COMENTÁRIO LITÚRGICO
– 3º DOMINGO DA QUARESMA – CUIDADO PARA NÃO CAIR – 03.03.2012
Caros Confrades,
Tomarei como referência
para este comentário as leituras deste domingo (3º da quaresma) da
carta de Paulo a Coríntios, com a advertência final: tome cuidado
para não cair, e ainda do evangelho de Lucas (13, 1-9), que contem a
parábola da figueira que não dava frutos.
Na primeira leitura, do
livro do Êxodo (3, 1-8), vemos a vocação de Moisés, quando Javeh
o escolheu para falar diante do Faraó, ele que não sabia falar nem
tinha o dom da oratória. Desta primeira leitura, destacarei apenas a
autodefinição que Javeh faz de si mesmo: “eu sou”, sem
quaisquer complementos. De fato, Deus não tem complementos, ele é
todo e integralmente um, tornando-se desnecessária qualquer outra
explicação. De acordo com o Monsenhor Manfredo Ramos, no sermão
deste domingo, o verbo hebraico que é traduzido em português por
“eu sou” tem um significado muito mais amplo do que a expressão
em português, pois inclui também o sentido de 'fazer ser', ou seja,
além de ser absolutamente, Ele também faz as coisas serem. Seria
uma autodefinição de Javeh como o criador do universo. Tem assim um
significado ativo e dinâmico de ser, não o aspecto estático que a
expressão em português sugere.
Passando ao tema
selecionado, vemos na carta de Paulo a Coríntios (1Cor 10, 1-6) a
menção aos patriarcas e aos hebreus que atravessaram o deserto,
favorecidos por Javeh comendo o maná e bebendo a água do rochedo,
porém desagradaram a Deus e morreram antes de chegar na terra
prometida. O próprio Moisés também teria recebido o mesmo castigo
por haver duvidado do poder de Javeh. Paulo reproduz uma figura que
era muito conhecido dos judeus daquele tempo, que era a imagem do
Deus furioso e vingativo, que amava o povo mas não os poupava,
quando cometiam infidelidades. Então, diz Paulo, estes fatos devem
ser vir de advertência para nós, para que não repitamos as mesmas
atitudes reprováveis cometidas pelos nossos antepassados, que foram
alvo do anjo exterminador. Vejam bem “anjo exterminador”, uma
figura cultural do povo hebreu que parecia indicar algo que, nos dias
de hoje, chamamos de “castigos de Deus”.
Por que Paulo estaria
usando essas imagens do tempo antigo numa época em que Jesus Cristo
já havia dito que tinha vindo abolir aqueles costumes com o seu novo
mandamento? Na verdade, Paulo faz referência ao rochedo donde
brotava a água no deserto, vendo neste rochedo uma prefigura de
Cristo, a fonte da água viva. Verifica-se, na verdade, um esforço
de Paulo para integrar a antiga aliança com a nova aliança, através
de uma catequese que aproveitasse os conhecimentos da tradição
hebraica, pois o cristão de Corinto eram, em grande parte, judeus
convertidos. Ficava, portanto, mais fácil para Paulo lançar mão
dos conceitos da tradição conhecida por eles para fazer a relação
com a mensagem de Cristo. Havia, entre estes judeus, um conceito que
nós ainda encontramos na mentalidade religiosa do nosso povo de que,
quando acontece algo de ruim com alguém, aquilo foi um castigo de
Deus. Isso era entendido, pelo raciocínio inverso, que quando alguém
havia sido beneficiado com algo de bom, isso seria um prêmio de
Deus, uma espécie de reconhecimento de Deus pelos méritos desta
pessoa. Daí a advertência de Paulo: quem julga estar de pé, tome
cuidado para não cair. (1Cor 10, 12).
O “estar de pé”,
neste contexto, significa a autoconfiança na salvação, porque se a
pessoa não foi castigada, é porque Deus se agrada dela; o “cair”
significa sofrer algum revés, passar por alguma dificuldade,
enfrentar uma adversidade. Então, diz Paulo, quem pensa que está de
bem com Deus porque não foi castigado e, ao contrário, pensa que o
irmão que sofre é porque não está de bem com Deus, deve mudar
essa mentalidade. Se não houver “conversão”, isto é, se não
houver mudança de mentalidade, pode acontecer o mesmo que aconteceu
no deserto: virá o “anjo exterminador” já não para tirar a
vida do corpo, mas representado na presunção de salvação. Com
isso, ele quer significar que a conversão não é uma atitude que
acontece uma vez na vida e pronto, mas ela deve ser renovada a cada
dia, na nossa consciência e nas nossas atitudes. O batismo não é
garantia de salvação por si só, se não for complementado com um
trabalho contínuo de renovação interior, pela leitura e meditação
da escritura, pela inserção dos ensinamentos de Cristo no nosso dia
a dia. Por isso ele adverte: quem pensa que está em pé (de bem com
Deus, com a salvação assegurada), tenha cuidado para não cair (não
deixar a presunção e o orgulho embotarem a sua visão de fé).
