COMENTÁRIO LITÚRGICO – 16º DOMINGO
COMUM – MISSÃO DO PASTOR – 19.07.2015
Caros Leitores,
A temática das leituras litúrgicas
deste 16º domingo comum aborda a figura do pastor. No contexto do
povo hebreu, os dois estereótipos mais marcantes, em função das
profissões mais comuns da época, eram o pescador e o pastor. Jesus
Cristo faz uso, com frequência, desses dois modelos profissionais
para reforçar a sua pedagogia catequética direcionada para o povo
simples, de modo a facilitar para eles a compreensão da sua
mensagem. Naquela época, assim como hoje, há os bons e os maus
pastores e, dependendo disso, o cuidado do rebanho será bem ou mal
exercido.
Na primeira leitura, o profeta Jeremias
(23, 1-6), que viveu num tempo de muita infidelidade a Javeh,
praticada pelo rei Josias, levando assim o povo de Deus à idolatria,
lamenta pelos maus pastores: “ai dos pastores que deixam perder-se
e dispersar-se o rebanho, diz o Senhor”. Por falta de compromisso
do rei, o povo relegou a segundo plano a aliança com Javeh e
dedicou-se ao culto dos ídolos, culminando com o cativeiro da
Babilônia. Então Jeremias complementa: “virão dias em que farei
nascer um descendente de Davi, que reinará com sabedoria e fará
valer a justiça e a retidão na terra”. As palavras do Profeta
fazem o prenúncio de Jesus Cristo, descendente de Davi, que viria a
ser “o pastor” exemplar, que não deixará as ovelhas se
perderem. Infelizmente, as palavras do Profeta, proferidas mais de
600 anos antes de Cristo, fazem eco nos dias de hoje, quando vemos
maus exemplos de pastores, que levam à desagregação, em vez de
promoverem a união do rebanho. O Papa Francisco vem fazendo
gigantesco esforço de união das religiões, dando exemplos
concretos de solidariedade e de ecumenismo, mas nem todos os
prelados, infelizmente, seguem-lhe o exemplo. E no âmbito das
comunidades, continuamos a ver lamentáveis atitudes de discórdias
entre grupos, cada qual se autoproclamando verdadeiros discípulos de
Cristo e desagregando o rebanho, em vez de agregar.
No evangelho de Marcos (6, 30-34),
temos a narração de uma das poucas cenas em que transparece o lado
humanitário de Cristo preocupado com o bem estar dos discípulos e,
ao mesmo tempo, vendo a multidão que estava sempre ao seu redor.
“Havia tanta gente chegando e saindo, que não tinham tempo nem
para comer”, diz o evangelista referindo-se a Cristo e seus
discípulos. Eles então se retiram de barco para um lugar deserto, a
fim de descansarem um pouco. Ocorre que a multidão os acompanha ao
longe, pelas margens do lago de Tiberíades, e observava para onde
eles se dirigiam, de modo que chegou ao local rapidamente e assim, ao
desembarcar, Jesus e os apóstolos já os encontram aguardando. Ou
seja, nada de descanso para Jesus e os discípulos.
Diz o evangelista que o Mestre,
vendo-os assim, longe de censurá-los ou de mandá-los embora, ao
contrário, teve compaixão deles porque eram como ovelhas sem
pastor. Cumprindo-se a profecia de Jeremias, acerca do descendente
de Davi, que viria reinar com sabedoria e com justiça, Jesus percebe
que o povo está mal pastoreado, isto é, os sacerdotes e mestres da
lei não cumprem com a sua missão, por isso, mesmo estando
fisicamente cansado, se compadece daquele povo e passa a ensiná-los
muitas coisas. Na sequência desta leitura do evangelho de Marcos,
temos o episódio da multiplicação dos pães, que não é lido
neste domingo, para que o tema litúrgico se concentre na figura do
Bom Pastor.
Conforme Jesus demonstrou com seu
comportamento, a missão de evangelizar tem prioridade total e não
deve ser adiada nem mesmo quando algumas condições não são muito
favoráveis. Analisando certas atitudes dos nossos pastores atuais,
vemos quantas vezes o comodismo e a intolerância levam a um
desserviço do pastoreio. Esse pensamento me fez lembrar agora as
histórias que nos eram contadas, em Messejana, pelo Frei Higino,
pelo Frei Abel, pelo Frei Sabino, Frei Anastácio, que realizaram
aquele serviço religioso que na época era chamado de “desobriga”,
acho que todos se recordam disso. O missionário passava cerca de
três meses fazendo um roteiro de viagem do interior do Nordeste,
montado em um cavalo, passando de cidade em cidade para celebrar
missas, fazer batizados e assistir a casamentos, naquelas comunidades
aonde o padre só chegava uma vez ao ano. Eles contavam as precárias
condições em que se hospedavam, se alimentavam, cuidavam da própria
saúde, tudo em nome da fé e na fidelidade ao ideal franciscano, uma
atitude de heroísmo exemplar, que muito nos entusiasmava. Sem deixar
de mencionar os fatos pitorescos e as histórias engraçadas que,
muitas vezes, estavam associadas às suas narrações.
