COMENTÁRIO LITÚRGICO – 21º DOMINGO COMUM – A LIDERANÇA NO SERVIÇO – 24.08.2014
Caros Confrades,
Neste 21º domingo comum, a liturgia coloca para nossa reflexão um tema importante e ao mesmo tempo polêmico, qual seja o da liderança de Pedro. Afinal, Jesus quis mesmo instituir Pedro como “chefe” da sua Ekklesia? Esse trecho de Mateus (16, 17-19) foi utilizado historicamente para fundamentar a teoria do primado de Pedro e, por via de consequência, a autoridade do Papa como “chefe” da Igreja universal. Mas será que Cristo, de fato, pretendeu isso? Ele que sempre ensinou e deu exemplo da liderança pelo serviço? Ele que sempre se recusou a ser considerado como chefe do seu grupo de discipulos? Ele sempre ensinou e insistiu: o que se julgar ser maior do que os outros seja aquele que serve mais, ou quem se julgar o maior, que seja o menor. A clareza na solução das discussões em torno desse tema é a chave para a re-união das Igrejas ocidental e oriental.
Temos na primeira leitura, retirada do livro de Isaías (22, 19-23), uma repreensão do Profeta contra Sobna, o administrador do palácio real no tempo do rei Ezequias. Este administrador desobedecera a ordem de Javeh, quando o exército da Assiria estava prestes a invadir Jerusalém. Javeh mandou que todos fizessem penitência, no entanto, Sobna mandou fazer banquetes para todos, dizendo: vamos comer hoje, porque amanhã iremos todos morrer. Ou seja, Sobna não apenas desobedeceu a Javeh como ainda duvidou do poder de Javeh contra os inimigos do povo, por isso o profeta Isaías foi avisá-lo de que ele seria destituído daquele cargo e, no seu lugar, assumiria Eliakim, filho de Helcias. Podemos associar a figura de Sobna à do administrador infiel. Ele desconheceu totalmente a autoridade em nome de quem exercia o poder e, com seu mau exemplo, transmitiu a desconfiança ao povo, levando os hebreus a duvidarem também do seu próprio rei Ezequias. Ao invés de exercer a liberança a serviço do povo, Sobna fazia na verdade um desserviço, por isso, Javeh irá substitui-lo por um outro administrador, como disse o Profeta: “eu o vestirei com a tua túnica e colocarei nele a tua faixa, porei em suas mãos a tua autoridade; ele será um pai para os habitantes de Jerusalém e para a casa de Judá.” (Is 22, 21) A liturgia utiliza esse episódio de Sobna para fazer o contraponto com o trecho do evangelho de Mateus, no qual Jesus vai instituir Pedro como a “pedra” fundamental da Igreja.
Na segunda leitura, um trecho em continuidade da Carta aos Romanos, que vem sendo lida já há vários domingos, o Apóstolo louva a riqueza, a sabedoria e a ciência divinas. Esse hino de louvor, da forma como está apresentado na liturgia, fica melhor entendido se for contextualizado. Nas linhas anteriores, Paulo está explicando aos Romanos que nós, pessoas humanas, estávamos iguais a ramos que foram cortados de uma oliveira e Cristo, com o seu sacrifício, nos reinseriu na árvore, dando-nos de novo a vida. Paulo lembra aos Romanos que os judeus se recusaram a ser reinseridos na oliveira, por causa da incredulidade deles, mas ele (Paulo) está convocando os gentios para aquele lugar recusado pelos judeus. Por isso, ele proclama: “Ó profundidade da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são inescrutáveis os seus juízos e impenetráveis os seus caminhos!” (11, 33) Paulo utiliza um argumento bem acessível e convincente, de modo a conseguir a adesão dos romanos cultos à doutrina cristã. Os romanos daquele tempo estavam muito influenciados pela filosofia grega, sobretudo pelo moralismo dos pós-socráticos e Paulo servia-se dessa situação para mostrar que o cristianismo era superior ao moralismo grego. E com isso ele conquistou numerosos adeptos entre os romanos, aqueles que se reuniam nas catacumbas para ouvir a pregação dele e receber o batismo.
