COMENTÁRIO LITÚRGICO – 28º DOMINGO
COMUM – QUEM PODERÁ SALVAR-SE? – 11.10.2015
Caros Leitores,
Neste domingo, a liturgia nos convida a
refletir sobre o tema da riqueza, através do diálogo de Cristo com
o jovem rico. Nós conhecemos a história de Francisco de Assis, que
seguiu literalmente o convite de Cristo, ao ler esta passagem do
evangelho, e abandonou realmente tudo o que possuía, deixou a casa
paterna com seu conforto, entregou até as roupas que vestia para o
pai, largando tudo para seguir a Cristo na total pobreza e na plena
fé de que receberia elevado percentual de recompensa nesta vida e
ainda a vida eterna no mundo que há de vir. Nos dias atuais, em que
se fala muito acerca do grande distanciamento que há entre as
classes sociais (algumas em exagerada abundância e outras em grandes
necessidades), o tema da riqueza é bastante oportuno para a
reflexão. De fato, a questão que se coloca não é a riqueza em si
mesma, porque quando ela é fruto do trabalho, deve ser recebida como
a justa recompensa. A questão é quando esse acúmulo de bens é
fruto de atividades pérfidas, realizadas com o desrespeito do bem e
da moralidade, porque é esse tipo de riqueza que não se coaduna com
a justa recompensa e é esta que causa a perigosa convulsão da
violência em todas as suas formas de manifestação – abertas ou
veladas.
A primeira leitura, retirada do Livro
da Sabedoria (7, 7-11), fala sobre a verdadeira riqueza, que não
está no poder terreno nem na posse dos bens materiais, mas na
prudência, na sabedoria, junto da qual todo o ouro do mundo é
semelhante a um punhado de areia e toda a prata parece com a lama. E
diz mais que, cultivando a sabedoria, todos os bens e riquezas
materiais chegam como consequência, pois quem age com sabedoria tem
em mãos a maior de todas as riquezas. Por outras palavras, a riqueza
deve estar acompanhada da sabedoria para ser legítima. Quando a
riqueza é amealhada com esperteza, tornando-se ilegítima, então
aplica-se aí a metáfora da areia para o ouro e da lama para a
prata.
A segunda leitura, da Carta aos Hebreus
(4, 12-13), faz uma comparação interessante entre os conceitos de
alma e espírito, os quais são usualmente tidos como sinônimos, no
nosso idioma, mas etimologicamente pertencem a funções mentais
distintas. A alma (do termo latino “anima”, mas que vem do grego
“psiché”) se relaciona com o pensamento lógico, o raciocínio,
o conhecimento mundano. Por outro lado, o espírito (do termo latino
“spiritus”, mas que em grego se diz “pneuma) se relaciona com o
sopro vital, aquilo que nos mantém vivos, relacionando-se com a
consciência e a moralidade. Por isso, o escritor sagrado diz que a
palavra de Deus é “mais
cortante do que qualquer espada de dois gumes, penetra
até dividir alma e espírito”, isto
é, repercute tanto no conhecimento, no raciocínio, quanto na
consciência, na responsabilidade.
Isso está explicado, com outras palavras, no versículo seguinte,
quando diz: “Ela
julga os pensamentos e as intenções do coração.
”
Podemos ver aqui a seguinte relação com o tema da riqueza, abordado
na leitura anterior: quando o acúmulo de bens decorre do uso dos
conhecimentos mundanos
para
obtê-los, mas não está acompanhado de atitudes bem intencionadas,
perde-se na ganância e na insensatez, o que não é compatível com
a verdadeira sabedoria, e assim vai ocasionar conflitos sociais que
se transmudam em violência e infelicidade para todos. E
então, adverte o escritor, o avarento se torna réu do julgamento da
palavra de Deus, porque “tudo
está nu e descoberto aos seus olhos, e é a ela que devemos prestar
contas. ”
Conceitualmente, a palavra de Deus é a suprema sabedoria.
Na leitura do evangelho de Marcos (10,
17-27), que reproduz o diálogo de Cristo com um jovem rico de bens
materiais, mas que entristeceu-se com a possibilidade de vir a
desfazer-se deles, vemos novamente o tema da riqueza que se põe no
plano do saber interesseiro e não ultrapassa para o nível das
intenções do coração. O diálogo de Cristo com esse jovem é
permeado por vários ensinamentos, que o breve conteúdo narrativo
condensa. Primeiro, a ideia do Bem. O jovem chamou Jesus de 'bom
mestre' e ele disse que somente Deus é bom. Ora, Cristo sendo Deus,
por que razão iria questionar que alguém o chamasse de 'bom
mestre'? O destaque é dado pelo evangelista para significar que o
jovem, ao chamar Jesus de 'bom', já estava reconhecendo nele uma
pessoa do bem. Mas Jesus quis pô-lo à prova, para saber se ele era
também um conhecedor do verdadeiro bem. Pelo que se constata, o
jovem tinha demasiado apego à riqueza, visando apenas ao plano da
materialidade, por isso não foi capaz de captar a nobreza do convite
que lhe foi feito.
