COMENTÁRIO LITÚRGICO
– 14º DOMINGO DO TEMPO COMUM – A PAZ – 07.07.2013
Caros Confrades:
A liturgia deste 14º
domingo do tempo comum tematiza o envio de setenta e dois discipulos
de Jesus para saírem de cidade em cidade anunciando o evangelho,
curando doentes e expulsando demônios, tendo como único instrumento
a paz. Enviados como cordeiros no meio dos lobos, vão sem armamento
algum, sem sacola, sem dinheiro, levando apenas a palavra e
semeando-a por onde passarem. Esse tema do envio é recorrente na
liturgia, pois na verdade ele é sempre atual e ecoa nos nossos
ouvidos a cada dia, nas nossas atividades e nos nossos
relacionamentos, lembrando-nos do nosso compromisso de cristãos. Por
isso, quero destacar neste comentário a saudação que Cristo lhes
recomendou: Em qualquer cada onde entrardes, dizei primeiro – A paz
esteja nesta casa. O Seráfico Patriarca Francisco também escolheu
essa lição da Paz como norma de sua vida e a ela acrescentou o Bem.
A saudação franciscana é exatamente o que Cristo encomendou aos
setenta e dois que enviou: levar a Paz e fazer ao Bem.
A primeira leitura,
colhida no deutero Isaías (Is 66, 10-14), lembra a paz que reinou em
Jerusalém, após o retorno dos exilados da Babilônia. “Alegrai-vos
com Jerusalém e exultai com ela todos vós que a amais; tomai parte
em seu júbilo, todos vós que choráveis por ela.”
Aquela conhecida e belíssima ária de Verdi, que faz parte da nossa
juventude, Va Pensiero, é um cântico de lamento dos hebreus no
exílio, chorando e lembrando de Jerusalém. “O mia patria, si
bella e perduta...” era o lamento dos hebreus sobre Jerusalém
destruída. Então, após o retorno dos exilados, diz o profeta
Isaías: alegrai-vos todos vós que choráveis por ela. E mais: “Diz
o Senhor: 'Eis
que farei correr para ela a paz como um rio e a glória das naçðes
como torrente transbordante.” A
paz chegará a Jerusalém como um rio caudaloso, levando prosperidade
para esta cidade e tornando-a a glória das nações. Como de fato,
daí até o tempo de Cristo a cidade de Jerusalém se destacou como
uma metrópole na região, vindo a sofrer nova derrota somente para
os romanos, tempos depois. Esta segunda destruição de Jerusalém
foi prevista por Cristo, conforme consta no evangelho de Lucas (19,
43): virá o dia em que os inimigos cavarão um fosso ao redor e
sitiarão o local, levando grande angústia para os teus filhos e não
deixarão pedra sobre pedra. Foi o preço pago por Jerusalém pelo
fato de que os seus habitantes, além de não crerem em Cristo, ainda
o crucificaram. Jerusalém não reconheceu o príncipe da paz, então
aquele rio caudaloso de que falou o profeta se transformou num fosso
mortal, cavado pelos inimigos, que levaram à sua destruição.
Na segunda leitura, de
Paulo dos Gálatas, volta o tema da paz como sinônimo da nova
criação, aquela que foi redimida pela paixão e morte de Jesus. É
quando Paulo, mais uma vez doutrinando contra os judaizantes, ensina
que agora, a circuncisão e a incircuncisão já não têm valor,
porque o que realmente conta é ser uma nova criatura. Este
renascimento se faz pelo batismo em nome de Cristo “e
para todos os que seguirem esta norma, como para o Israel de Deus,
paz e misericórdia.” (Gl 6,
16). Vemos que Paulo indica a paz como fruto do batismo, da adesão
ao evangelho de Cristo. A antiga aliança foi recuperada pela cruz,
de modo que ele diz: “Doravante,
que ninguém me moleste, pois eu trago em meu corpo as marcas de
Jesus.” (Gl 6, 17). E diz mais:
“ que
eu me glorie somente da cruz do Senhor nosso, Jesus Cristo. Por ele,
o mundo está crucificado para mim, como eu estou crucificado para o
mundo.” (Gl 6, 14). Ao ser
crucificado, Cristo atraiu para si os pecados de toda a humanidade,
de modo que, redimindo-os, trouxe a paz a todas as pessoas de outrora
e de hoje, de tal modo que não há mais distinção entre judeu e
grego, entre escravo e livre, entre rico e pobre, mas todas as
diferenças se diluem na graça do batismo. E o resultado que isso
traz para todos é um só: paz e misericórdia.
