COMENTÁRIO LITÚRGICO – 14º DOMINGO
DO TEMPO COMUM – GRAÇA QUE BASTA – 05.07.2015
Caros Leitores:
A liturgia deste 14º domingo do tempo
comum traz, nas suas leituras, um tema muito importante que é a
doutrina da graça, a graça suficiente, a graça que basta. Deus dá
a todos a sua graça, mas ele não nos puxa pela mão o tempo todo,
espera que nós saibamos construir conscientemente o nosso caminho. E
isso acontece por causa da liberdade humana, que Deus respeita. A
cada um é dada a graça suficiente, porém, se cada pessoa não
fizer também a sua parte, a graça recebida restará ineficaz. A
maior graça divina que nos foi dada é a redenção, trazida por
Cristo. Pela fé nele, nós abrimos o nosso ser para a graça, mas a
salvação de cada um deve ser conquistada com o testemunho dessa fé
através das obras. Se fosse de outro modo, a graça não nos
ajudaria, mas nos anularia como pessoas, porque se poria acima da
liberdade. Desse modo, Deus dá a sua graça mas espera que nós a
aceitemos livremente e ajamos de acordo com ela, para sermos
merecedores dessa distinção.
Na leitura da carta de Paulo a
Coríntios (2Cor 12, 7), esse tema está bem explicado, quando ele
declara que foi espetado na carne por um espinho que é como um anjo
de Satanás a esbofeteá-lo. No texto original grego a palavra é
'skóloph tês sarxi'', que significa estaca na carne (faz lembrar as
histórias de Drácula isso), e no texto latino, a palavra usada por
São Jerônimo é 'stimulus carnis', que nas traduções mais antigas
era vertido como aguilhão na carne. A tradução atual substituiu o
aguilhão por espinho, porém espinho é algo muito brando para
simbolizar a imagem proposta por Paulo. A a palavra grega 'skóloph'
tem um peso muito maior do que simples espinho, simbolizando algo
mais forte e poderoso.
Pois bem, Paulo diz que esse 'skóloph'
foi enfiado na sua carne para que ele não se ensoberbecesse com a
revelação que ele teve, após a sua conversão, quando foi tocado
por Jesus e se transformou em fervoroso discípulo. Por três vezes,
diz ele, pedi ao Senhor que me livrasse disso, mas Ele respondeu:
basta-te a minha graça (2Cor 12, 9). Então, Paulo reflete acerca da
suficiência da graça divina para a nossa salvação, ensinando-nos
a não nos deixarmos sucumbir diante das dificuldades da vida, das
nossas fraquezas, do desânimo e da falta de compreensão, muitas
vezes, daqueles que nos são mais próximos. Quer ele dizer, com
isso, que a graça de Deus que nos é dada não afeta a nossa
condição humana, no sentido de que nós continuamos a possuir as
mesmas imperfeições e ambiguidades da nossa natureza. Acreditar em
Cristo não torna o cristão, humanamente falando, melhor do que o
não crente. Porém, o cristão passa a ter um recurso extra para
superar as suas fraquezas humanas. Diz Paulo que é na fraqueza que a
força se manifesta. E arremata: Porque quando me sinto fraco, então
é que sou forte. Isto é: quando as adversidades me atacam, quanto
mais elas me perseguem, mais eu conto com a graça divina. Por outras
palavras, a graça divina não retira de nós o pecado, mas nos
proporciona condições para vencer o mal e trilhar o caminho do bem.
Aqui é que o resultado vai depender de cada um de nós.
Essa doutrina desenvolvida pela
teologia da graça ensina que Deus dá a todos os homens a graça
suficiente para a salvação, porém, cada um deve fazer a sua parte
para que ela frutifique, contrasta com outro enfoque, aceito por
outras religiões, e que se denomina de predestinação. Segundo
esta, algumas pessoas estão fadadas à condenação, independente do
que venham a fazer. De outro lado, outras pessoas estão escolhidas
para a salvação, não importa o que fizerem na vida. Essa doutrina,
se verdadeira, tornaria inútil qualquer esforço nosso para escolher
o bem e praticar a virtude, além de levar à conclusão de que Deus
seria sumamente injusto conosco, zombando da nossa condição e
desrespeitando a nossa liberdade, o que seria incompatível com a
natureza perfeita da divindade. Por isso, a teologia católica ensina
que a graça nos é dada, sim, sem que a peçamos, porém ela não
opera de forma automática, mas vai depender da forma como cada qual
corresponde aos dons divinos. Ou seja, a graça divina é suficiente,
mas não surtirá efeito sozinha e, portanto, a salvação é um dom
de Deus, mas é também uma conquista de cada um através da sua fé
e das suas obras de misericórdia. Agir em desacordo com a graça é
o que se constitui em pecado e isso termina sendo inevitável, dadas
as imperfeições da nossa natureza. Quando Paulo pediu a Deus:
livra-me do “skóloph”, ele estava querendo dizer “livra-me
dessa condição de pecador”. Mas a resposta divina foi: não, a
graça pode superar o pecado, só depende de você. Eis o nosso
cotidiano desafio.
