COMENTÁRIO LITÚRGICO – 29º DOMINGO
COMUM – O LUGAR RESERVADO – 18.10.2015
Caros Leitores,
Neste 29º domingo comum, a liturgia
celebra o Dia Mundial das Missões, reverenciando todos aqueles que,
no mundo tudo, levam a palavra de Cristo aos irmãos mais distantes,
especialmente para aqueles que ainda não conhecem a Redenção.
Todos nós somos convidados a ser missionários e, pelo batismo,
fomos ungidos para esta missão. Todavia, é uma missão a ser
exercida com humildade e na caridade, por isso, ninguém deve
gloriar-se com os resultados ou entristecer-se com os eventuais
fracassos, porque nessa tarefa interessa apenas a fidelidade ao
mandamento de Jesus. Nesse contexto, a liturgia nos põe como tema de
reflexão o diálogo de Tiago e João com Jesus, sobre a recompensa
pela opção que fizeram, encomendando desde já um “lugar” que
cada um queria ter no reino de Deus. Foi quando Jesus disse que será
melhor recompensado aquele que melhor servir.
Inicialmente, faço uma observação
exegética sobre o trecho do evangelho lido neste domingo, retirado
de Marcos 10, 35-45. Fazendo um estudo comparativo entre os
evangelhos, podemos cotejar essa passagem com o texto análogo de
Mateus 20, 20, onde é narrado o mesmo episódio. No evangelho de
hoje (Mc 10, 35), lemos: “Tiago
e João, filhos de Zebedeu, foram a Jesus e lhe disseram:”.
No evangelho de Mateus (20, 20), lemos: “Então,
aproximou-se d'Ele a mãe dos filhos de Zebedeu com seus filhos,
adorando-o e pedindo algo a Ele.”
A análise desses dois pequenos trechos nos mostra que devemos
ter muito cuidado com a
leitura fundamentalista da Sagrada Escritura, porque os textos às
vezes se mostram incoerentes. Afinal, quem foi ter com Jesus: os
filhos de Zebedeu sozinhos ou acompanhados da mãe deles? Por que
Marcos não menciona a mãe dos apóstolos, enquanto Mateus a inclui?
É bem verdade que esse detalhe não é significativo,
mas por causa de detalhes como esse, eu ouço pessoas dizendo que a
Bíblia é cheia de imprecisões e mentiras.
Os
biblistas explicam essa divergência justificando que o texto de
Marcos é mais antigo do que o de Mateus, e por isso é mais
simplificado. Os estudos históricos confirmam que os ensinamentos de
Jesus, durante vários anos, existiam nas comunidades apenas em forma
oral, passando a ser escritos somente uns 20 a 30 anos após a morte
d'Ele. Havia muitos textos esparsos e os evangelistas os colheram e,
com base neles, compuseram seus evangelhos, procurando observar a
ordem cronológica dos acontecimentos. Podemos verificar que, também
na Bíblia, funciona aquela máxima popular que diz: quem conta um
conto aumenta um ponto. Desse modo, embora o evangelho de Mateus
venha em primeiro lugar no cânon bíblico, contudo o texto de Marcos
é tido como mais antigo. Ainda sobre o evangelho de Mateus, mais uma
curiosidade: o texto original foi escrito em aramaico, o mesmo idioma
que Jesus falava, enquanto os demais foram escritos originalmente em
grego. Isso denota que o evangelho de Mateus foi escrito em uma
região mais afastada, onde se falavam o aramaico, tendo sido
traduzido para o grego só posteriormente. Talvez esse detalhe sobre
a sua origem também explique aquela divergência sobre a inclusão
da mãe intercedendo pelos filhos.
Pois
bem, passemos agora ao tema da leitura, o pedido
que
os filhos de Zebedeu fizeram a Jesus: que um deles tivesse assento à
direita e outro à esquerda, no reino da Sua glória. Jesus ficou
intrigado com aquilo e falou: vocês têm certeza do
que estão pedindo? Eles
confirmaram e,
por fim, arrematou: 'Vós
bebereis o cálice que eu devo beber, e sereis batizados com o
batismo com que eu devo ser batizado. Mas não depende de mim
conceder o lugar à minha direita ou à minha esquerda. É para
aqueles a quem foi reservado'. (Mc 10, 39)
E diz mais o evangelista que os outros dez ficaram indignados quando
souberam do pedido dos
dois irmãos, provavelmente, eles também queriam pedir aquilo, mas
não tiveram coragem. Ademais,
por
que razão haveriam aqueles
dois de ser privilegiados com um lugar de honra? Foi quando Jesus os
repreendeu, dizendo que a autoridade cristã não é símbolo de
honraria, mas de serviço. (Mc 10, 43)
Esse
diálogo de Cristo com os discípulos nos deixa algumas
lições importantes. Primeiro:
será que nós sabemos pedir? Quando oramos, quando fazemos nossos
pedidos a Deus, que tipo de oração fazemos? Será
que caímos no mesmo disparate
dos filhos de Zebedeu, reprovado por Jesus? Pois é, muitas vezes, a
nossa oração contém uma dose significativa de egoísmo. Pedimos
preferencialmente algo bom para cada um de nós, para
os nossos parentes e amigos, esquecendo
que o próprio Cristo ensinou que devemos buscar, em primeiro lugar,
o Reino de Deus e que o resto nos será dado por acréscimo. Em
geral, as orações dirigidas a Deus são pedidos de favorecimentos,
de bens materiais, de
bem-estar,
de uma conquista profissional, etc. Sem deixar
de falar numa
prática ainda mais extravagante
que é a de fazer um “negócio”
com Deus, uma
certa 'promessa': se eu conseguir tal coisa, vou fazer tal tarefa.
