COMENTÁRIO LITÚRGICO – 2º DOMINGO
DA PÁSCOA – CRER SEM TER VISTO – 12.04.2015
Caros leitores,
Neste segundo domingo da Páscoa, a
liturgia nos oferece apenas leituras do Novo Testamento – Atos dos
Apóstolos e escritos de João (epístola e evangelho). A leitura dos
Atos sinaliza o tempo inicial das comunidades cristãs, enquanto os
escritos de João representam o pensamento teológico mais evoluído
dos tempos posteriores. Observemos que o evangelho e as cartas de
João são, no aspecto cronológico, os últimos escritos do NT, pois
foram elaborados por volta do ano 100 d. C., muito após João ter
saído do seu exílio na ilha de Patmos, onde escreveu o Apocalipse.
Na tradição medieval, este domingo era conhecido como Pascoela, que
era a oitava da Páscoa. As festas mais importantes, naquela época,
duravam oito dias.
Na leitura dos Atos dos Apóstolos (4,
32-35), o cronista relata a vida das primeiras comunidades cristãs,
onde os convertidos colocavam todos os seus bens à disposição dos
Apóstolos, para divisão entre os irmãos mais necessitados, de modo
que ninguém se sentia dono de alguma coisa, mas tudo era
literalmente de todos. Esse sentimento de comunidade autêntica,
historicamente, só se verificou nesses primeiros tempos, os chamados
tempos apostólicos, pois logo que o cristianismo foi-se divulgando
entre os povos das culturas diversas, e sobretudo após a morte dos
Apóstolos, novas práticas foram-se infiltrando nas comunidades. Tal
sentimento de pertença foi revivido nas nossas congregações
religiosas, também nos tempos românticos até os anos de 1970.
Depois que se iniciou o processo de globalização e com a abertura
pós-conciliar, nem mesmo nas comunidades religiosas houve mais
espaço para esse tipo de conduta solidária. Pensando em termos da
mentalidade contemporânea, apresenta-se como uma vivência utópica
e inexequível, no entanto foi esse o modelo proposto, por exemplo,
por São Francisco, quando disse que os frades não deveriam receber
pecúnia, mas apenas o necessário para o seu sustento. Bem diferente
é a situação nos dias atuais.
Passando agora para a Carta de João,
selecionada pela liturgia deste domingo (5, 1-6) temos duas lições
a destacar: a primeira está no vers. 3: “pois isso é amar a Deus:
observar os seus mandamentos, e os mandamentos de Deus não são
pesados.” Ou seja, trata-se do mandamento do amor, aquele que
Cristo resumiu no lavapés, quando disse: eu vos dou um novo
mandamento – que vos ameis uns aos outros, este é o sinal pelo
qual os cristãos devem ser reconhecidos. Por isso, João diz que os
mandamentos não são pesados, porque não existe algo mais digno e
prazeroso do que amar. E quem ama aquele que gerou amará também o
que d'Ele nasceu. Portanto, ficam em segundo plano aqueles
mandamentos da lei de Moisés, da antiga aliança. Agora, com o novo
mandamento, os antigos 10 são resumidos em apenas 2: amar a Deus e
ao próximo.
A outra lição está no vers. 6: “Este
é o que veio pela água e pelo sangue: Jesus Cristo. Nâo veio
somente com água, mas com a água e o sangue.” João refere-se
claramente ao batismo e ao calvário, isto é, o batismo apenas não
salva, não basta ser batizado, mas é preciso participar também da
morte e ressurreição de Cristo, no sacrifício eucarístico. Para
sermos merecedores da salvação, que conquistamos com o batismo,
devemos participar com Ele da sua cruz através da memória da
redenção, que se renova a cada dia na celebração eucarística.
João reforça o trabalho de Paulo, com o objetivo de evitar certas
deturpações da doutrina cristã por parte dos judeus convertidos,
no tempo das primeiras comunidades cristãs, colocando em choque os
ditames do antigo testamento com o novo testamento. O batismo
representa o final da antiga aliança e a morte- ressurreição de
Cristo representam o início da nova aliança.
