COMENTÁRIO LITÚRGICO
– 5º DOMINGO COMUM – A VOCAÇÃO DE CADA UM – 10.02.2013
Caros Confrades,
Na liturgia deste 5º
domingo comum, as leituras mostram três situações diferentes,
pelas quais a vocação divina foi dirigida a personagens importantes
na história da salvação. Esses exemplos nos levam a refletir sobre
a vocação de cada um, pois Deus se serve de acontecimentos diversos
para nos chamar a realizar uma missão que Ele nos destinou.
Na primeira leitura,
temos o relato da vocação do profeta Isaías (6, 1), onde ele diz
que foi no ano da morte do rei Ozias (740 a.C.) que ele começou a
profetizar. Diz Isaías que viu o Senhor dos exércitos sentado no
trono, rodeado de serafins e ficou com medo, porque era apenas um
pecador. Então, um dos serafins tirou uma brasa do altar e com ela
tocou a boca de Isaías, purificando-lhe os lábios para que ele
pudesse falar em nome de Javé. Após isso, ele disse ao Senhor:
estou pronto, envia-me. Este é, sucintamente, o relato de Isaías e
daí podemos fazer algumas considerações.
Primeiro, destaco o
fato de que foi Isaías o profeta que mais se aproximou da realidade
do futuro Messias, inclusive sobre o martírio a que ele teria de se
submeter, tanto assim que Jesus o cita por diversas vezes, no período
de sua pregação. Mas Isaías, por causa do contexto histórico e
político do reino de Judá, onde ele vivia, sempre às voltas com
guerras e ameaças de invasões por parte dos inimigos, tinha a visão
de Javeh como um chefe guerreiro, o Senhor dos exércitos, de modo
que as previsões que ele fez do Messias eram também de um destemido
guerreiro, que viria expulsar os inimigos. Não é de admirar,
portanto, que o povo hebreu tenha resistido em reconhecer a
messianidade de Jesus, porque ele não veio na condição de
libertador político, conforme haviam predito os profetas. Quando
Jesus veio pregar um reino do amor e da mansidão, eles não
compreenderam nada, porque a expectativa histórica que se formara,
ao longo de tantos séculos, era de um Messias lutador e aguerrido.
Esse trecho de Isaías
contém ainda uma invocação que foi colocada no cânon da missa
como parte fixa: o santo, santo, santo (Is 6, 3) que era o canto
entoado pelos serafins que ladeavam o trono de Javeh. Em primeiro
lugar, gostaria de explicar algo sob o aspecto gramatical, que não
sei se todos sabem. Na língua hebraica, não há uma mudança
morfológica na palavra, quando ela se põe no superlativo. Por
exemplo, em português, o superlativo de santo é santíssimo, mas no
hebraico, por falta dessa versatilidade da língua, o superlativo da
palavra se expressa com a sua repetição por três vezes. Desse
modo, 'santo, santo, santo' (em hebraico: kadosh, kadosh, kadosh)
quer dizer santíssimo. Outro detalhe é que Isaías escreve: Senhor
Deus Sabaoth, palavra hebraica que significa exércitos. Quem se
recorda da invocação latina, lembra disso: Sanctus, sanctus,
sanctus, Dominus Deus Sabaoth. É o Senhor que vence as guerras e
derrota os inimigos, como faziam os reis daquele tempo.
Outro detalhe
interessante é que o serafim tomou uma brasa do altar com uma tenaz
(para não se queimar) e com ela tocou os lábios de Isaías (que não
se queimou), ficando com isso purificado para falar em nome de Javeh.
É interessante notar essa figura do fogo como símbolo da
purificação, que tem presença constante nas imagens bíblicas. A
brasa foi retirada do próprio fogo aceso para o sacrifício das
vítimas que eram oferecidas ao Senhor. Ora, esse detalhe insinua que
Isaías teve esta visão enquanto estava no templo. Isaías teve a
árdua missão de denunciar os pecados do povo de Deus, desde os
simples fiéis até os governantes, fato que ele fez com muita
coragem, mesmo sabendo dos riscos que corria. Não é fato
confirmado, mas há uma tradição que afirma que Isaías morreu ao
ser serrado no meio do corpo, por ordem do rei Manassés.
Na segunda leitura, o
apóstolo Paulo conta, de sua própria pena, a sua vocação,
história que todos conhecemos. Mas ele faz alguns complementos
interessantes sobre as aparições de Cristo após sua ressurreição,
narrativas que estão em certa divergência com os evangelhos. Por
exemplo: diz que Jesus apareceu primeiro a Cefas (Pedro) e depois aos
doze (2Cor 15, 5); esta aparição a Pedro isoladamente não consta
nos evangelhos. Diz depois: mais tarde, apareceu a mais de 500 irmãos
de uma vez, depois apareceu a Tiago e depois aos apóstolos todos
juntos. Pelas narrativas evangélicas, essas aparições a 500 irmãos
e a Tiago não estão documentadas, no entanto, não se pode dizer
que Paulo esteja faltando com a verdade. Isso significa que Jesus fez
muito mais aparições do que os evangelhos relatam.
