domingo, 24 de fevereiro de 2013

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 2º DOMINGO DA QUARESMA - VISÕES FUTUROLÓGICAS - 24.02.2013


COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO DA QUARESMA – VISÕES FUTUROLÓGICAS – 24.02.2013

Caros Confrades,

Neste domingo, 2º da quaresma, a liturgia nos traz, como de costume, a narração da transfiguração de Cristo perante os apóstolos escolhidos. Fala também sobre a promessa de Javé a Abrão e sobre a advertência de Paulo aos Filipenses, dizendo que nós seremos transfigurados, tal como Cristo.

Na primeira leitura, lemos o início das negociações entre Abrão e Javeh, com vistas à formação da aliança, que deu origem ao povo escolhido. Abrão pede um sinal e Javeh mandou que ele trouxesse animais e aves para sacrificar em sua homenagem, ocasião em que Javeh trouxe o fogo para a consumação do sacrifício, prometendo a Abrão uma descendência mais numerosa do que as estrelas do céu. Esta passagem do Gênesis (Gn 15, 17), assim como outras similares, formam aquele conjunto de conteúdos legendários da memória hebraica, sustentados durante séculos por uma tradição oral, com imensas probabilidades de alterações ao longo do tempo, pois nenhuma tradição oral se mantém incólume. E reflete também a cosmologia da época, no que se refere à contagem das estrelas, pois estas eram entendidas como se estivessem penduradas na abóbada celeste. De todo modo, a promessa de Javeh a Abrão diz respeito à visão futurológica do povo hebreu, que passa pela intervenção miraculosa d'Ele. Com efeito, Abrão era já idoso, assim como sua mulher Sarah, e não tinham conseguido gerar filhos até então. Como poderia ele ter uma descendência tão numerosa sozinhos, sem a ajuda de Javeh?

Por falar nos conteúdos legendários contidos sobretudo no pentateuco, os primeiros cinco livros da Bíblia, convém observar que as primeiras partes escritas da Bíblia apareceram por volta do ano 1.000 a.C., época do rei Salomão, ou seja, século X. Por sua vez, a época de Abrão está situada historicamente em torno do ano 1.800 a.C, ou seja, entre os séculos XIX e XVIII a.C., o que significa que a tradição oral que conservou a história de Abrão passou cerca de 800 anos sendo transmitida de pai pra filho. Convenhamos, é muito tempo para imaginar que tenha se mantido fiel às suas origens. Nessa linha de raciocínio, devemos entender esses conteúdos legendários pela sua mensagem finalista, pois foram escritos no futuro referindo-se a fatos passados.

Na segunda leitura, trecho da carta de Paulo à comunidade de Filipos, uma das primeiras comunidades cristãs fundadas por ele, pela qual ele tinha grande estima, constata-se a angústia de Paulo (Fl 3, 18) quando ele escreve: muitos de vocês estão se comportando como inimigos da cruz de Cristo, não façam isso, sede meus imitadores, vivam de acordo com o exemplo que eu vos dei. Não dêem maus exemplos, pensando só nas coisas terrenas, porque nós somos cidadãos do céu. Então, Paulo faz o seu discurso futurológico, ao afirmar que (Fl 3, 21), se vivermos de acordo com o evangelho, teremos no céu um corpo glorioso, semelhante ao corpo de Cristo. Os gregos eram os grandes comerciantes do Mediterrâneo, capitaneados pelo império romano. Aceitaram a pregação de Paulo e aderiram ao cristianismo, mas com a viagem deste, voltaram aos seus afazeres materiais, diversões, comedeiras e bebedeiras, daí a chamada de atenção de Paulo: o fim destes é a perdição, o deus deles é o estômago e a sua glória está na vergonha. Esta advertência de Paulo se aplica aos nossos dias, para que não deixemos que os nossos compromissos de cristãos sejam suplantados pelas urgentes e inadiáveis necessidades que a cada dia nos afetam. Não podemos deixar que o nosso deus seja a gula nem que o nosso pensamento se concentre apenas nos bens materiais. Vale lembrar nesse contexto, outra advertência de Paulo, desta ver aos Coríntios (1Cor 10, 31): quer comais, quer bebais, ou façais qualquer outra coisa, fazei tudo para glória de Deus.

Na leitura do evangelho de Lucas (9, 29-36), temos a conhecida narração da transfiguração de Jesus diante de Pedro, Tiago e João. Pela narração do evangelista, deduz-se que eles não entenderam nada daquilo, agarraram no sono e quando acordaram, Jesus já estava se despedindo. O completo entendimento desse episódio somente chegou para eles muito tempo depois, quando Jesus já havia ressuscitado. Chega-se a essa conclusão pelo contexto da narrativa. Primeiro, aquela visão espiritualizada de Cristo conversando com dois personagens também espirituais; segundo, o assunto da conversa (de acordo com Lucas, Jesus conversava com Moisés e Elias sobre a sua futura paixão e morte, coisa que Jesus já tinha explicado para eles diversas vezes e ele não conseguiam entender); terceiro, os discípulos, muito provavelmente, ficaram como que hipnotizados com aquela visão fantástica e quedaram-se em profunda letargia. Diz Lucas (9, 36) que aqueles discípulos não falaram nada daquilo pra ninguém e nem conversavam entre eles sobre o assunto. Penso que cada um deve ter pensado que tivera um sonho (ou um pesadelo) e teve receio de comentar com o outro.