Na leitura do
evangelho, Lucas relata (Lc 10, 1, 12) o envio de setenta e dois
discípulos na frente de Jesus, para cidades por onde ele deveria
passar depois, a fim de que preparassem o povo para a sua chegada. É
curioso notar que Lucas não tenha tido interesse em citar nenhum
nome desses setenta e dois enviados nem os nomes das cidades aonde
eles foram. Com certeza, não foi nenhum dos doze apóstolos, a quem
Jesus estava preparando para a missão futura. E também eles não
foram a localidades muito distantes, pois o próprio Lucas relata o
retorno deles (Lc 10, 17) muito contentes pelas ações miraculosas
que tinham realizado: “até os demônios nos obedeceram”,
disseram a Jesus.
Mas o que é também
interessante nesse relato do envio dos setenta e dois discípulos são
as 'regras' ditadas por Jesus para que cumprissem:
não levar bolsa, nem sacola, nem sandália e não cumprimentar
ninguém pelo caminho. Chegando a
uma casa, dirão primeiro: a paz esteja nesta casa. Comerão os
alimentos que forem oferecidos e curarão os doentes. E se não forem
bem recebidos, deverão sacudir a poeira contra os habitantes. Sobre
esta mesma passagem, em Mateus 10, 9, consta que não deverão levar
nem ouro, nem prata, nem bens, nem duas túnicas, e manda ressuscitar
os mortos, curar os doentes, limpar os leprosos, expulsar os demônios
e anunciar que o reino de Deus está próximo. Lendo essas linhas, me
vem à mente as antigas “desobrigas” que os nossos frades faziam
pelo sertão afora, transportados em montarias desconfortáveis e
hospedando-se nas casas dos sertanejos. Lembro bem do Frei Higino, do
Frei Abel, do Frei Sabino contando as suas “aventuras” pelas
veredas do Maranhão. Tempos heróicos de pessoas abnegadas, que
cumpriam à risca as ordens dadas por Cristo aos setenta e dois.
Pois bem, mas eu queria
destacar nesse contexto a saudação que Jesus mandou fazer: a paz
esteja nesta casa. Se ali houver um “amigo” da paz, a paz
repousará sobre ele; do contrário, retornará para vós. Eu
destaquei entre aspas a palavra “amigo” porque é a tradução
oficial do texto da CNBB, no entanto, no original latino da vulgata,
texto de São Jerônimo, a expressão é “filius pacis”, ou seja,
filho da paz. Esta é a mesma expressão do original grego de Lucas:
“yios eirenes” (filho da paz). Não sei por qual razão os
tradutores da CNBB trocam para 'amigo da paz', pois me parece que ser
filho da paz tem um significado muito mais profundo e denso do que
apenas amigo da paz. Ser filho de Deus é muito superior a ser amigo
de Deus. Penso que seja senso comum na nossa cultura que o status de
filho é bem mais elevado do que o de amigo, então fico realmente
sem entender o motivo que leva os tradutores e alterarem assim a
equivalência das palavras. Nosso Seráfico Patriarca era, com
certeza, um autêntico filho da paz, não apenas amigo desta. Tomando
aqui emprestado uma famosa afirmação atribuída a Sócrates, quando
lhe perguntaram se ele era um “sóphos” (sábio), ele negou e
disse que se considerava apenas um “philos sophia”, isto é,
amigo da sabedoria. Ora, nessa mesma linha de raciocínio, um
“sóphos” seria um filho da sabedoria, mas na sua humildade,
Sócrates se considerava apenas um amigo da sabedoria. Podemos ver,
assim, que não apenas na nossa cultura brasileira, a relação entre
os conceitos de “filho” e “amigo” atribui um valor muito
superior ao filho do que ao amigo. Fica difícil mesmo entender o
objetivo dos nossos liturgistas oficiais, quando preparam as
traduções dos textos das leituras.
Então, seguindo a
norma dada por Cristo, se naquela casa morar um filho da paz, a paz
recairá sobre ele; se não houver, a paz retornará para o seu
emissor. A lição que devemos tirar dessa ordem de Cristo é que nós
devemos ser esses filhos da paz. Quando o irmão que sofre alguma
perturbação nos procura, então devemos ser esse filho da paz, que
recebe a paz quando ela é emitida e também transmite a paz, quando
a outra pessoa dela necessita. Para sermos distribuidores da paz, é
necessário sermos filhos da paz, ou seja, é necessário que a paz
habite em nós, pois só podemos distribuir aquilo que possuímos e
para possuir a paz, devemos haurir seus fluidos nos ensinamentos do
príncipe da paz, que é Jesus. Assim, aquele rio de paz que o
profeta Isaías previu para correr em Jerusalém, após o retorno dos
exilados, invadirá também o nosso coração e a paz banhará todo o
nosso ser. Isso significa ser filho da paz. Isso significa que,
assumindo o nosso batismo, nos tornamos novas criaturas e, como diz
São Paulo aos Gálatas, para todos os que seguirem essa norma, o
resultado será paz e misericórdia.
Que o Senhor nos dê a
sua paz. Que o Seráfico Patriarca nos dê a sua Paz e o seu Bem.
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