóticos: após ter sido batizado por João Batista, o
Espírito conduziu Jesus ao deserto, onde ele jejuou durante 40 dias
e foi tentado por Satanás. Conforme já mencionei em comentário
similar no ano passado, retiremos da nossa mente aquele personagem
com chifres na cabeça e pés de bode, exalando enxofre, figura
produzida pelos pintores medievais. As tentações de Jesus
representam os 'perigos' que a sua natureza divina poderia significar
em situações de extrema pressão psicológica. Para cumprir os
desígnios do Pai e para cumprir o plano salvífico, Jesus precisava
passar por todo aquele padecimento enquanto pessoa humana. De fato,
nós sabemos que Jesus enfrentou diversos desafios, que para Ele
seriam facilmente resolvidos se usasse o poder divino, mas ele não
podia fazer assim. Foi uma espécie de treinamento que ele realizou
para comportar-se plenamente conforme a natureza humana.
Então, quais foram
mesmo as grandes 'tentações' de Jesus? 1. Transforma essas pedras
em pão... tentação do poder; 2. Eu te darei todos os reinos...
tentação da riqueza; 3. Joga-te daqui para baixo... tentação do
orgulho/vaidade. Quantas vezes, os fariseus tentaram Jesus para que
Ele realizasse um milagre na presença deles. Herodes foi um que
disse na cara de Jesus: “você é uma piada”, porque insistiu pra
Jesus fazer um 'milagrezinho' na presença dele (cf Lucas 9, 7 e 23,
6), e Ele nada disse. Portanto, se quisermos encontrar a figura de
satanás tentando Jesus, não busquemos essa no deserto, onde ele
jejuou, mas nos diversos fariseus que o tentaram em vão. O próprio
Judas, que certamente vira Jesus fazer vários milagres, não
conseguia acreditar que Ele fosse suportar todas aquelas humilhações
impostas pelos chefes dos sacerdotes e iria 'dar a volta por cima',
até pagou pra ver, mas perdeu a aposta. Desculpem-me, meus amigos,
porque talvez alguns não concordem com o que vou escrever, mas
muitas vezes, a figura de satanás é utilizada para encobrir nossas
próprias fraquezas e nossa personalidade imperfeita. As grandes
tentações que nos afetam não nos vêm de um agente exterior, mas
da nossa “trindade” interior: id, ego e superego (tomando
emprestada a terminologia de Freud).
Meus amigos, veio-me a
lembrança agora uma frase emblemática do filósofo austríaco
Edmund Husserl, que insistia sempre: “voltemos às coisas mesmas”.
Este apelo de Husserl corresponde ao início da filosofia
fenomenológica, por ele defendida, instruindo-nos a reconhecer e
valorizar as nossas próprias percepções e não procurarmos a todo
custo racionalizar os acontecimentos, buscar explicações lógicas e
racionais para tudo, através da generalização conceitual abstrata.
Trago esta frase para este contexto pela mensagem que ela encerra.
Encaremos de frente o nosso próprio ser, sem ocultações ou
subterfúgios. Voltemo-nos para nós mesmos e tenhamos coragem de
assumir nossas fraquezas, pois somente assim estaremos criando
condições de superá-las. Foi o que Jesus foi fazer no deserto:
refletir sobre ele mesmo, sobre sua condição divina e humana, sobre
a sua missão espinhosa e dolorosa da qual ele não podia se
esquivar. A literatura transformou essa autoanálise em tentação e
os subterfúgios inconscientes dele na figura do tentador. Mas nós
devemos ir além dessa metáfora tradicional. Quando fazemos algo do
qual depois ficamos arrependidos, não foi um satanás exterior que
nos tentou, foi ação daquele satanás que reside num canto escuro
do nosso ser mais íntimo e nós tentamos fugir dele, através de
processos de racionalizações das nossas próprias decisões
equivocadas. Se sairmos disso, seremos capazes de reciclar também a
nossa noção de pecado.
Que o Mestre nos ensine
sempre e nos dê sempre força para superarmos as nossas imperfeições
e frustrações.
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