Por fim, em 2Cor 15, 8,
Paulo diz que Jesus apareceu também a ele (“como um abortivo”),
afirmando não ser merecedor de tamanha honra. Nesse ponto, Paulo
está fazendo um discurso de humildade, arrependido do tempo em que
foi perseguidor da Igreja. Mas logo depois (vers. 10), ele faz um
autoelogio, ao dizer: tenho trabalhado mais do que os outros
apóstolos. Do modo como está escrito, fica transparecendo que Paulo
achava os demais apóstolos preguiçosos ou, no mínimo, não tão
dedicados quanto eles. Talvez ele tenha exagerado um pouco na
valorização do seu trabalho. Mas o fato é que isso é verdade
mesmo. A colaboração de Paulo, na divulgação do evangelho no
território grego e depois na Europa toda, foi inigualável, não
apenas pela extensão da área visitada, mas principalmente pela
qualidade de sua pregação e da sua pedagogia. Paulo era o único
intelectual do grupo. Aliás, na minha convicção, a vocação de
Paulo é uma das maiores provas da divindade de Cristo, porque se
dependesse dos doze, dificilmente o cristianismo teria alcançado a
expansão que atingiu, em termos de locais habitados naquela época.
O evangelho de Lucas
(5, 1-11) expõe a vocação dos primeiros apóstolos: Pedro, seu
irmão André, Tiago e João, filhos de Zebedeu, todos pescadores.
Primeiro, Jesus entrou na barca de Pedro e pediu que se afastasse um
pouco da margem do Mar da Galiléia (ou Lago de Genesaré), para que
pudesse pregar para a multidão que estava na praia. Depois, Jesus
ordena que Pedro adentre para águas mais profundas, a fim de pescar.
Ele estava meio desanimado, porque na noite anterior, a pescaria
tinha sido um fiasco. Foi então que se deu a pesca milagrosa: eram
tantos peixes que o peso deles rompia as redes e foi preciso chamar a
outra barca (de Tiago e João), para que o auxiliassem. Foi o sinal
para que Pedro se rendesse diante do poder de Jesus e Este o
convidasse para ser pescador de gente, estendendo o mesmo convite aos
demais. O resto da história é por demais conhecido.
Pois bem, meus amigos.
O que vemos de comum nesses três episódios? É o fato de que Deus
se serve de fatos da existência das pessoas para chamá-los a
colaborar na Sua missão. A Bíblia utiliza muito o conceito
tradicional de “reino” de Deus e toda a literatura teológica
também o repete com abundância. A ideia do 'reino' era algo usual e
frequente nos tempos mais antigos, quando a forma política da
monarquia era a mais adotada. Por isso, penso eu que, nos tempos
atuais, se torna uma palavra arcaica e com pálido sentido. Falar-se
em “reino” de Deus (venha a nós o Vosso reino) parece algo muito
distante ou com um simbolismo que não se encaixa na nossa realidade
cotidiana. Com isso em mente, parece-me preferível utilizar o
conceito de “missão”, pois os outrora denominados “trabalhadores
do reino” são, de fato, os missionários de hoje. Missão é um
conceito mais próximo da nossa realidade, identifica-se mais com a
nossa vida social, na qual somos chamados a agir dando testemunho da
nossa fé perante a comunidade. O nosso compromisso de cristãos é
um compromisso missionário.
Vemos também, nesses
episódios das leituras de hoje, que o chamado missionário de cada
pessoa é diferente, Deus se serve de fatos relacionados com a rotina
de cada um e, por intermédio desta, faz o seu chamamento. Todos nós,
que um dia estivemos no Seminário, podemos refletir sobre o que nos
conduziu até lá (e também o que nos conduziu para fora de lá) e
tentar descobrir os termos pelos quais Deus se dirigiu a nós e nos
incumbiu de uma missão. Nós não precisamos sair da nossa rotina
para recebermos o chamado de Deus, nem para realizar na nossa vida o
que Ele deseja e espera de nós. As leituras deste domingo nos dão o
ensejo de repensar e redescobrir a nossa missão, bem como de avaliar
como está sendo a nossa fidelidade a ela. Se estamos apenas na beira
da praia ou se somos capazes de navegar em águas mais profundas,
como Jesus fez com Pedro e André.
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