COMENTÁRIO LITÚRGICO
– 15º DOMINGO DO TEMPO COMUM – A LEI DE DEUS E A SUA
MISERICÓRDIA – 14.07.2013
Caros Confrades,
Neste 15º domingo do
tempo comum, o tema litúrgico em destaque é o confronto entre a lei
e a misericórdia, o mandamento e a caridade. O que é mais
importante: louvar a Deus ou ajudar os irmãos? Resposta: os dois são
importantes, claro. Mas o que é preferencial? Com a parábola do bom
samaritano, Jesus ensina que a caridade para com o próximo é
preferencial ao cumprimento puro e simples da lei.
Na primeira leitura,
colhida do livro do Deuteronômio, Moisés ensina ao povo que a
palavra de Deus está dentro de cada um, ou seja, está dentro da
nossa consciência. Diz ele: a lei de Deus não está no céu, porque
assim ficaria muito difícil de ser alcançada e alguém poderia
dizer que não a conhece porque está inacessível. Também não está
do outro lado do mar, porque estaria muito distante e ninguém
conseguiria atingi-la. Lembremo-nos de que, na época de Moisés, o
conceito de mar era bem outro do que conhecemos, ter de atravessar o
mar era uma tarefa onerosa e demorada, tomando como referência o Mar
Vermelho, o Mar Mediterrâneo, que eram os mares conhecidos. Mas não,
diz Moisés, esta
palavra está bem ao teu alcance, está em tua boca e em teu coração,
para que a possas cumprir. (Dt 30, 14)
Este é o conceito da lei divina enquanto lei natural, isto é,
aquela regra que cada um tem dentro de si mesmo e que nós costumamos
chamar de consciência.
De acordo com a
doutrina tradicional, esta lei natural é inscrita em cada pessoa na
sua razão como uma ideia inata, colocada pelo próprio Deus como
parte da Sua atividade criadora. A lei natural decorre da própria
racionalidade. No entanto, os filósofos modernos passaram a
contestar essa noção de lei inata como algo próprio da natureza
humana e passaram a afirmar que essas noções básicas do bem e do
mal, do certo e do errado, do justo e do injusto são aprendidas a
partir das vivências e experiências de cada um na família e na
sociedade. De um modo ou de outro, a lei divina enquanto lei natural
é reconhecida por todas as pessoas como aquela regra geral de sempre
fazer o bem. Se observarmos bem o conteúdo da lei de Moisés, a
grande exigência que Javeh sempre fez ao Seu povo foi honrá-Lo e
adorá-Lo como único Deus, desprezando a idolatria, que era muito
comum entre os povos contemporâneos. Todos os outros preceitos são
compatíveis com o que chamamos de lei natural: honrar pai e mãe,
não matar, não levantar falso testemunho, não querer os bens
pertencentes a outrem... Esta é a lei antiga, que Jesus não veio
negar nem modificar, mas sim cumprir de forma plena, conforme Ele
afirmou por diversas vezes.
O evangelho de Lucas
(10, 25) narra o diálogo de Jesus com um doutor da lei. Quem eram os
doutores da lei? Eram os sábios instruídos na lei de Moisés,
aqueles que ensinavam ao povo os preceitos dados por Javeh, podendo
ser sacerdotes ou não. Portanto, teoricamente, um doutor da lei
sabia (mais do que as demais pessoas) o que era de seu dever e
obrigação cumprir. Dentre os judeus daquele tempo, o grupo dos
fariseus era aquele formado por aqueles doutores da lei mais
rigorosos, aqueles que se esmeravam no conhecimento da lei e no seu
cumprimento acima de qualquer outra exigência. E faziam questão de
demonstrar isso publicamente, para que todos os vissem como
exemplares cumpridores da lei. Jesus não era nenhum ingênuo e
quando aquele fariseu veio perguntar-Lhe o que era preciso fazer para
ganhar a vida eterna, Ele respondeu com outra pergunta: o que diz a
Lei? Ora, o fariseu sabia de cor e respondeu imediatamente: amar a
Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a ti mesmo. Então
Jesus disse: pois faça isso e terá a salvação. Talvez o fariseu
esperasse que Jesus fosse ensinar algo diferente do que estava na Lei
e assim poder acusá-lo de heresia. Quando Jesus disse “cumpra a
lei”, o fariseu ficou desconcertado. E ao mesmo tempo, Jesus estava
dizendo para aquele fariseu e para todos nós que a lei divina,
aquela que se encontra no coração de cada homem, conforme já havia
sido dito por Moisés, esta lei não passa, esta lei não muda, esta
lei não é ensinada apenas pelos judeus, mas está em todos os povos
desde as épocas mais antigas e em todas as origens étnicas (hindus,
chineses, gregos, persas, babilônicos, astecas, maias), o mandamento
de fazer o bem sempre esteve persente nas suas culturas. Com isso
também Jesus queria dizer que a Sua doutrina, que nós chamamos de
cristianismo, é uma doutrina essencialmente humanista, porque se
dirige a todos os homens de boa vontade. E o Papa Francisco,
recentemente, lembrou isso, quando afirmou que mesmo os ateus de boa
fé terão a salvação.
