COMENTÁRIO LITÚRGICO – 27º DOMINGO
COMUM – MITIS JUDEX – 04.10.2015
Caros Confrades,
Neste 27º domingo comum, a liturgia
comemora o dia da família, inspirando-se no Sínodo sobre a família,
que se inicia hoje no Vaticano, e enfoca o matrimônio cristão,
trazendo para nossa reflexão as leituras do Gênesis e do evangelho
de Marcos. Nestes tempos conturbados, a sociedade brasileira debate
uma proposta de mudança legislativa, que está em discussão no
Congresso Nacional, acerca do “modelo” oficial da organização
familiar, tendo em vista o fato social concreto das uniões de fato
entre pessoas, independente da diferença do gênero
masculino/feminino. Outra questão que o Sínodo sobre a família
aborda, e que é grande preocupação do Papa, é a situação dos
casais de segunda união, isto é, aqueles que são casados pelo rito
religioso e divorciados pelo rito civil, tendo contraído segundas
núpcias. Vale lembrar que, faz poucos dias, o papa Francisco veio de
editar um “motu proprio” (que no Direito Canônico corresponde a
uma espécie de Decreto Presidencial) intitulado “Mitis judex
Dominus Jesus” (O Senhor Jesus juiz compassivo), introduzindo
modificações na legislação eclesial sobre o matrimônio católico,
simplificando o processo de nulidade matrimonial.
Na primeira leitura, retirada do livro
do Gênesis (2, 18-24), temos a conhecida narração bíblica da
denominação dos animais, feita por Adão, seguida de outra narração
também muito enraizada na nossa cultura, que é a da criação da
mulher a partir da costela do homem. Naturalmente, são duas
narrativas de sentido figurado pois, embora no passado se aceitasse
que fossem descrições de fatos acontecidos, na hermenêutica
bíblica contemporânea entende-se como histórias narradas com um
conteúdo pedagógico, para ensinamento do povo hebreu. Na verdade,
são duas parábolas, que devem ser entendidas dentro da simbologia e
do alegorismo.
Nesse sentido alegórico, a parábola
diz que Deus chamou Adão e mandou que ele desse nome aos animais.
Esse “poder” de dar o nome significa, na cultura hebraica, o
domínio que o homem devia ter sobre os animais. Para a cultura
hebraica, dar o nome significava exercer influência sobre o
nominado, quem dá o nome a algo ou a alguém tem autoridade sobre
aquilo ou aquele. No caso, ao dar nomes aos animais, o personagem
Adão simbolizava todos os homens em relação aos animais, ou seja,
a superioridade do homem e o poder dado por Deus para que o homem
utilizasse os animais para se alimentar e para auxiliar no trabalho
de transporte de objetos e no aproveitamento de sua força física. E
para dar destaque à posição da mulher nesse contexto, de acordo
com a descrição bíblica, Adão não encontrou no meio desses
animais “uma auxiliar semelhante a ele” (Gn 2, 20).
Esse detalhe tem a finalidade
pedagógica de ensinar ao povo que a mulher está numa posição
diferente dos animais no seu relacionamento com o homem, que ela está
na mesma hierarquia do homem. Sim, porque nas culturas antigas, era
comum a mulher ser considerada propriedade do homem, um objeto do
qual ele podia dispor como quisesse. O autor bíblico está ensinando
que não é assim, mas que a mulher deve receber do homem um
tratamento diferente dos animais, porque ela é para ele uma espécie
de 'auxiliar' (adjutorium). Para explicar isso, o narrador sagrado
construiu uma historieta, que a hermenêutica bíblica chama de
“legenda”: o sono de Adão e a retirada de sua costela.
Observemos que não há verossimilhança nisso, porque se assim
fosse, haveria um número diferente das costelas do homem no lado
esquerdo em relação ao direito, e não há. O texto bíblico diz
que o lugar de onde teria sido retirada a costela foi preenchido com
carne (Gn 2, 21). Ora, se nós fôssemos tomar essa narrativa ao pé
da letra, como um fato ocorrido, os homens teriam uma costela
faltando, o que não é verídico.
Outro detalhe que merece explicação é
a afirmação de Adão (Gn 2, 23): “Ela
será chamada 'mulher', porque foi tirada do homem'.”
Na nossa língua, essa frase não traz um sentido imediato, mas na
língua hebraica, o autor bíblico faz uma espécie de trocadilho, do
seguinte modo. A palavra 'homem' diz-se em hebraico 'ish' e a palavra
mulher diz-se 'isha'. Por isso ela foi chamada mulher (isha) porque
foi tirada do homem (ish). Apesar disso, historicamente, sabe-se que
tanto a sociedade hebraica, e ainda mais a sociedade romana, baseadas
no patriarcalismo, sempre colocaram a mulher numa posição social de
inferioridade, o que só veio a se modificar nos tempos atuais.