Na leitura do evangelho de Mateus (16, 13-20), Jesus interroga seus discípulos sobre o que as pessoas falam a respeito d'Ele. “O que dizem os homens sobre o Filho do Homem?” As respostas são várias: João Batista ou Elias ou Jeremias, ou algum profeta que ressuscitou. Foi quando Pedro sintetizou: Tu és o Cristo de Deus. E Jesus advertiu os discípulos para que não espalhassem essa informação. Até aqui, o trecho do evangelho de Mateus (16, 13-17) é semelhante aos outros dois sinóticos: Marcos (8, 27-30) e Lucas (9, 18-21). O problema começa no versículo seguinte, que dá continuidade à fala de Jesus: tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha igreja e as forças do mal não prevalecerão contra ela. Sabe-se que pairam fortes suspeitas de que, durante a Idade Média, antes que fosse definido o cânon dos livros da Bíblia, certos trechos das escrituras tenham sido propositalmente “editados” de modo a servir de fundamento a algumas doutrinas que começaram a ser divulgadas. O fato de que os outros dois evangelhos terminam o seu relato na parte em que Pedro diz: Tu és o Cristo de Deus e somente o evangelho de Mateus contém aquela parte restante levanta sérias dúvidas de que esse trecho final teria sido uma inserção que não constava nos manuscritos originais, com o objetivo específico de dar um fundamento bíblico à autoridade de Pedro como “chefe” da Igreja. Tanto assim é que os Patriarcas das igrejas orientais não concordaram quando o Bispo de Roma se arvorou na autoridade de chefe acima da autoridade deles, levando até o cisma, que ainda hoje persiste. De fato, sabe-se que os evangelhos denominados de sinóticos são compilações de documentos mais antigos, manuscritos que circulavam nas primeiras comunidades cristãs formadas logo após a ressurreição de Cristo, por isso suas passagens guardam grande semelhança. Qual seria a explicação para esse trecho dos versículos 18 e 19 se encontrarem apenas na compilação de Mateus? Por que os outros dois evangelistas não citam isso? Não há resposta uniforme e clara para essas perguntas.
Não obstante isso, é importante deixar claro que essas são dúvidas acadêmicas e que há de ser prestigiado o texto oficial, que é reconhecido como autêntico. Mesmo assim, a situação está longe de ser pacificada, porque surge outra questão igualmente importante. Ainda que Pedro tenha sido formalmente indicado por Cristo para liderar o grupo dos apóstolos após a sua paixão, que ocorreria logo depois desses eventos, vem a outra dúvida séria: a autoridade dada a ele por Cristo era para ser o chefe mesmo, isto é, para ele ter um nível hierárquico superior aos demais?
A propósito dessa questão, trago aqui um trecho de um artigo do Cardeal Orani Tempesta, Arcebispo do Rio de Janeiro: “O Papa Emérito Bento XVI ensinou que: "A Cátedra de Pedro evoca outra recordação: a conhecida expressão de Santo Inácio de Antioquia que, na sua Carta aos Romanos, designa a Igreja de Roma como «aquela que preside à caridade» (Inscr.: PG 5, 801). Com efeito, o fato de presidir na fé está inseparavelmente ligado à presidência no amor. Uma fé sem amor deixaria de ser uma fé cristã autêntica. Mas as palavras de Santo Inácio contêm ainda outro aspecto, muito mais concreto: de fato, o termo «caridade» era usado pela Igreja primitiva para indicar também a Eucaristia. Efetivamente, a Eucaristia é Sacramentum caritatis Christi, por meio do qual Ele continua a atrair a Si todos nós, como fez do alto da cruz (cf. Jo 12, 32). Portanto, «presidir à caridade» signi-fica atrair os homens num abraço eucarístico – o abraço de Cristo – que supera toda a barreira e estranheza, criando a comunhão entre as múltiplas diferenças."(*) Ora, meus amigos, presidir na caridade significa estar a serviço. Foi justamente o que Cristo fez na última ceia, quando amarrou uma toalha na cintura e passou a lavar os pés dos apóstolos. E ainda disse: eu vos dei o exemplo para que façais o mesmo. “O maior de vocês deve ser aquele que serve.” (Mt 25,11) Infelizmente, a doutrina do primado de Pedro e dos seus sucessores no bispado de Roma não foi sempre tomada nesse sentido. Ao contrário, a autoridade romana se tornou símbolo de monarquia, de autoritarismo, de poder concentrado, isso durante muitos séculos. Pelo que eu conheço da história dos Papas, eu destacaria somente dois, os quais eu posso dizer que presidiram na caridade: o Papa João XXIII e o atual Papa Francisco. Todos os demais foram sempre supremas majestades, que exerciam autoridade política acima até dos governantes estatais, que usavam a tríplice coroa como símbolo dos poderes religioso, material e político. Certamente, não foi isso que Cristo transmitiu a Pedro e esse foi o grande motivo para a cisão das igrejas orientais, que não aceitaram a submissão ao Bispo de Roma.
Que o Divino Mestre inspire o Papa Francisco a presidir realmente na caridade e assim possamos ter novamente a união de todos os cristãos dentro da mesma comunidade.