Esses missionários capuchinhos seguiam
liberalmente o exemplo de Cristo. Mesmo cansado e com fome, ele teve
compaixão do povo e passou a ensinar muitas coisas. Façamos uma
breve reflexão sobre essa expressão “teve compaixão do povo”,
porque a linguagem comum não alcança o seu verdadeiro sentido. Ter
compaixão não significa ter pena ou ter dó de alguém. O texto
latino original diz que Jesus “misertus est super eos”, isto é,
foi misericordioso com eles. A diferença entre ter pena e ter
misericórdia é que ter pena indica um comportamento passivo, de
lamentação, enquanto ter misericórdia leva a uma ação concreta
no sentido de aliviar aquela situação. Uma coisa é ficar
lamentando a situação de alguém e nada fazer (ter pena), outra
coisa é verificar a carência de alguém e partir para uma efetiva
ação em benefício daquela pessoa (ter misericórdia). Compaixão
vem do verbo compadecer, isto é, com+padecer, padecer junto,
colocar-se na situação do irmão que sofre não para fazer-lhe
companhia no sofrimento, mas para retirá-lo daquele estado. Foi isso
o que Cristo fez: vendo a multidão igual a um rebanho sem pastor,
não ficou apenas lamentando a situação, mas acolheu a todos e
passou a ensiná-los. E na sequência do texto, parte não lida neste
domingo, multiplicou os pães para alimentá-los. Jesus não apenas
distribuia o pão da palavra, que alimenta o espírito, mas também
distribuia os pães e os peixes, que alimentam o corpo. Essa é a
atitude exemplar de Cristo, no sentido de ter misericórdia do povo.
Analisando essa atitude de Cristo, meus
amigos, podemos observar o quanto as lideranças religiosas, ao longo
da história, se afastaram desse exemplo de cuidado não apenas com a
dimensão espiritual do povo, mas também com as condições
concretas da existência na sociedade. A religião verdadeira não é
apenas participar da missa e rezar o terço, mas é também
contribuir materialmente para a promoção social das pessoas mais
carentes da comunidade. Após o Concílio Vaticano II, a doutrina
social da Igreja reforçou a necessidade de conscientizar os fiéis
de que a dimensão vertical da religião (homem-Deus) tem um
componente necessário e complementar, que é a dimensão horizontal
(homem-homem), sendo que as duas dimensões devem ser igualmente
realizadas. Foi por isso que o magistério da Igreja, na conferência
de Puebla (1978), assumiu oficialmente o compromisso da opção
preferencial pelos pobres, tendência que foi reforçada em outros
documentos oficiais, como o documento de Aparecida (2007), que assim
sintetizou essa mesma preocupação: “Como um olhar teologal e
pastoral, considera, com acuidade, as grandes mudanças que estão
sucedendo em nosso continente e no mundo, e que interpelam a
evangelização. Analisam-se vários processos históricos complexos
e em curso nos níveis sócio-cultural, econômico, sócio-político,
étnico e ecológico, e se discernem grandes desafios como a
globalização, a injustiça estrutural, a crise na transmissão da
fé e outros”. O exemplo de Cristo, narrado no evangelho deste
domingo, nos mostra claramente que a religião não pode se dissociar
das condições concretas da vida social, sob pena de nos afastarmos
do que Cristo ensinou.
No evangelho deste domingo, portanto,
Cristo vem nos chamar a atenção de que não basta cantar halleluyas
e bater palmas durante as celebrações, pois isso alimenta só o
espírito, mas é preciso também, com o mesmo zelo, promover ações
efetivas no sentido de distribuir os pães e peixes, que alimentam
também o corpo. Alguns dos nossos Pastores precisam urgentemente
acordar dessa letargia ilusória do espiritualismo e do devocionismo,
que tantos malefícios históricos já ocasionaram, abrindo os
ouvidos para o clamor sempre atual do profeta Jeremias.
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