Pois bem, mas então,
em que consiste o cumprimento pleno da Lei, que Jesus veio ensinar e
que faz a diferença entre a nova aliança e a antiga aliança? Aqui
entra a parábola do bom samaritano. Um homem ferido, necessitando de
ajuda é observado por um sacerdote e por um levita, que se desviam
dele e passam pelo outro lado, na estrada. Observemos a fina ironia
de Jesus, quando colocou no exemplo da parábola um sacerdote e um
levita. Esses dois termos eram até certo ponto sinônimos, mas não
por completo, havia levitas que não eram sacerdotes. Seriam como os
diáconos, aqueles que auxiliavam os sacerdotes no serviço do
templo. Então, quando Jesus colocou na parábola um sacerdote e um
levita, era como se Ele estivesse dizendo para o seu interlocutor: um
igual a você. Por que motivo o sacerdote e o levita teriam se
desviado do ferido e moribundo? O evangelista não entra nesse
detalhe, mas poder-se-ia supor, na melhor das hipóteses, que fosse
porque eles estariam se dirigindo ao templo e não poderiam se
atrasar para o serviço do culto. Ou numa hipótese mais malvada,
porque eles realmente não se preocupavam com os sofrimentos dos
outros. Era como se Jesus estivesse lançando a carapuça na cabeça
daquele doutor da lei.
E para completar a
ironia, Jesus colocou na parábola a figura do samaritano, como
aquele que deu o bom exemplo. Ora, meus amigos, os judeus tinham uma
rixa com os samaritanos, achavam que esses não cumpriam a lei, eram
intrigados entre si e não se falavam. Daí que naquela ocasião do
diálogo de Jesus com a samaritana, o fato causou admiração. Então,
Jesus colocou um sacerdote e um levita dando mau exemplo e, de outro
lado, o samaritano como autor do bom exemplo. Desse modo, duplamente
Ele puxou as orelhas do doutor da lei. Uma, porque alguém da classe
dele (sacerdote ou levita) preferiu passar apressado para não se
atrasar no cumprimento da lei. Duas, porque o rival dos judeus foi
aquele que teve misericórdia do ferido e o amparou. E para não
deixar só no plano das especulações, Jesus ainda perguntou ao
doutor da lei: quem desses três, ao seu ver, foi o próximo para o
ferido? O doutor da lei não tinha outra alternativa senão concordar
que tinha sido o samaritano, saindo dali com as orelhas pegando fogo.
Mas ainda falta darmos
a resposta da pergunta: como é cumprir plenamente a lei, segundo
Jesus ensinou? Agora podemos concluir: é juntando o cumprimento da
lei com a prática da caridade. Não se pode dizer que, a rigor, o
sacerdote e o levita descumpriram a lei. Eles tinham seus motivos.
Mas o samaritano cumpriu a lei da forma mais perfeita, que foi dando
a preferência ao atendimento do irmão necessitado, mesmo que isso
implicasse no atraso de outras obrigações. Então, como podemos
observar, quando Jesus disse que não veio para destruir a lei de
Moisés, mas para cumpri-la de forma integral, Ele estava querendo
dizer que ninguém pode dizer que ama a Deus se não ama o próximo.
Amar a Deus é a dimensão vertical da religião, ou seja, a oração,
a meditação, o jejum, o terço, a novena, o culto, o templo. Amar o
próximo é a dimensão horizontal da religião, ou seja, a caridade,
a estima, a ajuda mútua, o compartilhamento dos bens, a misericórdia
com os irmãos. Uma dimensão se completa com a outra e a dimensão
vertical, sem a horizontal, torna-se inócua. Várias vezes, no
evangelho, temos exemplos patéticos nas parábolas de Jesus, como
quando aqueles que foram mandados para a “esquerda” perguntaram:
quando foi que Te vimos com fome e não Te demos de comer? E ele
respondeu: foi quando deixastes de ajudar o irmão necessitado. Ou
seja, se sopesarmos bem, a dimensão horizontal tem um peso bem maior
na hora de aquilatar o cumprimento da lei, porque é a dimensão
horizontal que leva a outra dimensão à perfeição. O bom
samaritano é o exemplo clássico e insuperável do amor ao próximo.
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