Na leitura do evangelho de Marcos (10,
5), o tema central é o matrimônio e as questões sobre a sua
dissolução. Os fariseus perguntaram a Jesus sobre e legitimidade do
divórcio que, segundo eles, teria sido permitido por Moisés.
Disseram que Moisés havia instituído uma espécie de 'carta de
repúdio' que o homem podia fazer para despedir a mulher. Foi quando
Cristo os censurou, dizendo que Moisés só havia consentido naquilo
por causa da dureza dos corações dos seus ancestrais, mas isso não
pode mudar o projeto divino, pois desde o começo da criação, Deus
fez homem e mulher (“ossos dos meus ossos, carne da minha carne”,
como disse Adão), para que os dois sejam uma só carne, através do
matrimônio, isto é, os dois devem formar juntos as duas metades de
um mesmo ser. E arremata taxativamente: o que Deus uniu, o homem não
separe. (Mc 10, 9)
O texto mosaico referido nessa
discussão, na verdade, encontra-se em Deuteronômio (24, 1): “Se
um homem casar-se com uma mulher e depois não a quiser mais por
encontrar nela algo que ele reprova, dará certidão de divórcio à
mulher e a mandará embora. Se, depois de sair da casa, ela se tornar
mulher de outro homem, e este não gostar mais dela, lhe dará
certidão de divórcio, e a mandará embora”. O livro do
Deuteronômio contém inúmeros preceitos que, sob a aparência de
norma religiosa, são de fato normas civis gerais, que eram usadas
pelos juízes para o julgamento das questões entre os hebreus. De
acordo com antiga tradição, pensava-se que todo o Pentateuco
houvesse sido escrito por Moisés. Atualmente, os estudiosos da
arqueologia bíblica já se convenceram de que não pode ter sido
ele, pois são tradições orais escritas só muitos séculos depois.
Mesmo sem adentrar nessa discussão sobre a autoria de Moisés,
podemos verificar que a “carta de repúdio” não faz parte da Lei
Mosaica, mas trata-se de costume adquirido no percurso do deserto,
por influência dos povos com os quais os hebreus tiveram contato,
sobretudo moabitas e amonitas, os quais tiveram influência muito
forte sobre o povo, sendo este o principal motivo das frequentes
“crises” de idolatria que ocorreram e que deram muito trabalho
aos líderes do povo e aos profetas. Portanto, quando Jesus disse
que, no início não era assim, pois desde
o começo da criação, Deus
os fez homem e mulher
para serem uma só carne, ele quer dizer que a regra do divórcio
fora tolerada por Moisés, dada a grande influência da cultura
estrangeira no meio do povo, mas não faz parte da lei dada por Javé.
Pois bem. Conforme me reportei no
início, acerca do Sínodo sobre a família, um dos graves problemas
da pastoral religiosa dos nossos dias é o caso dos casais de
'segunda união matrimonial' entre católicos, para o qual o Papa tem
demonstrado uma preocupação intensa e tem enfrentado sérias
resistências no meio eclesiástico, em especial por parte dos
conservadores. Não se pode partir da premissa de que isso ocorre
apenas com pessoas que possam ser chamada de levianas. Ocorre também
com pessoas responsáveis e bem intencionadas. A Igreja Católica não
pode ficar mais adiando o enfrentamento desse problema e deve, de
forma serena e ponderada, oferecer alternativas de solução, sendo
esta uma das tarefas que o Papa está propondo ao Sínodo.
O grande desafio é buscar uma resposta
coerente com o evangelho pois, como lemos hoje, Cristo foi taxativo
contra o divórcio. No entanto, o Papa lembra, no “motu proprio”
citado antes, que o Senhor Jesus é um juiz compassivo e por isso,
pastoralmente, é necessário analisar com maior benignidade os casos
concretos de cada casal envolvido, deixando de lado o rigorismo e o
formalismo. Mais importante do que as normas são as pessoas e, numa
abordagem mais humanística da realidade matrimonial vivenciada, com
todas as vicissitudes e contingências da condição humana, deve-se
descobrir um real motivo que torne o matrimônio anterior inválido,
para que aquelas pessoas que, pelas mais diversas razões, tiveram
uma união anterior mal sucedida, possam reorganizar suas vidas não
somente perante a sociedade civil, mas também perante a comunidade
eclesial. Afinal, nas próprias palavras de Cristo, quando Ele disse:
o que Deus uniu, o homem não separe, podemos entender que os
próprios cônjuges não podem fazer isso, nem outra autoridade
humana. Mas a Igreja, com autoridade divina, delegada que foi pelo
próprio Cristo, através do poder de ligar e desligar, pode fazê-lo.
Na minha modesta opinião, é isso que o papa Francisco está
tentando fazer os padres sinodais entenderem.
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