COMENTÁRIO LITÚRGICO – 3º DOMINGO
DA PÁSCOA – SE ALGUÉM PECAR – 19.04.2015
Caros Leitorees,
A liturgia deste terceiro domingo da
Páscoa traz dois textos escritos por Lucas e um escrito por João.
Nas três leituras de hoje, encontramos alguma referência ao tema
“pecado”, especialmente na carta de João (2, 1-5), em que ele
diz: se alguém pecar, temos diante do Pai um Defensor. E no
evangelho, Lucas relata a primeira aparição de Cristo aos
apóstolos, após a ressurreição, deixando-os assustados e
medrosos, pensando estarem vendo um fantasma. No final, coloca também
a referência à ressurreição de Cristo que perdoa os pecados de
todo o mundo. Pareceu-me oportuna uma reflexão sobre o conceito do
pecado.
Na primeira leitura, dos Atos dos
Apóstolos (3, 13-19), o autor narra um discurso de Pedro dirigido ao
povo, certamente aos judeus, dado o contexto da fala, porque se
refere a eles dizendo diretamente: vós o entregastes a Pilatos, vós
matastes o autor da vida... porém, se vos arrependerdes, os vossos
pecados serão perdoados. Eu percebi no teor dessa leitura o ranço
que, durante séculos, a liturgia conservou em relação aos judeus
(pérfidos judeus, assim dizia a oração oficial da sexta feira
santa), situação que só começou a se abrandar após o Concílio
Vaticano II, com Paulo VI. Porém, nesse discurso de Pedro, ele mesmo
diz que “agistes por ignorância”, mas desse modo, se cumpriu o
que todos os profetas haviam anunciado. É curiosa essa contradição,
a mesma que durante séculos também perseguiu Judas. Se a ação
deles foi necessária para que se cumprissem as escrituras, então
por que essa discriminação, esse repúdio? Talvez porque eles não
manifestaram arrependimento público, assim como fez Myrian de
Magdala (a Madalena), mas lembremo-nos de que Pedro dirige esse
discurso aos judeus que o ouviam de bom grado, com certeza, em vias
de conversão ao cristianismo. Realmente, essa conduta tradicional do
cristianismo com relação aos judeus configura um pecado histórico,
da mesma forma como foram discriminadas todas as demais religiões
não católicas. Felizmente, estamos testemunhando um processo de
restauração da verdade dos fatos, um esforço dos nossos Papas dos
últimos 50 anos, no sentido de reaproximar os diversos credos, cujas
divergências já provocaram tantas violências ao longo da história.
Eu achei interessante abordar esse tema
do pecado, porque na catequese tradicional, havia uma “lista” de
pecados com as devidas especificações: tal era um pecado leve,
venial, outro tal era um pecado grave, mortal, que podia levar a
pessoa ao inferno, ou seja, criou-se uma tabela moralista na qual se
enquadravam as condutas exteriores das pessoas, deixando de lado o
que verdadeiramente interessa, que é o interior de cada um. A
religião de exterioridades ainda está implantada na cabeça de
muitos católicos, desde bispos e padres até os fiéis leigos.
Deixar de ir à missa no domingo é pecado grave; deixar de fazer a
comunhão na Páscoa é pecado grave; caluniar alguém é pecado
venial; mentir é pecado venial... ora, meus amigos, vamos esquecer
isso. Pecado é o que nos afasta do amor de Deus, pecado é faltar
com a caridade. Até algum tempo atrás, era proibido aos católicos
trabalharem aos domingos, porque esse é o dia do preceito. Nos dias
atuais, em que muitas atividades profissionais envolvem o trabalho
dominical, o católico consciente fica em dificuldade para conciliar
sua fé com a sua profissão. Além disso, observem a expressão “dia
de preceito”, isso indica uma coisa que se deve fazer por
obrigação. Imaginem só, ir à missa porque é obrigação não
adianta de nada, não é isso que Deus quer. Fazer abstinência de
carne na sexta feira santa porque é obrigação não adianta de
nada, não é isso que faz de você um crente, um fiel a Cristo. Tudo
aquilo que é realizado simplesmente porque é obrigação não tem
valor. O agente deve agir porque considera que aquela ação é boa,
é útil, é louvável, é para a glória de Deus, é para o seu bem
espiritual e para o bem de toda a comunidade. Deixar de ajudar ao
irmão necessitado, quando se tem a possibilidade de fazê-lo, mas
não se faz por omissão ou por preguiça ou por desprezo é muito
mais grave do que deixar de ir à missa dominical. E como tem gente
que pensa que, ao ir à missa, está garantindo a sua salvação
eterna. Vejam bem, não estou afirmando que ir à missa não é
importante, estou comparando os dois comportamentos. Ir à missa e
não praticar a caridade com os irmãos é uma atividade vazia de
sentido e de resultados.
