domingo, 28 de dezembro de 2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO - FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA - 28.12.2014

COMENTÁRIO LITÚRGICO – FESTA DA SAGRADA FAMÍLIA – 28.12.2014

Caros confrades,

Neste domingo que sucede o Natal, a liturgia celebra a festa da Sagrada Família de Nazaré, exemplo de fidelidade à sua religião judaica. Convém não esquecer que Jesus era judeu, Maria era judia e José era judeu também. Certa vez, assistindo aulas de hebraico, um aluno perguntou à professora quem é Jesus para os judeus. Resposta dela: Jesus é um judeu famoso, como existiram vários outros. Aí termina o significado da figura de Jesus para a religião judaica. Porém, no evangelho de hoje, lemos o relato da profecia de Simeão, ao ver aquele menino de poucos dias, que chegava com seus pais ao templo de Jerusalém, para a consagração, conforme estava previsto na lei de Moisés. Simeão viu naquele menino judeu o Messias prometido, coisa que os demais judeus de ontem e de hoje ainda não perceberam.

Temos na primeira leitura, retirada do livro do Eclesiástico (que em hebraico, diz-se Ben Sirac), as lições da tradição judaica sobre o respeito que os membros da família devem ter entre si: os filhos para com os pais, estes para com os filhos e o casal, um em relação ao outro: “Quem respeita a sua mãe é como alguém que ajunta tesouros. Quem honra o seu pai, terá alegria com seus próprios filhos; e, no dia em que orar, será atendido. Quem respeita o seu pai, terá vida longa, e quem obedece ao pai é o consolo da sua mãe.” (Eclo 3, 5-7) De acordo com os estudiosos da Bíblia, este livro foi escrito aproximadamente 200 anos antes de Cristo, ou seja, mais de dois mil anos atrás e a sabedoria do povo de Deus do antigo testamento continua plenamente atual e aplicável aos nossos dias. Este texto era lido nos templos cristãos desde os princípios do cristianismo, embora não fosse considerado sagrado para os judeus. Estes o consideravam mais um livro histórico e referencial da sabedoria dos antigos, mas não exatamente “palavra de Deus”, talvez por seu conteúdo acentuadamente humanístico. Na nomenclatura de hoje, seria considerado um livro de conteúdo psicológico, de formação humana para a juventude, mas os cristãos sempre o consideraram um livro inspirado e o seu conteúdo, que atravessou inúmeras gerações e permanece como roteiro de vida plena e justa, é merecedor do nosso respeito e digno de ser posto em prática. Sobretudo o conselho referente à senectude dos pais: “Mesmo que ele esteja perdendo a lucidez, procura ser compreensivo para com ele.” Esta recomendação é muito oportuna nos dias de hoje, quando se veem pessoas deixando seus pais ou parentes idosos em asilos, porque não querem ter trabalho com essas pessoas, principalmente se são acometidas com algum tipo de demência. E continua o sábio judeu: “a caridade feita a teu pai não será esquecida, mas servirá para reparar os teus pecados.” Na época em que esse texto foi escrito, talvez ainda não existissem as morbidades da vida contemporânea, porque naquele tempo poucas pessoas tinham vida longa, diferentemente de hoje, quando a população envelhecida cresce até mais do que o número de nascimentos. O sábio conselho do Eclesiástico merece ser lido e meditado por todos nós, especialmente por nossos jovens.

Na segunda leitura, da carta de Paulo aos Colossenses (Cl 3, 12-21), o apóstolo exorta os cristãos daquela cidade sobre os deveres recíprocos dos familiares de perdão, de misericórdia, bondade, humildade, mansidão e paciência, “suportando-vos uns aos outros e perdoando-vos mutuamente, se um tiver queixa contra o outro.” E em relação ao casal, ele traz conselhos bem específicos: “Esposas, sede solícitas para com vossos maridos, como convém, no Senhor. Maridos, amai vossas esposas e não sejais grosseiros com elas.” E complementa: “Filhos, obedecei em tudo aos vossos pais, pois isso é bom e correto no Senhor.” Ora, meus amigos, temos aqui uma nova manifestação da sabedoria judaica nos princípios do cristianismo. Embora escrevendo para as comunidades de língua grega, no entanto, Paulo era judeu, tinha formação judaica e o seu aprendizado primeiro se deu nas sinagogas. Convertido ao cristianismo, obviamente, ele permaneceu com o modo de pensar do judaísmo, porque essa era a sua formação. Portanto, os conselhos que Paulo dá aos cristãos de Colossos são inspirados, certamente, na mesma sabedoria escrita por Ben Sirac, ou seja, na milenar experiência do povo judeu, que aprendeu esse modo de ser a partir das orientações dos seus profetas, que por sua vez as recebiam de Javeh. Eu estive lendo uns artigos de um professor da Universidade Hebraica de Jerusalém, nos quais ele defende essa idéia das origens judaicas do cristianismo, que foi posteriormente influenciado pela cultura grega, e seus estudos me parecem bastante coerentes. Com efeito, na época de Paulo, essa helenização do cristianismo ainda não ocorrera, Paulo tinha o pensamento marcadamente judaico, embora inspirado pela fé cristã. Foi a partir de Santo Agostinho, no século IV, e depois com Santo Tomás, no século XIII, que se fez a opção pela matriz filosófica grega e isso trouxe inúmeras influências nem sempre benignas para o desenvolvimento da teologia cristã. Nos dias de hoje, há todo um esforço de vários estudiosos para recuperarem esse modelo primitivo da fé cristã anterior à influência grega, como ocorre desde os primórdios entre as igrejas católicas orientais. Nestas, a influência grega não se fez presente, de modo que a tendência é forte no sentido da unificação dessas comunidades, um esforço que teve início ainda com o Papa Paulo VI, que fez a primeira visita a um Patriarca oriental, após quase mil anos de cisão entre as igrejas. Quanto mais a teologia católica ocidental for capaz de se libertar das categorias do pensamento grego, tanto mais a aproximação entre as igrejas ocidental e oriental se fará sentir.