O segundo ensinamento é o reforço à
lei de Moisés. Jesus fez questão de recitar os mandamentos e dizer
que a sua prática conduz à salvação. Por diversas vezes, Jesus
afirmou publicamente que não veio contestar a lei mosaica, ao
contrário, veio cumpri-la. Porém, o seu cumprimento não devia ser
igual ao dos fariseus, que tomava tudo ao pé da letra e achavam que
isso bastava. Aparentemente, o jovem interlocutor também cumpria a
lei mosaica sob esse prisma literal, no plano da exterioridade, sem
alcançar o patamar das intenções do coração. Tendo percebido
isso, Jesus completou: 'Só
uma coisa te falta: vai, vende tudo o que tens e dá aos pobres, e
terás um tesouro no céu.' (Mc 10, 21). Com
certeza, não era isso o que o jovem pretendia, mas Jesus utilizou o
seu diálogo para ensinar os seus discípulos a importância da
riqueza bem adquirida e bem administrada.
O
terceiro ensinamento do evangelho é sobre a vida de perfeição. Foi
nesse ponto que Francisco de Assis se fixou e com ele traçou um
plano de vida, que veio a transformar-se no franciscanismo da regra e
dos ensinamentos, que ele demonstrou e viveu. Jesus quis ensinar que
a riqueza não é, por si mesma, empecilho para a salvação, mas se
o seu detentor não estiver disposto a abrir mão dela, então o seu
coração está preso na materialidade e não conseguirá alcançar o
verdadeiro sentido do uso dos bens com sabedoria. Daí o comentário
de Jesus: como é difícil a um rico entrar no reino do céu. Jesus
não disse que os ricos estão necessariamente excluídos da
salvação, mas sim que a posse dos bens materiais torna mais difícil
levar uma vida agradável a Deus. Evidentemente, a causa disso não
seria a simples posse dos bens, mas o apego a eles. Nós sabemos que,
assim como há pessoas ricas generosas, há pessoas pobres
mesquinhas, por isso o ensinamento de Cristo é a pobreza de
espírito, que é mais importante do que a simples falta de bens.
Podemos
então retirar daqui um quarto ensinamento do evangelho, que é a
ideia do desapego. Esse é o grande problema da sociedade
contemporânea, aquilo que ocasiona o grande “abismo social”
entre pessoas que se apropriam (muitas vezes, de forma ilícita) de
grandes fortunas, que ficam depositadas em instituições financeiras
de outros países, ocultas para não prestarem contas delas conforme
manda a lei, contando com a possibilidade de, ao deixarem seus
cargos, poderem usufruir desses bens indignos em territórios
estrangeiros, onde não são conhecidos. Quase diariamente, os meios
de comunicação trazem informações sobre cidadãos destituídos de
consciência, que terminam sendo apanhados em negócios escusos e, em
geral, fazem de conta que não é com eles, continuando como se nada
estivesse acontecendo. Em outras sociedades, onde ainda pulsa o
sentimento da moralidade, esses episódios ganhariam outros
contornos. Entre nós, porém, vence a desfaçatez e a desonra.
Quando não posam de vítimas de algum inimigo de outra facção.
Por
isso, continua sempre atual a metáfora do buraco da agulha para
comparar com a dificuldade (ou impossibilidade) de um rico alcançar
a salvação. Para superar tal dificuldade ou para viabilizar essa
possibilidade, as riquezas materiais devem estar a serviço da fé do
seu possuidor. Aquele que valoriza a sua fé não deixará que o
poder político e os bens materiais prendam a sua alma e saberá
utilizar desses controles sociais para transformá-los em um maior
serviço aos irmãos. Quem exerce um cargo relevante em algum órgão
ou entidade tem nas mãos uma oportunidade extraordinária de fazer o
bem aos outros mais do que quem não está nessa situação. Quem
obteve com seu trabalho um acúmulo considerável de bens não pode
se considerar culpado porque outras pessoas não possuem tanto, mas
deve transformar esses bens em maiores serviços às pessoas
necessitadas.
Ecoa
no ar a pergunta dos apóstolos: então, quem poderá salvar-se? A
resposta pode ser: quem faz uso dos bens materiais em coerência com
a verdadeira fé cristã.
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