Na segunda leitura, o apóstolo João,
com a sua linguagem carinhosa de um pai idoso, admoesta: meus
filhinhos, eu digo isso para que não pequeis; mas se alguém pecar,
fique calmo, você não está perdido, nós temos um defensor junto
do Pai, Jesus Cristo, o Justo. E depois, dá uma alfinetada forte: se
alguém diz que conhece a Deus, mas não guarda seus mandamentos,
esse é um mentiroso. É mais ou menos o que eu escrevi acima, com
outras palavras. E que mandamentos são esses? São aqueles que todos
nós já sabemos de cor: amar a Deus e amar ao próximo, nesses dois,
estão resumidos toda a lei e os profetas. Então, não basta dizer:
Senhor, Senhor... todo mundo se lembra disso. Não adianta se
confessar toda semana, comungar todos os dias, rezar três terços
por dia, etc, se não praticar a caridade. Paulo disse isso naquele
conhecido texto aos Coríntios (1Cor, 13): praticar a religião sem
amor é igual a um sino que tine, só faz barulho, não tem nada no
seu interior. Com outras palavras, diz João: conhecer a Deus sem
cumprir os mandamentos é uma mentira. Não podemos ter assim um
comportamento religioso de mentira, de fachada, de barulho. Então, é
importante o ensinamento de João, porque ele sabe que todos nós
somos imperfeitos, sujeitos a falhas na nossa conduta. Por isso, ele
diz: eu digo isso para que não pequeis; mas, se alguém pecar, tem
um jeito: Jesus é o nosso defensor, é a nossa fé nEle que
possibilita a nossa remissão. Naquele que guarda a sua palavra, o
amor de Deus se realiza plenamente.
Na leitura do evangelho de Lucas (24,
35-48), temos a sequência do episódio conhecido, ocorrido no
próprio domingo da ressurreição, quando Jesus ressuscitado
dialogou com os discípulos que iam para Emaús e os fez voltarem a
Jerusalém. Ainda estavam contando o fato para os outros, quando
Jesus apareceu no meio deles. Aqui estou eu, ressuscitei conforme
prometi. E então, foi relembrar aos apóstolos o que havia lhes
ensinado. Se não fosse essa 'segunda chamada' da pedagogia de Jesus,
os ensinamentos de antes teriam ficado esquecidos, pois os apóstolos
eram homens rudes, não acostumados a leituras e estudos. E no final
da lição, profetizou: no
meu
nome, serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados a todas
as nações, começando por Jerusalém e
vós
sereis testemunhas de tudo isso. Jesus
passou quarenta dias fazendo a reciclagem, dando aulões de reforço
àqueles ex-pescadores, demonstrações fantásticas de seu poder,
para que assim eles se firmassem na fé. Nenhum dos evangelistas
relata que Jesus tenha perguntado a Pedro porque o negara diante dos
palacianos, pois Jesus sabia que o conhecimento deles ainda era muito
superficial, era necessário um aprofundamento, uma revisão geral.
Quando, por fim, receberam o Espírito, então estavam preparados pro
que desse e viesse, foi o que aconteceu. Então, se explica aquele
discurso de Pedro aos judeus, relatado por Lucas na primeira leitura
deste domingo.
Nas leituras da liturgia diária da
semana, são lidos vários trechos dos Atos dos Apóstolos, relatando
as primeiras pregações dos apóstolos, as prisões que eles
sofreram, as chicotadas e a perseguição dos fariseus e saduceus,
proibindo-os de falar em nome de Jesus. Quanto mais eles eram
proibidos de falar, mais falavam. Dentre essas, uma que merece
destaque é a leitura de Atos (5, 34), onde temos o ponderado
discurso de Gamaliel, que era mestre da lei e membro do Sinédrio,
dizendo: 'deixai esses homens irem embora, porque se o projeto deles
for obra humana, daqui a pouco se acaba, mas se for obra divina, vós
não conseguireis detê-los.' E o seu conselho foi seguido pelo
Sinédrio. Através desse conselho de 'deixar os apóstolos irem
embora', Gamaliel estava, com sábia argumentação lógica e
jurídica, ao mesmo tempo, querendo livrar os apóstolos daquela
incômoda situação e ainda insinuando que a obra deles era de
origem divina e que as perseguições não iriam detê-los. Como de
fato, a história comprovou que a profecia de Cristo sobre o anúncio
do Seu nome para o perdão dos pecados de todas as nações foi
testemunhado tanto pelos apóstolos, como é ainda testemunhado por
nós nos nossos dias. Porém, para sermos autênticos discípulos de
Cristo e testemunhas da sua palavra, será necessário desmistificar
o conceito burocrático de pecado, que a pedagogia catequética nos
ensinou, para assumirmos aquele compromisso definido por João:
conhecer a Deus é guardar os mandamentos.
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