Na leitura do evangelho de Lucas (Lc 2, 22-40), encontramos o emocionante relato da obediência de José e Maria à lei mosaica. “Quando se completaram os dias para a purificação da mãe e do filho, conforme a Lei de Moisés, Maria e José levaram Jesus a Jerusalém, a fim de apresentá-lo ao Senhor.” De acordo com a lei de Moisés, a mulher ficava impura durante o período da menstruação e também durante o puerpério (aquilo que na nossa cultura chamamos de resguardo). Nesses dias, a mulher não podia ir ao templo e devia evitar ter contato com outras pessoas, porque que dela se aproximasse, também ficaria impuro. Quanta discriminação cultural com as nossas benditas mulheres e quanto isso ainda pesa sobre a nossa cultura. Pois bem. Como bons judeus, José e Maria foram levar o filho ao templo, para ser consagrado. E também como mandava a lei, para que o filho não tivesse de permanecer no templo, pagava-se uma “taxa”, de acordo com as posses do casal: os ricos ofereciam bois; os médios ofereciam carneiros; os pobres ofereciam pombos. Daí o relato de Lucas: “Foram também oferecer o sacrifício - um par de rolas ou dois pombinhos - como está ordenado na Lei do Senhor.” A mão divina colocou o intelectual Lucas no lugar certo, na época certa. Foi graças à sua presença constante na casa de Maria que ele conseguiu ouvir dela diversos depoimentos que enriquecem suas narrativas. Sem isso, nós não saberíamos de muitos detalhes que envolvem a vida de Cristo. Graças a ele e ao seu estilo narrativo, temos uma leitura emocionante desses fatos. A riqueza de detalhes da profecia de Simeão somente Lucas nos traz. José e Maria ficaram boquiabertos com a reação daquele homem de Deus. Eles chegaram ao templo de uma forma pacata e humilde, como faziam as pessoas da sua condição, e teriam certamente passado despercebidos. Mas chegou aquele homem desconhecido e reconheceu naquele menino judeu o Messias prometido pelos profetas. É óbvio que José e Maria sabiam da origem divina do Menino, mas não contaram nada para ninguém, como é que aquele homem sabia? Admirados, ouviram-no dizer: “meus olhos viram a tua salvação, que preparaste diante de todos os povos.” Essa foi a primeira declaração pública acerca da divindade de Jesus e foi feita por uma pessoa do povo, inspirada pelo espírito de Deus. Simeão não era sacerdote, não era chefe religioso, era um homem justo e temente a Deus. Pena que os líderes judaicos daquele tempo não tiveram a mesma sensibilidade e a mesma humildade de Simeão. E ele foi ainda mais além e mais veraz, quando profetizou em relação a Maria: “Quanto a ti, uma espada te traspassará a alma.” Tivemos aí a proclamação de Nossa Senhora das Dores, antecipada pelo velho judeu. Maria, que já tinha compreendido isso desde o evento da anunciação pelo anjo Gabriel, ouviu aquilo e fortificou a sua fé. Esse sofrimento fazia parte do seu “sim”, ela sabia desde o início do quanto teria de suportar no cumprimento daquela sublime missão.

O compromisso com a lei divina e a fidelidade a ela é a grande lição que devemos aprender com a Sagrada Família de Nazaré. Que o seu exemplo continue inspirando as nossas famílias no seguimento dos ensinamentos cristãos.

Cordial abraço a todos e votos de Feliz Ano Novo.

Antonio Carlos

Nenhum comentário:

Postar um comentário