Este é também o
ensinamento que retiramos da passagem do evangelho de Lucas (13,
1-9), quando os judeus falaram a Jesus sobre alguns do povo que
haviam sido mortos por ordem de Pilatos, que confundiu o ritual de
sacrifícios de animais deles com alguma ação de rebeldia, de modo
que eles foram assassinados sendo inocentes. Por isso, Jesus pergunta
aos próprios portadores da notícia: por acaso, vocês pensam que
estes que morreram eram mais pecadores do que os outros? Dentro
daquela mentalidade judaica, essa desgraça acontecida com cidadãos
inocentes era entendida como um 'castigo divino' por alguma coisa
imprópria feita por eles. Então, Jesus aproveita a ocasião para
ensinar que não é nada disso, que não se deve associar o
sofrimento de alguém com uma espécie de 'vingança' de Javeh,
porque isso pode acontecer a qualquer um.
Para ilustrar este
mesmo ensinamento, Jesus cita também um episódio ocorrido por
aqueles dias, em que uma torre de pedra, na localidade de Solié,
havia desmoronado, matando 18 hebreus. Segundo os estudiosos da
arqueologia, essa torre teria existido nos arredores de Jerusalém e
era próxima de uma piscina natural famosa na região, a piscina de
Siloé, que estava constantemente cheia por ter sido construída num
local que nós aqui chamamos de “olho d'água”. Era uma espécie
de balneário público e havia sempre gente por lá. Provavelmente, a
própria consistência insegura do solo próximo da nascente de água
teria afetado os alicerces e levado a torre de pedra a cair. Então,
Jesus usa este conhecido episódio para reforçar a sua catequese:
vocês pensam que aqueles que morreram soterrados eram mais pecadores
do que os outros habitantes de Jerusalém? E repete a mesma
conclusão: não se trata de vingança de Javeh, mas trata-se de algo
que pode acontecer com qualquer um. É um fato da vida, que não está
relacionado com o poder divino, mas com a negligência ou ignorância
dos seres humanos. Trazendo para os dias de hoje, Jesus diria que os
tsunamis, o desequilíbrio ecológico do planeta, as epidemias
disseminadas por toda a parte, a violência generalizada não são
castigos divinos, mas são resultado da ação egoísta e desastrosa
comandada pelo próprio homem.
Então, Lucas conclui
com a parábola da videira que não dava frutos. Era uma árvore
bonita, frondosa, de boa aparência, mas infrutífera. O “dono”
ficou irritado: já faz três anos que eu venho aqui e não vejo
frutos nesta árvore, pode cortá-la. O “capataz” intercedeu pela
árvore: vamos dar mais uma chance a ela, vamos colocar adubo, podar,
aguar, vamos ver se os frutos chegarão na próxima safra. Ora, meus
amigos, quem esse “dono”? É Javeh, claro. E quem é o “capataz”
que intercedeu pela árvore? É o próprio Cristo. Ele veio cumprir
este plano de Javeh (adubar, podar, aguar) a árvore do povo, pra ver
se ainda tinha jeito. O povo havia se negado a ouvir os profetas e se
recusado a cumprir a promessa, ou seja, praticava só aquela religião
de fachada, que desagradava Javeh por não ter raízes firmadas no
coração. Quantos profetas, desde Moisés, Javeh havia mandado pra
ensinar o povo, mas este sempre voltaram aos seus ídolos. Então,
com a catequese de Jesus, Javeh estava dando mais uma chance à
árvore do povo de Deus: vai lá, conversa com esse povo, mostra a
eles quem Tu és, vejamos se eles se convertem e produzem frutos...
não deu certo. O povo não entendeu nada e continuou a adorar a
Javeh apenas com atitudes exteriores, sem raízes no coração, e
essa religião enganosa pode até enganar os outros, mas a Javeh não
engana.
Meus amigos, era como
se Jesus estivesse dizendo: eu sou a última chance de vocês,
acreditem em mim e façam o que eu estou dizendo. Os ouvidos dos
judeus estavam totalmente surdos e o adubo e a aguação não
surtiram nenhum efeito. Então, ouçamos São Paulo e não deixemos
que o mesmo venha a acontecer conosco. Cuidemos para não cair na
tentação de achar que, por cumprir suas obrigações religiosas,
mas sem ter o coração contrito, alguém está sendo agradável a
Deus.
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