Meus amigos, quanta pretensão. Se
passássemos a vida toda fazendo penitências,
nem assim mereceríamos um favor divino, por menorzinho que seja,
Deus nos dá tudo gratuitamente, sem precisar de nada de nós e sem
nós merecermos, ele age por plena e inefável benevolência. As
nossas orações, portanto, devem ser muito mais para agradecer do
que para pedir.
A
oração modelar para nós deve ser inspirada no exemplo dado pelo
próprio Jesus: quando orardes, dizei algo assim: Pai, santificado
seja o Teu nome, venha o Teu reino, faça-se a Tua vontade... é o
tipo da oração altruísta, a oração que agrada a Deus. De orações
egoístas, Deus se distancia, vira o rosto para o outro lado. Quando
Jesus perguntou aos dois filhos de Zebedeu: vocês estão dispostos a
'beber o mesmo cálice' que eu beberei e eles confirmaram, Jesus
disse: mas isso não garantirá o atendimento ao que estais pedindo,
pois não é assim que se conquista um lugar no Reino. E arremata: o
lugar é para aqueles a quem foi reservado. (Mc 10, 40)
Esta
resposta de Jesus é, a um só tempo, enigmática e esperançosa.
Enigmática, porque ele não revelou quem são esses a quem está
reservado o melhor lugar. Esperançosa, porque a reserva pode ser
para qualquer um deles e de nós. Como podemos interpretar esse
enigma-esperança? A resposta, a meu ver, está na frase seguinte do
evangelho (Mc 10, 45): o Filho do Homem não veio para ser servido,
mas pra servir... ou seja, quem seguir o exemplo de Jesus na
prestação do serviço aos irmãos, é para estes que o lugar está
reservado. Foi isso que Ele deu a entender quando ensinou: quem
quiser ser grande, que seja o servo; quem quiser ser o maior, que
seja o escravo. Então, o 'lugar reservado' se destina a quem
realizar o 'serviço' tal como Ele realizou, isto é, com humildade e
sem reserva, dando tudo de si até o fim das suas forças. E podemos
deduzir também que o 'lugar reservado' não é um lugar individual,
mas coletivo, não cabe apenas um, mas cabem muitos, cabem nele todos
os que tomarem a cruz e O seguirem.
Meus
amigos, o recado de Cristo está dado para todos nós. O lugar está
reservado para quem for capaz de seguir o exemplo dele no serviço
aos irmãos, superando as tendências naturais e sociais associadas
ao ganho de prestígio
e de honrarias, especialmente quando exercemos profissões que são
consideradas relevantes socialmente. Humildade não significa vestir
trapos e andar descalço, mas é uma atitude que mora dentro do
coração. No sermão da missa deste domingo, o Papa Francisco
abordou esse tema de forma bem direta, como é o seu estilo: “À
vista de tantos que lutam por obter o poder e o sucesso, por dar nas
vistas, frente a tantos que querem fazer valer os seus méritos, as
suas realizações, os discípulos são chamados a fazer o contrário.
Por isso adverte-os: «Sabeis como aqueles que são considerados
governantes das nações fazem sentir a sua autoridade sobre elas, e
como os grandes exercem o seu poder. Não deve ser assim entre vós.
Quem quiser ser grande entre vós, faça-se vosso servo» (10,
42-43). Com estas palavras, Jesus indica o serviço como estilo da
autoridade na comunidade cristã. Quem serve os outros e não goza
efetivamente de prestígio, exerce a verdadeira autoridade na Igreja.
Jesus convida-nos a mudar a nossa mentalidade e a passar da ambição
do poder à alegria de se ocultar e servir; a desarraigar o instinto
de domínio sobre os outros e exercer a virtude da humildade.”
Todo nós, que acompanhamos pela imprensa as notícias sobre a
atuação do Papa, sabemos que essas palavras dele
não
são apenas discurso, mas ele assim vivencia no seu cotidiano. Que
nós tenhamos a ousadia e
a coragem de
seguir o seu exemplo de autêntico cristão.
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