Esse tema da “graça que basta”
está representado também no evangelho de Marcos (6, 1-6), onde
lemos que Jesus voltou a Nazaré, sua terra, acompanhado dos
discípulos e lá se apresentou na sinagoga, no sábado, para fazer a
leitura da Torah e depois explicá-la para os ouvintes. Foi quando os
fariseus e os doutores da lei se 'escandalizaram' e ficaram se
questionando: quem deu a Ele essa sabedoria? Com que autoridade Ele
vem nos ensinar? Os doutores da lei não admitiam que alguém, que
não pertencesse ao grupo deles, fosse ler na sinagoga e explicar a
palavra de Deus para o povo. Jesus tinha vivido muito tempo em Nazaré
e era conhecido, assim como os seus familiares. Diziam eles: não é
este o filho do carpinteiro José? Nós conhecemos sua mãe, seus
irmãos e irmãs, que ainda moram na cidade. Ora, meus amigos,
aqueles fariseus tiveram diante de si, em pessoa, a própria Graça
divina e não a reconheceram, e a recusaram. É interessante observar
que o verbo 'escandalizar', nesse contexto, nada tem a ver com o
sentido comum dessa palavra na nossa língua, mas significa
descrença, não aceitação, incredulidade. Os fariseus se
escandalizaram com Jesus quer dizer que não o aceitaram como
Messias, não reconheceram n'Ele o prometido por Deus. Portanto,
aqueles fariseus tiveram a graça suficiente, mas pela sua
incredulidade, pela rebeldia de sua vontade, a graça não operou
efeito neles. Talvez se Jesus tivesse se “exibido” diante deles
com algum milagre, tivessem acreditado. Mas tudo indica que não,
porque eles tinham conhecimento dos milagres de Jesus e nem assim
acreditaram. Chegaram até a insinuar que Ele realizava obras
miraculosas porque tinha, como se diz na nossa cultura popular, pacto
com o demônio, estava possuído por Belzebu. E porque Deus respeita
a liberdade humana, por causa da sua falta de fé, a salvação
trazida por Jesus não surtiu efeito no meio deles.
Essa atitude de incredulidade os
fariseus já estava prevista pelo profeta Ezequiel, conforme lemos na
primeira leitura deste domingo. Javeh disse a Ezequiel: vai lá,
apresenta-te ao povo e fala em meu nome, eu sei que não vão
acreditar em ti, porque são (Ez 2, 3): nação
de rebeldes, que se afastaram de mim. Eles e seus pais se revoltaram
contra mim até ao dia de hoje. A estes filhos de cabeça dura
e coração de pedra, vou te enviar
…” E depois acrescenta o profeta: “Quer
te escutem, quer não, ficarão sabendo que houve entre eles um
profeta.” Foi por
isso que Jesus retornou a Nazaré, para que se cumprisse a profecia
pois, crendo ou não, os líderes religiosos do povo estariam sabendo
que o Messias passou entre eles. A mesma atitude de recusa relatada
pelo profeta Ezequiel em tempos passados se repetiu em relação
àquele que, no dizer de João Batista, é mais do que um Profeta,
pois o profeta fala em nome de Deus, mas Jesus falava em nome
próprio. Isso torna a atitude rebelde dos fariseus mais grave e
ofensiva do que a dos seus antepassados, porque estes rejeitaram a
pessoa de um representante de Deus, enquanto os fariseus rejeitaram o
próprio Deus.
Meus amigos, a pedagogia catequética
tradicional promovia uma satanização do pecado, como se este fosse
obra do demônio. Mas podemos concluir, pela leitura da carta de
Paulo, que o pecado é fruto da condição humana e que ele não deve
nos afastar de Deus, mas devemos nos amparar na graça que Deus nos
concede, para superá-lo. Uma antiga oração penitencial dizia
assim: prometo nunca mais pecar... ora, sabemos que isso é
impossível, porque para isso acontecer, teríamos de deixar de ser
humanos. O pecado faz parte da natureza humana e assim é uma
realidade sempre possível na nossa vida. Porém, sabendo que Deus
nos concede a sua graça, temos a confiança de que é sempre
possível também evitá-lo e, em qualquer caso, temos o remédio
para sanar as suas consequências.
Que o Senhor nos ajude sempre a
descobrir em nós a graça que recebemos e nos dê coragem para agir
de acordo com ela.
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