COMENTÁRIO LITÚRGICO – 30º DOMINGO
COMUM – RESTO DE ISRAEL – 25.10.2015
Caros Leitores,
Na liturgia deste 30º domingo comum, a
leitura do profeta Jeremias faz alusão ao “resto de Israel”, uma
expressão também usada pelo profeta Isaías (10, 20), referindo-se
aos israelitas que foram libertados do cativeiro da Babilônia e
haviam de retornar a Jerusalém. O “resto” significa o povo
sobrevivente, aqueles que foram submetidos ao jugo do inimigo e agora
retornam à liberdade. Num certo sentido, todos nós, que caminhamos
no meio das tribulações da vida, fazemos parte deste “resto” do
povo de Deus, a caminho da casa do Pai.
A palavra inspirada do profeta Jeremias
é bastante significativa tanto no contexto histórico do povo
hebreu, quanto no caminhar geral de toda a humanidade. Diz ele: “Eis
que eu os trarei do país do Norte e os reunirei desde as
extremidades da terra; entre eles há cegos e aleijados, mulheres
grávidas e parturientes: são uma grande multidão os que retornam
” (Jr 31, 8). Num primeiro momento, a profecia se dirige aos
cativos da Babilônia, mas no momento seguinte, se refere a todos os
crentes localizados em todos os confins da terra e esse grupo inclui
pessoas sadias e pessoas em situações especiais, porque as
vicissitudes da existência afetam as pessoas de diversas maneiras.
Mas essas provações não devem abalar a fé do cristão, pois mesmo
estando cego, aleijado, parido, necessitado de cuidados, todos serão
conduzidos por um caminho reto para a terra prometida. A descrição
do profeta Isaías é também bastante ilustrativa: “Um
resto voltará, um resto de Jacó, para o Deus forte. Ainda que teu
povo fosse inumerável como a areia do mar, dele só voltará um
resto. A destruição está resolvida, a justiça vai tirar a
desforra." (Is
10,20) .
Isaías é mais enfático em relação àqueles que não aceitarão a
salvação oferecida por Javeh. Embora, em tese, toda a humanidade
seja convidada à salvação, no entanto, nem todos irão atender e
assim a redenção trazida por Cristo não alcançará a todos, mas
apenas ao “resto”, aos sobreviventes da tentação. E por que
isso ocorrerá? Porque Deus não interfere na liberdade das pessoas,
Ele oferece a salvação, mas espera que haja adesão da vontade,
espera que o crente exercite a sua fé na Sua palavra.
A segunda leitura, da carta aos
Hebreus, faz referência ao sacramento da salvação, que é mediado
pelo sumo sacerdote. Trata-se de uma alusão indireta à comunidade
eclesial, onde o crente pratica a sua fé e recebe os meios para
superar os desafios que a vida cotidiana interpõe no nosso meio. O
sacrifício expiatório de Cristo é rememorado pelo sumo sacerdote.
Ele é retirado do meio do povo e, por isso, conhece as dificuldades
e os entraves do existir temporal, portanto, sabe compreender as
fraquezas dos irmãos, porque ele é também afetado por essa
fraqueza. Então, ao oferecer o sacrifício da cruz, ele reza tanto
pelos pecados dos outros, quanto por seus próprios pecados. Cristo
encarregou seus apóstolos e esses os seus sucessores para
continuarem a guiar o “resto” de Israel pelos caminhos do mundo,
mostrando onde ficam as torrentes de água e ensinando o caminho reto
que conduz ao destino esperado. A carta aos Hebreus faz referência
ao sacerdócio de Melquisedec, personagem que é interpretado como
sendo o precursor do sacerdócio de Cristo e, por intermédio de
Cristo, esse mesmo sacerdócio se reproduz nos presbíteros
ordenados. Aquele refrão que antigamente era cantado nas missas
solenes de ordenação é bastante forte e emblemático: tu es
sacerdos in aeternum, secundum ordinem Melchisedech. O sacerdote é,
desse modo, aquele que deve liderar o povo sobrevivente das tormentas
do cotidiano, o “resto” da humanidade salva por Cristo, aqueles
“144 mil assinalados”, de que fala o Apocalipse. Daí decorre a
necessidade de que o fiel se integre na comunidade eclesial, porque
essa condução pelo caminho reto é obra coletiva, não se resolve
individualmente.