Foi quando uma nuvem os encobriu e eles ouviram a revelação do Pai: este é o meu filho prometido, escutai-O. A palavra grega escrita por Lucas é “eklelegménos”, conjugação do verbo “legow”, que São Jerônimo traduziu por 'dilectus' e anteriormente a tradução portuguesa seguia a terminologia latina (meu filho amado), mas no texto oficial da CNBB, foi traduzida por “o escolhido”. Com efeito, o verbo “legow” tem o significado como escolher, mas tem também o sentido de anunciar, declarar, então no contexto da história da salvação, parece-me que este último sentido estaria mais apropriado. Daí que eu preferi traduzir por “filho prometido, anunciado”, porque estamos tratando da visão futurológica expressa na liturgia deste domingo. Coerente com o tema da primeira leitura, onde se rememora a aliança com Abrão, o futuro desta promessa era a vinda do Salvador. Jesus é, portanto, aquele que fora prometido desde o início.

Os dois personagens com os quais Jesus dialogava (Moisés e Elias), de acordo com a explicação tradicional da exegese, representam a Lei e os Profetas, os primórdios da história do povo hebreu, quando Javeh entregou a Torah ao povo através de Moisés, e depois a continuidade dessa presença viva de Javeh falando ao seu povo, através dos profetas. Em outra reflexão, eu abordei a questão do por que não foi Isaías, que Jesus cita muito mais vezes, o personagem do diálogo e sim Elias. Talvez porque este foi o profeta que ressuscitou o filho único da viúva de Sarepta, havendo assim uma alusão indireta à ressurreição de Jesus após sua paixão. Agora, ponho outra questão: por que Jesus não chamou todos os doze apóstolos para testemunharem aquela demonstração de sua divindade, mas apenas aqueles três – Pedro, João e Tiago? Fica difícil saber com certeza, mas podemos fazer conjeturas. Talvez, um reconhecimento da liderança de Pedro, fato que seria posteriormente tomado como argumento para justificar o primado do Papa. Talvez o fato de João e Tiago terem um certo parentesco com Jesus, lembrando que, há pouco tempo, foi encontrado um túmulo com a inscrição “Tiago irmão do Senhor”, e sabe-se que João era irmão de Tiago, ambos filhos de Zebedeu e seguidores de Cristo desde as primeiras horas. Talvez por serem aqueles em quem Ele tinha mais confiança ou demonstravam melhor entendimento. Talvez porque Ele quisesse manter o fato em segredo e isso seria mais difícil com um grupo numeroso.

Qualquer que tenha sido o motivo, penso que interessa apenas que eles foram os escolhidos por Jesus, da mesma forma que Jesus havia sido escolhido e prometido pelo Pai. Felizmente para nós, diferentemente dos outros nove apóstolos que não participaram daquela experiência, somos todos escolhidos por Ele para conhecer sua doutrina e chamados a participar da construção do céu na terra. Aos apóstolos, Jesus não se revelou a todos, mas a nós, Ele se revelou sem restrição. Daí o conselho de Paulo, que pediu chorando aos Filipenses para que eles não se deixassem levar pela atração das coisas terrenas, porque assim estavam se desviando do foco da missão e perdendo a visão do seu futuro como cristãos. A figura do Cristo transfigurado é o apelo d'Ele para nós a fim de que tenhamos sempre na mente o nosso destino glorioso, mantendo sempre a esperança e combatendo o bom combate, nunca perdendo o foco em nossa atuação, mas permanecendo firmes na promessa do nosso futuro.


2 comentários:

  1. Caro CMachado,
    Vc acha que houve mesmo a aparição de Moisés e Elias dialogando com Jesus ou os apóstolos tiveram alguma espécie de sonho/pesadelo???
    Se a opção for a primeira, não há como negar que Jesus tinha falado com dois "mortos" - que na verdade eram tão vivos como qualquer outro ser.
    Nisto também cairia por terra a aversão que tem os cristãos ortodoxos em afirmar que os "mortos" não vem prá "cá", nem muito menos prá falarem com os "vivos". Moisés e Elias haviam morrido há mais de mil anos antes daquele diálogo com Jesus, testemunhado por 3 apóstolos que costumavam estar juntos: Pedro, Tiago e João.
    Parabéns pelo seu texto. Abs,
    Janio

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    1. Caro Jânio,
      os textos evangélicos que narram o episódio são muito sucintos e apenas Lucas se refere a que os apóstolos dormiram. Marcos e Mateus omitem isso. Passamos, então, para o campo da especulação. A teologia católica interpreta este fato como uma demonstração da divindade de Jesus aos apóstolos, como um reforço pedagógico para a catequese deles. Na minha compreensão, a visão descrita mostra Jesus na sua condição divina a dialogar com os representantes da antiga aliança. Se for para usar uma linguagem espácio-temporal, eu diria que Jesus foi até eles, não que eles vieram aonde Jesus estava. Eu não poria a questão em termos de diálogo entre mortos e vivos, até porque todos estão vivos, em diferentes dimensões do existir. Agora, se vc quer saber a minha opinião pessoal, não a doutrina oficial, eu penso ser possível o diálogo entre pessoas que estão na dimensão temporal e as que estão na dimensão atemporal. E a "visão" que os apóstolos tiveram bem que pode ter sido uma espécie de sonho, o que não retira o aspecto miraculoso do evento.

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