domingo, 31 de agosto de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 22º DOMINGO COMUM - OS DOIS MODOS DE PENSAR - 31.08.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 22º DOMINGO COMUM – OS DOIS MODOS DE PENSAR – 31.08.2014

Caros Confrades,

Neste 22º domingo comum, a liturgia nos põe diante do desafio de abandonar o modo de pensar de acordo com o mundo e aprender a pensar de acordo com o que é divino. A repreensão que Jesus faz a Pedro, que não compreendeu sua descrição da futura paixão pela qual teria de passar, nos adverte a buscar compreender os pensamentos de Deus, conforme ensinou o profeta Isaías (55, 8): “os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos são os meus caminhos.”

Na primeira leitura, do livro do profeta Jeremias (Jr 20, 7-9), vemo-lo se debatendo entre o dilema de profetizar e ser alvo de zombarias ou de abandonar a proferia e se livrar. Javeh fá-lo compreender que, mesmo sofrendo chacotas e pilhérias, ele deve continuar a sua missão de profetizar. Para associar com o contexto histórico, Jeremias profetizou no período que antecedeu a destruição de Jerusalém pelos babilônios, um período histórico bastante conturbado do povo de Israel, cujos reis praticavam a ganância e a idolatria e desrespeitavam Javeh. O profeta Jeremias, por diversas vezes, chamou a atenção das autoridades para esses desmandos, ameaçando que Javeh seria muito rigoroso para com eles, no entanto, eles riam do Profeta e levavam-no na brincadeira. Foi quando Jeremias escreveu: “Todas as vezes que falo, levanto a voz, clamando contra a maldade e invocando calamidades; a palavra do Senhor tornou-se para mim fonte de vergonha e de chacota o dia inteiro. Disse comigo: “Não quero mais lembrar-me disso nem falar mais em nome dele”. Senti, então, dentro de mim um fogo ardente a penetrar-me o corpo todo; desfaleci, sem forças para suportar.” (Jr 20, 8-9) Percebemos nesse depoimento do Profeta que, quando ele quis optar pelo modo de pensar mundano, esquecendo a profecia, Javeh lhe mostrou que ele devia continuar profetizando. Assim foi até que vieram da Babilônia os inimigos, destruíram a cidade de Jerusalém e levaram os habitantes como cativos. Ele, Jeremias, foi poupado do cativeiro e, para não sofrer represálias dos judeus que ficaram na cidade, fugiu para o Egito, junto com parentes e amigos. O apóstolo Paulo também, em certa ocasião, se expressou aos cristãos de Corinto numa linguagem similar: “Porque, se anuncio o evangelho, não tenho de que me gloriar, pois me é imposta essa obrigação; e ai de mim, se não anunciar o evangelho! (1 Cor 9:16)” O desabafo de Paulo tem o mesmo sentido do texto de Jeremias.

Na segunda leitura, extraída da carta aos Romanos (12, 1-2), o Apóstolo os adverte a pensar de acordo com os pensamentos divinos, quando diz: “Não vos conformeis com o mundo, mas transformai-vos, renovando vossa maneira de pensar e de julgar, para que possais distinguir o que é da vontade de Deus.” Para distinguir o que é da vontade de Deus, é necessário ultrapassar o modo de pensar de acordo com o mundo, renovar-se espiritualmente, oferecendo-se como sacrifício vivo, santo e agradável a Deus, seguindo as palavras de Paulo. O Papa Francisco, na alocução que fez neste domingo aos peregrinos, na Praça de São Pedro, por ocasião do Angelus do meio dia, com seu estilo bem informal e com a linguagem coloquial que lhe é peculiar, assim resumiu esse tema da liturgia de hoje: “Nós cristãos vivemos no mundo, totalmente inseridos na realidade social e cultural do nosso tempo, e com razão; mas isso traz o risco de que nos tornemos "mundanos", o risco de que "o sal perca o sabor", como diria Jesus (cf. Mt 5,13), ou seja, que o cristão se torne aguado, perca a novidade que lhe vem do Senhor e do Espírito Santo. Em vez disso, deveria ser o contrário: quando nos cristãos permanece viva a força do Evangelho, essa pode transformar os critérios de juízo, os valores determinantes, os pontos de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida”. (apud Zenit, revista eletrônica desta data – www.zenit.org). Achei interessante o Papa dizer que o cristão se torna “aguado”, é uma imagem bem característica daquele alimento sem sabor, que o paladar não identifica a sua essência. E o Papa complementa a imagem, em outra parte do seu discurso: “É triste encontrar cristãos "aguados", que parecem vinho diluído, e não se sabe se são cristãos ou mundanos, como o vinho diluído que não se sabe se é vinho ou água!” Viver no mundo, mas, ao mesmo tempo, pensar com os pensamentos de Deus, esse é o desafio que se coloca, a cada dia, para os cristãos.

