COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO
DA PÁSCOA – PASTORES PÓS-MODERNOS – 26.04.2015
Caros Confrades,
Neste 4º domingo da Páscoa, a
liturgia nos traz a conhecida imagem do Bom Pastor (Jo 10, 11). A
figura romântica do pastor de outrora está muito distante do
pastoreio dos dias atuais. Mesmo nos povoados mais distantes, no meio
do sertão, já não se pastoreia mais como antigamente. Os nossos
cuidadores de animais agora andam de motocicleta e os rebanhos são
enxotados ao ronco dos motores, aquela figura tradicional do pastor,
do vaqueiro, do boiadeiro já faz parte do folclore e certamente não
haverá retrocesso nisso. Devemos, portanto, repensar nessa figura,
que já foi tão simbólica no passado, mas que não faz mais
qualquer sentido evocá-la no mundo moderno.
Na época de suas pregações, Jesus
utilizava, na sua pedagogia catequética, as imagens conhecidas pelas
pessoas da região, preferencialmente, a do pescador-peixe e do
pastor-ovelha. Em diversas ocasiões, ele usou figuras e ações
ligadas à profissão do pescador para associar com a missão do
cristão; outras vezes, o tema foi a figura do pastor, como no caso
da leitura deste domingo. A liturgia de hoje pede orações pelos
nossos pastores, pelos vocacionados, religiosos e religiosas. Fico
procurando na minha mente associar a imagem do pastor às autoridades
eclesiásticas que temos e chego à conclusão de que muito poucas
delas poderiam se enquadrar nesse estereótipo. Com raras exceções,
não existem mais nos dias de hoje padres como o Cura d'Ars, como
Frei Damião, Padre José de Anchieta, só para citar alguns mais conhecidos e que realmente faziam o autêntico pastoreio. Quero
fazer aqui uma menção especial a Dom Aloísio Lorscheider, que
representava, para mim, a figura típica do pastor dos tempos
pós-modernos. O que vemos no comportamento de muitos ordenados dos
dias atuais são simples profissionais, preocupados com um “salário”
que a paróquia lhe possibilita, com um “emprego” paralelo em
algum colégio ou faculdade, com um veículo para se locomoverem, com
uma casa confortável de moradia, ou seja, um profissional liberal,
como existem tantos outros na sociedade. O diferencial do pastoreio
fica totalmente esquecido. Sinto-me triste em afirmar isso, mas
lamentavelmente é assim a nossa realidade eclesiástica atual. Por
isso, não farei comentários sobre essa figura romântica da
catequese tradicional, atendo-me a outros temas postos nas leituras
deste domingo.
Na primeira leitura, da carta de João
(1Jo 3,2), o Apóstolo, com a sua linguagem carinhosa do pai idoso,
diz que o grande presente que recebemos de Cristo foi o de sermos
chamados filhos de Deus, “desde
já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que
seremos!”. Eu
entendo que João quer afirmar que, por ora, mesmo sendo pecadores e
frágeis, já temos esse dom de sermos chamados 'filhos de Deus', o
que será realizado em plenitude quando Jesus se manifestar em nós,
porque então seremos semelhantes a ele. Penso que aqui João está
se referindo explicitamente à nossa ressurreição, quando morrermos
em Cristo e formos com ele ressuscitados. É como se a situação
atual fosse uma antecipação do que acontecerá no futuro, para que,
através do nosso testemunho, outras pessoas possam também acreditar
em Jesus, filho de Deus. Se o mundo não nos conhece, continua João,
é porque não conheceu o Pai. Ora, somente através de Cristo, é
possível chegar até o Pai. Nós, enquanto cristãos, temos essa
missão de testemunhar Cristo perante o mundo, para que assim o mundo
conheça o Pai.
Coerente com este mesmo tema é a
primeira leitura, retirada do livro dos Atos dos Apóstolos (At 4,8),
que relata um discurso de Pedro perante os membros do Sinédrio
judaico, em mais um interrogatório pelo qual passavam, por estarem
realizando milagres em nome de Jesus. Muito inspirado pelo Espírito
Santo, Pedro diz que não existe, debaixo do céu, nenhum outro nome
pelo qual possamos ser salvos. Essa afirmação de Pedro, que também
está presente na carta de Paulo aos Filipenses (2, 10): ao nome de
Jesus, todo joelho se dobre... e toda língua confesse que Jesus é o
Senhor. Esse tema é muito preferido entre os pregadores não
católicos, desde Lutero, quando a catequese tradicional afirmava que
fora da Igreja não havia salvação. Eles dizem que o catolicismo
distorce a palavra de Cristo, ao transferir para a Igreja uma
prerrogativa que é do Senhor. Sob certo aspecto, não lhes tiro a
razão, sobretudo no exagerado devocionismo que marca a religião
tradicional. No entanto, a Igreja somente poderá ser local de
salvação se estiver unida a Cristo, afinal Ele é a única porta,
aliás a porta estreita (Mt 7, 13), porque larga e espaçosa é a
porta que conduz à perdição.