Na leitura do evangelho de Marcos,
temos o conhecido episódio da cura do cego de Jericó (10, 46-52),
personagem este que representa a multidão referida pelo profeta
Jeremias, na primeira leitura. Entre os sobreviventes, há cegos,
aleijados, gestantes e parturientes. A liturgia coloca para nossa
reflexão a figura do cego, simbolizando nele todos aqueles que estão
expostos aos perigos e às tentações do mundo infiel, aos
estratagemas da ideologia do poder e do dinheiro, às seduções da
corrupção e da injustiça, ou seja, todos nós. O cego de Jericó é
o protótipo do cristão santo e pecador, crente e duvidoso, são,
mas nem tanto, pois que precisa que Jesus lhe abra os olhos, para que
possa ver melhor o mundo onde habita e progredir na fidelidade à
mensagem cristã.
Vejamos a uma breve notícia de cunho
histórico e geográfico. Jericó é uma das cidades mais citadas nos
evangelhos, porque era já naquela época uma das cidades mais
importantes da Palestina. Sua conquista pelos hebreus, sob o comando
de Josué, quando estavam retornando do Egito, foi uma das mais
memoráveis, então esta cidade era um ícone da nacionalidade
hebraica, um lugar muito visitado. Geograficamente, situa-se a 27 km
de Jerusalém e a 10 km do Mar Morto, sendo considerada pelos
historiadores uma das cidades mais antigas do mundo, pois há
evidências de ter moradias lá desde pelo menos 9.000 anos antes de
Cristo. Este fato fazia com que muitas pessoas visitassem Jericó e,
com isso, havia também muitos pedintes na entrada da cidade, por
onde passavam as caravanas.
Pois bem. Jesus passava por Jericó, a
caminho de Jerusalém, onde o desfecho da sua vida iria acontecer. Na
entrada da cidade, havia um grupo de cegos pedindo esmolas aos
viajantes. O Padre Uchoa, que foi meu professor de Bíblia, comentava
que havia verdadeiros bandos de pedintes nas entradas das grandes
cidades. Lembremo-nos, nos dias de hoje, de cidades como Canindé,
Juazeiro do Norte, apenas para citar algumas do nordeste, onde também
encontramos verdadeiros batalhões de pedintes, vendedores de objetos
e de informações, espertalhões de diversas espécies. Lá devia
ser algo assemelhado. Ao saber que Jesus estava passando, um cego de
nome Bartimeu começou a gritar: Filho de Davi, tem piedade de mim.
De tanto gritar e insistir, Jesus mandou chamá-lo. Diz o evangelista
que ele deu um pulo, largou o manto onde recolhia as moedas que lhe
jogavam como esmola e foi até onde Jesus se encontrava. “Que
queres que eu te faça?”, perguntou Jesus. (Mc 10, 51) E ele
respondeu: Mestre, eu quero ver. E Jesus disse: Assim será, a tua fé
te curou. E ele passou a enxergar e saiu acompanhando Jesus.
Neste diálogo de Jesus com o cego
Bartimeu, podemos ver um exemplo de que o milagre divino não se
opera sem a colaboração do beneficiário. Por certo, junto com
Bartimeu, havia outros cegos, aleijados e necessitados, porém não
foram beneficiados com o fato milagroso, porque não creram. Jesus
fez questão de dizer a ele que foi “a tua fé que te curou”. O
poder divino de Jesus não agiria na sua deficiência, se não
houvesse a sua cooperação com a fé, a sua disponibilidade para
aceitar, a sua coragem para assumir aquela nova situação. É óbvio
que Jesus, pelo seu conhecimento divino, sabia quem estava a gritar
por Ele, sabia que era uma pessoa das mais pobres e excluídas da
sociedade. E também pela sua sabedoria divina, Jesus conhecia a
intensidade da fé daquele mendigo, sabia o que estava subentendido
naquela prece insistente: “Tem piedade de mim”. É como se ele
dissesse: com o teu poder, tira-me dessa situação. E Jesus
retribuiu a sua oração com o milagre da cura, mas foi logo
avisando: foi a tua fé que te curou, ou seja, persevera com esta fé,
ela te renderá a salvação, mantém a fé operante e firme, pela fé
tu és incluído no rol dos sobreviventes. Inspirada neste e noutros
exemplos similares é que a teologia da graça divina ensina que,
embora Deus dê a todos a graça, esta somente age no coração dos
que a aceitam e a ela aderem. Ou por outras palavras, o efeito do
poder divino na nossa vida será proporcional à intensidade da nossa
fé.
Por isso, podemos dizer que, para o
milagre acontecer nas nossas vidas, embora o poder de Deus seja pleno
e absoluto, nossa participação através da fé é indispensável,
porque o poder de Deus não se sobrepõe à nossa vontade, e a fé é
a manifestação mais completa do ato da vontade humana.
É a fé que nos congrega num só
rebanho e agora podemos compreender que o conceito de “resto de
Israel” não é outro senão esse rebanho que segue os passos do
Bom Pastor.
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