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(*) OBS: Para quem quiser ler o artigo completo de Dom Orani, é só seguir o link: http://www.cnbb.org.br/eventos-1/muticom/13641-a-catedra-de-pedro
Caros Confrades,
Neste 21º domingo comum, a liturgia coloca para nossa reflexão um tema importante e ao mesmo tempo polêmico, qual seja o da liderança de Pedro. Afinal, Jesus quis mesmo instituir Pedro como “chefe” da sua Ekklesia? Esse trecho de Mateus (16, 17-19) foi utilizado historicamente para fundamentar a teoria do primado de Pedro e, por via de consequência, a autoridade do Papa como “chefe” da Igreja universal. Mas será que Cristo, de fato, pretendeu isso? Ele que sempre ensinou e deu exemplo da liderança pelo serviço? Ele que sempre se recusou a ser considerado como chefe do seu grupo de discipulos? Ele sempre ensinou e insistiu: o que se julgar ser maior do que os outros seja aquele que serve mais, ou quem se julgar o maior, que seja o menor. A clareza na solução das discussões em torno desse tema é a chave para a re-união das Igrejas ocidental e oriental.
Temos na primeira leitura, retirada do livro de Isaías (22, 19-23), uma repreensão do Profeta contra Sobna, o administrador do palácio real no tempo do rei Ezequias. Este administrador desobedecera a ordem de Javeh, quando o exército da Assiria estava prestes a invadir Jerusalém. Javeh mandou que todos fizessem penitência, no entanto, Sobna mandou fazer banquetes para todos, dizendo: vamos comer hoje, porque amanhã iremos todos morrer. Ou seja, Sobna não apenas desobedeceu a Javeh como ainda duvidou do poder de Javeh contra os inimigos do povo, por isso o profeta Isaías foi avisá-lo de que ele seria destituído daquele cargo e, no seu lugar, assumiria Eliakim, filho de Helcias. Podemos associar a figura de Sobna à do administrador infiel. Ele desconheceu totalmente a autoridade em nome de quem exercia o poder e, com seu mau exemplo, transmitiu a desconfiança ao povo, levando os hebreus a duvidarem também do seu próprio rei Ezequias. Ao invés de exercer a liberança a serviço do povo, Sobna fazia na verdade um desserviço, por isso, Javeh irá substitui-lo por um outro administrador, como disse o Profeta: “eu o vestirei com a tua túnica e colocarei nele a tua faixa, porei em suas mãos a tua autoridade; ele será um pai para os habitantes de Jerusalém e para a casa de Judá.” (Is 22, 21) A liturgia utiliza esse episódio de Sobna para fazer o contraponto com o trecho do evangelho de Mateus, no qual Jesus vai instituir Pedro como a “pedra” fundamental da Igreja.
Na segunda leitura, um trecho em continuidade da Carta aos Romanos, que vem sendo lida já há vários domingos, o Apóstolo louva a riqueza, a sabedoria e a ciência divinas. Esse hino de louvor, da forma como está apresentado na liturgia, fica melhor entendido se for contextualizado. Nas linhas anteriores, Paulo está explicando aos Romanos que nós, pessoas humanas, estávamos iguais a ramos que foram cortados de uma oliveira e Cristo, com o seu sacrifício, nos reinseriu na árvore, dando-nos de novo a vida. Paulo lembra aos Romanos que os judeus se recusaram a ser reinseridos na oliveira, por causa da incredulidade deles, mas ele (Paulo) está convocando os gentios para aquele lugar recusado pelos judeus. Por isso, ele proclama: “Ó profundidade da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são inescrutáveis os seus juízos e impenetráveis os seus caminhos!” (11, 33) Paulo utiliza um argumento bem acessível e convincente, de modo a conseguir a adesão dos romanos cultos à doutrina cristã. Os romanos daquele tempo estavam muito influenciados pela filosofia grega, sobretudo pelo moralismo dos pós-socráticos e Paulo servia-se dessa situação para mostrar que o cristianismo era superior ao moralismo grego. E com isso ele conquistou numerosos adeptos entre os romanos, aqueles que se reuniam nas catacumbas para ouvir a pregação dele e receber o batismo.
