COMENTÁRIO LITÚRGICO
– DOMINGO DE RAMOS DA PAIXÃO DO SENHOR – 24.03.2013
Caros Confrades,
Conforme é do
conhecimento de alguns, ontem foi o meu aniversário e a comemoração
demorou um pouco mais, de modo que somente agora estou aqui
repartindo com vocês algumas reflexões sobre a parasceve ou da
preparação da Páscoa. A propósito deste termo, trata-se de uma
transliteração do termo grego 'paraskeve', que por sua vez era a
tradução da palavra hebraica 'prosabbaton' (preparação para o
sábado). De fato, os judeus utilizavam esta palavra para denominar a
sexta feira antes do sábado em que era celebrada a páscoa deles. Eu
estou utilizando aqui o termo numa extensão proposital para a semana
de preparação para a Páscoa do Senhor, que se inicia no domingo
dos ramos.
Conforme os Colegas
devem também recordar, a festa da páscoa, até o tempo de Cristo,
era celebrada no sábado, porque este era o dia santificado para os
judeus. A tradição mudou esta celebração para o dia de domingo,
em homenagem à ressurreição de Cristo e ainda para indicar uma
nova regra celebrativa, diferente dos costumes antigos dos
patriarcas, pois Cristo afirmou, por diversas vezes, que viera trazer
um novo mandamento, uma nova proposta religiosa, um novo estilo de
adorar o Pai, deixando de lado a figura tradicional do Javeh
veterotestamentário. Mas é de se recordar que Cristo celebrava a
páscoa do seu tempo no mesmo dia da tradição judaica. E quando ele
convocou os apóstolos para a 'última ceia', ali Ele estava
antecipando a celebração da Páscoa definitiva, como assim se
configurou o seu sacrifício supremo, de uma vez por todas. Ele não
podia esperar até o dia comemorativo, porque já sabia do que lhe
aconteceria nos dias seguintes.
A primeira leitura, do
profeta Isaías (50, 4-7), na verdade, do deuteroIsaías, traz a
conhecida imagem do servo sofredor, aquele que não foge diante dos
castigos, que oferece a outra face a quem lhe bateu e não se afasta
diante de bofetões e cusparadas. E complementa: “ o
Senhor Deus é meu Auxiliador, por isso não me deixei abater o
ânimo, conservei o rosto impassível como pedra, porque sei que não
sairei humilhado. ” O texto de
São Jerônimo, traduzido literalmente, diz assim: por isso, expus o
meu rosto como pedra duríssima, pois sei porque não ficarei
desconcertado. Eu acho simplesmente impressionante como o Profeta
conseguiu antever, com tamanha precisão de detalhes, aquilo que iria
acontecer com o Ungido (Messias).
Na leitura do evangelho
deste domingo, que descreve a condenação e crucifixão de Jesus, há
um trecho que reproduz o momento em que o 'mau ladrão' com Ele
crucificado, escarnece dizendo: “salvou os outros, salva agora a ti
mesmo”. A resposta para esta provocação está na passagem de
Isaías acima, porque Jesus realmente salvou várias pessoas,
livrando-as do pecado e de sofrimentos corporais, mas a Ele próprio
quem vai salvar é o Pai. Daí as duas outras expressões de grande
significado contidas na descrição da paixão: “Pai, em tuas mãos
entrego o meu espírito”; e outra: “tudo está consumado”.
Jesus veio para o mundo humano a fim de cumprir a missão que o Pai
lhe destinou, então não seria Ele próprio o gestor desta
empreitada, e sim o Pai que O enviou. As diversas manifestações
miraculosas realizadas em outras pessoas tinham como finalidade levar
aquelas pessoas a acreditarem n'Ele, na Sua missão, na Sua
divindade, na Sua entrega total ao cumprimento da promessa. Vejamos o
grande testemunho contido nos versículos 47 e 48 do cap. 23 de
Lucas: “O
oficial do exército romano viu o que acontecera e glorificou a Deus
dizendo: 'De fato! Este homem era justo!' E as multidões, que tinham
acorrido para assistir, viram o que havia acontecido, e voltaram para
casa, batendo no peito.” O
sacrifício de Cristo começou a produzir seus efeitos logo logo, de
modo imediato, após o “consumatum est”. Nem foi preciso esperar
a Sua miraculosa ressurreição para que os resultados pudessem ser
notados.
Eu sempre ficava
perguntando pra mim mesmo e tentando encontrar uma explicação
razoável para a transcrição dos diálogos acontecidos por ocasião
da crucifixão de Jesus, pois os seus seguidores estavam todos
olhando de longe. O próprio evangelista Lucas afirma isso: “Todos
os conhecidos de Jesus, bem como as mulheres que o acompanhavam desde
a Galiléia, ficaram à distância, olhando essas coisas.