No domingo passado, fiz referência
aqui ao discurso de Gamaliel no Sinédrio, quando Pedro e João eram
interrogados por estarem pregando o cristianismo. Nas leituras
litúrgicas do meio da semana, foram lidos diversos trechos do livro
dos Atos, sempre referindo-se a ações miraculosas feitas pelos
apóstolos, logo após a ressurreição de Cristo. Foi o caso de um
homem chamado Enéias, que era paralítico e estava acamado fazia 8
anos e Pedro o curou, da mesma forma como Jesus curara outro
paralítico, e este também saiu andando e carregando a cama na qual
jazia pouco tempo antes. Outro milagre de Pedro foi a ressurreição
de uma mulher caridosa, chamada Tabita. A morte dela causou grande
comoção na comunidade, porque ela fazia muito bem aos pobres, que
lamentaram o fato. Pedro estava na cidade e foi avisado e,
dirigindo-se até lá, orou pedindo a Jesus que a ressuscitasse, e
isso aconteceu. E diz o texto: todos ficaram maravilhados e muitos
habitantes creram em Jesus.
Foi por isso que Pedro, cheio de
coragem, encarou os anciãos e os chefes do povo no tribunal e disse
sem meias palavras: nós estamos sendo perseguidos porque fazemos o
bem, pois saibam que fazemos isso em nome daquele Jesus que vós
matastes... Imaginemos a cena: Pedro um pescador, uma pessoa rude e
sem instrução, falando diante dos mestres e doutores da lei, os
donos da sabedoria de Israel. Cumpriu-se aí literalmente aquilo que
Jesus predissera, que eles não se preocupassem com o que iriam
dizer, porque o Espírito falaria através deles. E o curioso é que
Pedro utiliza uma imagem que Jesus havia ensinado aos apóstolos,
sobre a pedra angular rejeitada pelos construtores.
Jesus era verdadeiramente um grande
pedagogo. O conceito da pedra angular não era propriamente da
cultura judaica, mas da engenharia romana, que naquela época era
dominante no território da Palestina. Todos conhecem as famosas
arcadas de Roma, fruto da engenhosa arte dos construtores romanos
que, antes da existência do concreto armado com ferro, conseguiam
fazer vãos enormes que se auto sustentavam, pela colocação de uma
pedra em formato triangular bem no centro do arco, equilibrando o
peso dos semiarcos laterais. Em qualquer foto das construções da
Roma antiga é possível ver a sua presença, e a sua importância
decorre do fato de que, se ela fosse retirada, toda a construção
iria abaixo. Jesus traz para a sua pedagogia uma imagem importada,
que não era nativa da cultura judaica, mas que já se tornara
bastante conhecida, por causa da prolongada presença dos romanos na
região. E Pedro repete este conceito perante os mestres da lei e
chefes do povo, reforçando o seu discurso. É pelo nome de Jesus de
Nazaré que este homem está curado diante de vós, conclui Pedro.
Assim como a figura do Bom Pastor ficou
esmaecida nos dias atuais e precisa ser repensada, do mesmo modo, o
modelo tradicional devocionista da religião não pode mais ser
utilizado na formação da nossa juventude. Deixemos isso com os
idosos que aprenderam assim, pois eles não irão mais mudar o modo
de pensar, mas à juventude deve ser ensinada a religião
cristocêntrica. “Em nenhum outro nome há salvação”, continua
repetindo Pedro nos nossos dias. Se nos espelharmos nEle, iremos
refletir essa imagem para os que nos conhecem. Nesse processo, Cristo
se manifestará em nós, como disse João, e seremos semelhantes a
ele. Sem desmerecer a virtude e o exemplo dos santos cristãos que se
destacaram na autenticidade da fé e na vivência da caridade, a
pessoa de Jesus Cristo deve ser o centro da nossa atenção
primordial.
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