No evangelho deste domingo (Mateus 16, 21-17), encontramos uma repreensão dura de Cristo a Pedro, chamando-o de “satanás”. Acerca desse vocábulo, é interessante notar que é uma palavra transliterada diretamente do hebraico para o grego, passando daí para o latim e para o português. Na língua hebraica, “satan” (סתן) significa o acusador, relacionada etimologicamente com a raiz verbal do verbo hostilizar, acusar. É interessante ainda observar que, na tradução grega, o vocábulo “satanás” é utilizado para designar adversários humanos, pois quando o adversário é um anjo mau, a palavra usada é “diábolos”. No latim, as duas palavras ficaram sinônimas, passando assim para o português. Essa explicação é necessária para compreendermos que, quando Jesus chamou Pedro de “satanás”, nada tem a ver com o demônio, o capeta, aquele ser horripilante que os artistas medievais pintaram com chifres e com rabo, segurando o tridente. Esse é o arquétipo comum na nossa cultura, por isso, é a primeira imagem que nos acode à mente diante dessa palavra. No entanto, essa explicação também não retira a dureza da repreensão de Cristo a Pedro: sai pra lá, inimigo meu, és um escândalo para mim... é mais ou menos nesse sentido que deve ser entendido o carão de Jesus.

Convém destacar também nesse contexto o sentido da palavra “escândalo”, que não tem semelhança com o significado comum em português. Em grego, a palavra original é “skandalou”, que significa cilada, obstáculo, traição. No sentido dos evangelhos, escândalo significa algo que faz fraquejar a fé, como se fosse um mau exemplo dado por alguém. Na tradução oficial da CNBB, essa palavra foi traduzida como “pedra de tropeço”, isto é, algo que impede de atingir o objetivo. Foi exatamente isso que Jesus sentiu quando Pedro disse: Deus te livre, Mestre, isso nunca vai te acontecer. Ora, nós sabemos que Jesus, enquanto homem, sofreu muito diante da perspectiva da paixão, porque enquanto Deus ele sabia de tudo o que iria acontecer, mas sendo homem, ele teria que sofrer de verdade tudo aquilo, isso o deixava angustiado. Foi por isso que ele chegou a dizer “Pai, afasta de mim esse cálice”, foi por isso que ele suou sangue no Horto das Oliveiras. Então, aquela intervenção de Pedro, com a melhor intenção de proteger o Mestre, funcionou para ele como um desestímulo sob o aspecto humano, de modo que a repreensão forte sobre Pedro foi também uma forma de demonstrar para os demais que não deveriam “se meter” naquele assunto. Jesus estava comunicando antecipadamente ao seu grupo de discípulos o que iria acontecer, mesmo que eles não entendessem aquilo, para que eles soubessem e não fossem apanhados de surpresa quando tudo acontecesse. Então, Jesus completou: tu (Pedro), dizes isso porque não pensas as coisas de Deus, mas pensas as coisas dos homens.

Vemos assim, meus amigos, claramente nessa fala de Jesus, a diferença entre ser escândalo e ser discípulo, entre ser satanás e ser fiel, entre ter pensamentos mundanos e ter pensamentos divinos. Ser satanás é ser escândalo, isto é, ser motivo de fraquejamento na fé das pessoas que nos conhecem. É quando as pessoas dizem assim: fulano(a) vive na Igreja, carrega um terço no pescoço, não perde uma missa e, no entanto, está ali tirando proveito ilícito de uma situação, está faltando com a caridade, está desfazendo com suas ações o discurso que faz com a boca. Precisamos sempre vigiar para que tais situações não aconteçam conosco, porque o mau exemplo praticado por uma pessoa que se declara, e todos conhecem, como “de dentro da Igreja” é muito mais prejudicial do que quando o mesmo comportamento é feito por uma pessoa que assim não se qualifica. É quando alguém se torna em escândalo para o próximo, ou pedra de tropeço para o irmão.

Na sequência desse ensinamento, Jesus pronuncia outra frase que nos foi dita muitas vezes, no período de formação: “quem quiser salvar a sua vida vai perdê-la; e quem perder a sua vida por causa de mim, vai encontrá-la”. Nessa frase, está descrito, com outras palavras, o mesmo tema da nossa reflexão. Pensar de acordo com o mundo é querer salvar a vida pelas aparências, isso vai acarretar a sua perda. Pensar diferente do mundo é, aparentemente, perder a vida, mas só assim o verdadeiro discípulo de Cristo vai encontrá-la. E a promessa de Cristo é bastante alentadora: “o Filho do Homem virá na glória do seu Pai, com os seus anjos, e então retribuirá a cada um de acordo com a sua conduta”. (Mt 16, 27).

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