(Lc 23, 48) ” Então, naquela balbúrdia que devia acontecer no
entorno dos crucificados (Jesus e os dois malfeitores), com aqueles
ruídos de marteladas, soldados bêbados proferindo imprecações,
oficiais militares dando ordens e coordenando os trabalhos, quem
estaria prestando atenção no que um “condenado” estaria
falando? Até porque os crucificados se contorciam em espasmos de dor
e já estavam fracos fisicamente, não tinham condições de gritar
ou falar alto o suficiente para serem ouvidos à distância.
Nesse contexto, quem
teria escutado quando o 'bom ladrão' repreendeu o imprecador que
insultava Jesus e quem escutou o que Jesus teria lhe falado: “hoje
mesmo estarás comigo no paraíso”? Na hora em que Jesus, fazendo
grande esforço, gritou em aramaico: Eli, Eli, lama satabactani (cf.
Mc, 15, 34), algum dos soldados ouviu e não entendeu e interpretou
que Ele estava chamando por Elias. Lucas nem menciona esse episódio.
Consta nas narrações que a crucifixão de Jesus teria sido por
volta da hora sexta (meio dia) e que se fizeram trevas no local até
a hora nona (3 da tarde), cf. Lucas, 23, 44, quando Jesus entregou o
espírito ao Pai. Certamente, as cruzes com os condenados ficaram
guarnecidas por soldados, para evitar que fossem libertados, ou pelo
menos Jesus fosse libertado por aqueles que n'Ele acreditavam. É
possível que algum desses guardas tenha escutado e tenha
retransmitido isso a alguém, de modo que o episódio fosse se
espalhando de boca em boca, até chegarem a ser escritos nos
primeiros documentos, donde se originaram os evangelhos. Mas é
possível também que esses diálogos tenham sido criados pela
própria comunidade, com o objetivo de edificação dos fiéis e como
corolário dos ensinamentos que Cristo havia repassado no seu tempo
de pregação pública.
Do ponto de vista
fático, permanece a incógnita. Mas do ponto de vista catequético e
doutrinário, os diálogos guardam total coerência com o que Jesus
ensinou e praticou, de modo que o seu conteúdo é totalmente
verossímil. Esses comentários que faço não tem a finalidade de
colocar em descrédito os textos sagrados, mas de mostrar que devemos
entendê-los não como “atas” ou “reportagens” dos fatos
ocorridos durante a vida histórica de Cristo, e sim como relatos de
testemunhas e expressões de fé das primeiras comunidades, as quais
são críveis porque estão situadas temporamente bem próximas dos
fatos. Devemos ler e compreender o texto bíblico pelo seu contexto,
não como quem lê uma matéria jornalística publicada nos
periódicos atuais. Isso nos ajuda a ultrapassar dúvidas infundadas
e, principalmente, a afastar discussões inúteis sobre determinadas
passagens tidas como contraditórias da Biblia. A nossa fé deve
estar adiante e acima desses detalhes.
Devemos sempre nos
lembrar ainda que os sofrimentos de Cristo são a transição para a
Sua glória, pois não há como falar em ressurreição sem falar em
morte, no entanto, o que deve ser ressaltado nas comemorações da
semana santa há de ser muito mais a ressurreição do que a paixão.
As encenações teatrais da Paixão de Cristo formam uma tradição
mundial, até filmes já exploraram exaustivamente o tema, no
entanto, não é esse sentimentalismo e essa consciência de culpa
que deve nos servir de estímulo, e sim o resultado final disso tudo,
ou seja, o triunfo de Cristo sobre o pecado e a morte. O sacrifício
de Cristo não se esgota na paixão, mas se corrobora na
ressurreição. Os sofrimentos são constantes na nossa vida, mas
Jesus nos ensina a não nos concentrarmos neles nem nos deixarmos
sucumbir por eles, porque Ele nos deu o maior exemplo de que todo
sofrimento será superado e toda morte será vencida, e o que nos
coloca nesta perspectiva é a nossa fé sempre viva e produtiva. Fé
sem obras não existe.
Portanto, meus amigos,
vivamos e comemoremos as festividades desta semana santa dentro do
espírito da verdadeira 'parasceve', isto é, a preparação para a
Páscoa do Senhor, que nos conduz à verdadeira vida. E, para não
perder a tradição que aprendemos no Seminário, rezemos: Adoramus
te, Christe, et benedicimus tibi quia per sanctam crucem tuam
redemisti mundum.
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