COMENTÁRIO
LITÚRGICO – 1º DOMINGO DO ADVENTO – TRIBUNAL DA MISERICÓRDIA –
29.11.2015
Caros Leitores,
A rodada
do calendário litúrgico nos coloca novamente no início de um novo
ano. Antes do ano civil, o ano litúrgico se inicia na última semana
de novembro ou primeira semana de dezembro do ano anterior, de acordo
com a posição do dia de Natal no calendário, pois o ano litúrgico
se inicia quatro semanas antes do Natal. A organização litúrgica
da Igreja Católica distribui, no período de doze meses, toda a
história da salvação, que historicamente demorou vários séculos,
fazendo-nos reviver, a cada ano, todos os fatos marcantes da
intervenção de Deus junto aos homens, que teve início com a
aliança de Javeh com Abraão e se consumou com a morte e
ressurreição de Cristo, prolongando-se com os eventos confirmadores
da ascensão de Cristo e da vinda do Espírito Santo. Com a liturgia
de hoje, 1º domingo do advento, tem início o ano litúrgico de
2016, seguindo o calendário eclesiástico. De acordo com as regras
da instrução oficial do Secretariado da Liturgia, quando o número
do ano civil é divisível por 3, ele é identificado com a letra C.
Isso porque as leituras bíblicas são divididas em três grupos
temáticos, repetindo-se a cada três anos.
Desse
modo, todos os anos, nessas quatro semanas que antecedem o Natal, a
liturgia nos leva a refletir sobre as coisas que hão de vir
(adventura), bem como sobre o Menino que vai chegar (adveniens),
convidando-nos a preparar o coração para recebê-lo com espírito
renovado. Sem entrar numa infindável e estéril discussão histórica
sobre a data do Natal (segundo alguns, o nascimento de Cristo teria
sido em março ou abril), independentemente do contexto paganizado
com que foi estabelecido o dia 25 de dezembro para a celebração do
nascimento de Cristo, o fato é que esta comemoração deve ter a
marca da nossa preparação espiritual, realimentando as nossas
esperanças e reavivando a nossa fé num futuro melhor, sobretudo
numa época de tantas incertezas e desencantos. A liturgia nos
convoca a reunir nossas energias mentais positivas e nossa fé na
verdade cristã, que tem o poder de transformar o mundo.
As
leituras deste domingo fazem referência à segunda vinda de Cristo.
Esse tema, conforme abordamos em comentários recentes, foi muito
caro aos primeiros cristãos, que esperavam o fato como algo
iminente, porém com a demora de sua concretização, ao longo dos
tempos, passou por diversos quadros interpretativos. Passados tantos
séculos e com a evolução do conhecimento humano, já não se deve
pensar numa data determinada no calendário, nem mesmo num dia
incerto e indefinido, como está escrito no evangelho (Lc 21, 35). Na
minha modesta opinião, sou levado a crer que não cabe mais pensar
num evento de dimensões cósmicas, como consta com detalhes na
narração do evangelho lido neste domingo (Lc 21, 25), e sim numa
circunstância que se realizará na dimensão atemporal, quando
ultrapassarmos o umbral da materialidade. Quando adentrarmos a
dimensão da eternidade, encontraremos o Filho do Homem sentado sobre
as nuvens, com todo o seu poder e glória, julgando e premiando os
seus seguidores de coração sincero.
Na
primeira leitura, o profeta Jeremias diz que “naqueles dias,
farei brotar a semente da justiça que fará valer a lei... e
Jerusalém terá uma população confiante... e será designada como
'o Senhor é a nossa justiça'”. (Jr 33, 15). É a nova
Jerusalém, aquela que um dia há de ser destruída e depois será
restaurada com o nome de Justiça. Isso ocorrerá 'naqueles dias' que
não se sabe quando serão, mas que, com certeza, será na Jerusalém
celeste. Dizer que o seu nome será “o Senhor é nossa justiça”
significa que devemos considerar que a justiça divina não tem
comparação com a justiça dos homens. A justiça de Deus é, na
verdade, a sua misericórdia, o seu infinito amor para conosco,
porque se Ele fosse nos julgar do modo como nós costumamos julgar os
nossos semelhantes, coitados de nós.