Noutro trecho do evangelho de hoje (Jo
20, 19-31), está relatado o episódio da incredulidade de Tomé,
que se transformou em conhecida história popular – o teste de São
Tomé. No vers 22, João diz que Jesus “soprou sobre eles e disse:
recebei o Espírito Santo...” Vemos aqui o Pentecostes descrito por
João, bem diferente das narrações dos outros evangelistas, que
falam em vendaval e línguas de fogo, conferindo uma dimensão bem
mais dramática ao episódio. Na narração joanina, ao contrário,
foi muito tranquilo. Cristo soprou e conferiu o Espírito aos
apóstolos nesta sua primeira 'visita', ao anoitecer daquele dia, o
primeiro da semana. Sem desmerecer as outras narrativas, mas devemos
nos lembrar que João estava lá, enquanto os outros evangelistas não
estavam. Além disso, João escreveu o seu texto depois dos outros
três narradores, o que nos possibilita deduzir que João conhecia o
que os outros haviam escrito, no entanto, ele fez uma descrição
diferente daquele importante evento. Na verdade, João está querendo
destacar fatos importantes que ocorreram “no primeiro dia da
semana”, enfatizando um costume que já se iniciara de mudar o dia
do Senhor para este dia, e não ser mais para o sábado, como era na
tradição judaica.
Outro detalhe interessante: Tomé não
se encontrava com os doze e disse que só acreditaria vendo. Oito
dias depois, isto é, no domingo seguinte, outra ênfase para o
domingo, Jesus apareceu-lhes novamente e mostrou as cicatrizes para o
incrédulo Tomé. João destaca bem esse episódio, talvez com o
intuito de catequizar as novas comunidades acerca da fé em Cristo
sem tê-Lo visto, pois na época em que João escreveu, já fazia
bastante tempo da morte de Cristo. Então, o exemplo de Tomé fazia
uma pedagogia de reforço, para animar os novos cristãos, que não
chegaram a conhecer pessoalmente a Cristo, quando Este disse que:
“bem aventurados os que creram sem ter visto.” E como João sabia
que este escrito ia ser distribuído para muitas comunidades na Ásia
Menor, ele complementa dizendo que Jesus havia realizado muitas
outras maravilhas, que não foram escritas naquele livro, as que
estão escritas são apenas uma amostra de tudo o que Ele havia
feito.
Ainda nesse evangelho de João do
domingo de hoje temos um trecho que suscita grande polêmica, que
está no vers. 23: “a quem perdoardes os pecados, eles lhes serão
perdoados; a quem os retiverdes, serão retidos”. A teologia
considera este versículo como o fundamento teológico do sacramento
da penitência. Muitas vezes, se ouve as pessoas dizendo 'sacramento
da confissão', mas não é bem assim, é o sacramento da penitência
e da reconciliação, decorrente do arrependimento. Conforme se
verifica no texto joanino, Cristo fala em perdoar os pecados
(subentende-se dos arrependidos) e reter, isto é, não perdoar, dos
que não se arrependem. Cristo não disse que o pecador devia ir até
os apóstolos e 'narrar seus pecados' (confessar) para poder ser
perdoado, a ordem de Cristo se concentra no perdão ligado ao
arrependimento. Por que, então, a Igreja Católica coloca como
obrigatória a 'confissão' dos pecados? Essa prática não existia
nas primeiras comunidades, mas foi um costume introduzido pelos
monges, na Idade Média, e que acabou tornando-se regra obrigatória
para os católicos.
Nos primeiros anos após o Concílio
Vaticano II, foi autorizada uma experiência litúrgica chamada de
'confissão comunitária', que foi uma sugestão de alguns grupos de
teólogos conciliares para o retorno da prática original da
penitência, como era nos primeiros tempos da era cristã. Todavia,
as forças conservadoras da teologia, das quais o Papa Bento XVI foi
um notável representante, após algum tempo retiraram essa prática
como não recomendada, podendo ser realizada apenas em ocasiões
especialíssimas e em caráter excepcional. No entanto, sabe-se que
aquele ritual no início da missa, com o ato penitencial, tinha
exatamente essa finalidade de possibilitar o arrependimento dos
fiéis, que então recebiam a benção do perdão. Esse ponto, o
Concílio Vaticano II não teve força suficiente para reformar.
Caros amigos, nós somos herdeiros
daquelas comunidades que não conheceram pessoalmente a Cristo, no
entanto, creram nEle. Nós somos os bem aventurados, conforme Cristo
proclamou, mais do que Tomé e dos outros Apóstolos, que precisaram
ver para crer. A nossa fé se fundamenta na leitura e no testemunho,
por isso, para os outros irmãos, nós devemos dar esse testemunho de
uma fé amadurecida e atuante.
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