Na leitura do evangelho de Mateus (16, 13-20), Jesus interroga seus discípulos sobre o que as pessoas falam a respeito d'Ele. “O que dizem os homens sobre o Filho do Homem?” As respostas são várias: João Batista ou Elias ou Jeremias, ou algum profeta que ressuscitou. Foi quando Pedro sintetizou: Tu és o Cristo de Deus. E Jesus advertiu os discípulos para que não espalhassem essa informação. Até aqui, o trecho do evangelho de Mateus (16, 13-17) é semelhante aos outros dois sinóticos: Marcos (8, 27-30) e Lucas (9, 18-21). O problema começa no versículo seguinte, que dá continuidade à fala de Jesus: tu és Pedro e sobre essa pedra edificarei a minha igreja e as forças do mal não prevalecerão contra ela. Sabe-se que pairam fortes suspeitas de que, durante a Idade Média, antes que fosse definido o cânon dos livros da Bíblia, certos trechos das escrituras tenham sido propositalmente “editados” de modo a servir de fundamento a algumas doutrinas que começaram a ser divulgadas. O fato de que os outros dois evangelhos terminam o seu relato na parte em que Pedro diz: Tu és o Cristo de Deus e somente o evangelho de Mateus contém aquela parte restante levanta sérias dúvidas de que esse trecho final teria sido uma inserção que não constava nos manuscritos originais, com o objetivo específico de dar um fundamento bíblico à autoridade de Pedro como “chefe” da Igreja. Tanto assim é que os Patriarcas das igrejas orientais não concordaram quando o Bispo de Roma se arvorou na autoridade de chefe acima da autoridade deles, levando até o cisma, que ainda hoje persiste. De fato, sabe-se que os evangelhos denominados de sinóticos são compilações de documentos mais antigos, manuscritos que circulavam nas primeiras comunidades cristãs formadas logo após a ressurreição de Cristo, por isso suas passagens guardam grande semelhança. Qual seria a explicação para esse trecho dos versículos 18 e 19 se encontrarem apenas na compilação de Mateus? Por que os outros dois evangelistas não citam isso? Não há resposta uniforme e clara para essas perguntas.
Não obstante isso, é importante deixar claro que essas são dúvidas acadêmicas e que há de ser prestigiado o texto oficial, que é reconhecido como autêntico. Mesmo assim, a situação está longe de ser pacificada, porque surge outra questão igualmente importante. Ainda que Pedro tenha sido formalmente indicado por Cristo para liderar o grupo dos apóstolos após a sua paixão, que ocorreria logo depois desses eventos, vem a outra dúvida séria: a autoridade dada a ele por Cristo era para ser o chefe mesmo, isto é, para ele ter um nível hierárquico superior aos demais?
A propósito dessa questão, trago aqui um trecho de um artigo do Cardeal Orani Tempesta, Arcebispo do Rio de Janeiro: “O Papa Emérito Bento XVI ensinou que: "A Cátedra de Pedro evoca outra recordação: a conhecida expressão de Santo Inácio de Antioquia que, na sua Carta aos Romanos, designa a Igreja de Roma como «aquela que preside à caridade» (Inscr.: PG 5, 801). Com efeito, o fato de presidir na fé está inseparavelmente ligado à presidência no amor. Uma fé sem amor deixaria de ser uma fé cristã autêntica. Mas as palavras de Santo Inácio contêm ainda outro aspecto, muito mais concreto: de fato, o termo «caridade» era usado pela Igreja primitiva para indicar também a Eucaristia. Efetivamente, a Eucaristia é Sacramentum caritatis Christi, por meio do qual Ele continua a atrair a Si todos nós, como fez do alto da cruz (cf. Jo 12, 32). Portanto, «presidir à caridade» signi-fica atrair os homens num abraço eucarístico – o abraço de Cristo – que supera toda a barreira e estranheza, criando a comunhão entre as múltiplas diferenças."(*) Ora, meus amigos, presidir na caridade significa estar a serviço. Foi justamente o que Cristo fez na última ceia, quando amarrou uma toalha na cintura e passou a lavar os pés dos apóstolos. E ainda disse: eu vos dei o exemplo para que façais o mesmo. “O maior de vocês deve ser aquele que serve.” (Mt 25,11) Infelizmente, a doutrina do primado de Pedro e dos seus sucessores no bispado de Roma não foi sempre tomada nesse sentido. Ao contrário, a autoridade romana se tornou símbolo de monarquia, de autoritarismo, de poder concentrado, isso durante muitos séculos. Pelo que eu conheço da história dos Papas, eu destacaria somente dois, os quais eu posso dizer que presidiram na caridade: o Papa João XXIII e o atual Papa Francisco. Todos os demais foram sempre supremas majestades, que exerciam autoridade política acima até dos governantes estatais, que usavam a tríplice coroa como símbolo dos poderes religioso, material e político. Certamente, não foi isso que Cristo transmitiu a Pedro e esse foi o grande motivo para a cisão das igrejas orientais, que não aceitaram a submissão ao Bispo de Roma.
Que o Divino Mestre inspire o Papa Francisco a presidir realmente na caridade e assim possamos ter novamente a união de todos os cristãos dentro da mesma comunidade.
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