Então,
no advento, a cada ano, nós reiniciamos a nossa preparação para
esse futuro encontro com o Filho do Homem em seu tribunal da
misericórdia, através dos atos litúrgicos que nos rememoram a vida
histórica de Cristo, para que estejamos sempre vigilantes, como Ele
próprio ensinou. Na segunda leitura, carta de Paulo aos cristãos
Tessalonicenses (1Ts 4,1), o apóstolo os exorta a viverem como foi
ensinado a eles, para agradar a Deus, seguindo as instruções que
lhes foram passadas em nome do Senhor Jesus. Paulo estava preocupado
com os Tessalonicenses, porque em sua visita àquela cidade, houve
uma ríspida discussão entre ele e os judeus, fato que levou Paulo a
fugir da cidade. Depois, ele mandou para ali Timóteo, para sondar o
ambiente e ficou muito feliz com a informação deste de que os
tessalonicenses continuavam fiéis à mensagem cristã. Por isso,
Paulo os exorta a continuarem com aquele mesmo fervor religioso,
preparando-se para o retorno de Cristo que, segundo o entendimento da
época, se daria dentro de pouco tempo.
O
evangelho de Lucas (Lc 21, 25-36) traz a clássica narrativa daqueles
fatos que são indicativos do “final dos tempos”: “Haverá
sinais no sol, na lua e nas estrelas. Na terra, as nações ficarão
angustiadas, com pavor do barulho do mar e das ondas.”
Em relação à conduta das pessoas, o texto do evangelho é
assustadoramente dramático: “Os
homens vão desmaiar de medo, só em pensar no que vai acontecer ao
mundo, porque as forças do céu serão abaladas.”
Os cristãos de todas as épocas, mas sobretudo dos primeiros tempos,
tremiam diante dessas leituras e alguns até deixaram de trabalhar,
porque a volta do Senhor estava próxima. Ora, Jesus disse diversas
vezes que somente o Pai sabe esse dia, nem Ele sabia, como é que uns
pobres mortais poderão adivinhá-lo? Por isso, mais importante do
que tremer com a expectativa daquele “dies irae, dies illae”
(como dizia o antigo cântico gregoriano), o que nós devemos fazer é
seguir o que Jesus recomendou: “Tomai
cuidado para que vossos corações não fiquem insensíveis por causa
da gula, da embriaguez e das preocupações da vida, e esse dia não
caia de repente sobre vós; pois esse dia cairá como uma armadilha
sobre todos os habitantes de toda a terra.”
(Lc 21, 34-35). Esse dia é aquele em que iremos nos encontrar diante
do tribunal da misericórdia e desse dia ninguém conseguirá fugir.
Daí que a preocupação de Cristo conosco é para que não nos
deixemos dispersar pelos prazeres materiais e pelas preocupações da
vida, para que a nossa fé esteja sempre atenta. Mais do que
impressionar-se com o abalo das forças celestes, a nossa preocupação
deve estar voltada para a nossa própria conduta, para a nossa
fidelidade com os compromissos do nosso batismo. Cristo sabe o quanto
isso é difícil para cada um de nós, frente a tantas distrações e
encantamentos que a realidade material lança sobre nós. Daí o
conselho que ele nos dá: ficai atentos e orai a todo momento, para
terdes força pra ficar de pé diante do Filho do Homem.
É
curioso como, ao longo do tempo, as pessoas leram essa passagem do
evangelho e se concentraram na descrição dos fenômenos cósmicos,
que na verdade estão fora do nosso controle, e esqueceram dessa
outra parte em que Jesus nos exorta a agir com moderação, sem nos
deixarmos seduzir pelos apelos dos prazeres corporais, pois isso sim
depende de nós. Então, o ensinamento de Cristo para que fiquemos
vigilantes sempre não se refere a um tempo futuro e indefinido, mas
ao nosso tempo existencial. A nossa fé n'Ele deve ser renovada a
cada dia, para que nossa expectativa não se volte para um fim
catastrófico do mundo, mas para um fim sereno dos nossos dias,
porque estes têm um prazo até certo ponto previsível. E será
nesse momento que precisaremos ter forças para ficar de pé diante
do Filho do Homem. A nossa força será medida pela nossa
perseverança. Desse modo, quando o advento nos convida a estar
vigilantes porque não sabemos o dia nem a hora, a nossa atenção
não deve se voltar para “o
Filho do Homem, vindo numa nuvem com grande poder e glória”,
mas para o dia em que cada um de nós deveremos ficar em pé diante
d'Ele.
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