COMENTÁRIO LITÚRGICO – 33º DOMINGO
COMUM – AS COISAS FUTURAS – 15.11.2015
Caros Leitores,
No 33º domingo comum, aproximando-se o
final do ano litúrgico, a liturgia nos convida a refletir sobre o
final dos tempos, a segunda vinda de Cristo, quando virá para julgar
os vivos e os mortos. Esses tema foi muito explorado pelos artistas
medievais, que deixaram registrada, em magníficas pinturas, cada um
ao seu modo, a interpretação que fizeram das palavras do evangelho
de Marcos, acerca do dia do juízo: o sol escurecerá, a lua não
mais dará sua luz, as estrelas cairão... Com os conhecimentos
científicos de atualidade, constata-se que se trata de uma visão
alegórica do final dos tempos, todavia, ainda paira na mentalidade
de grande parte da nossa população a imagem dessa gigantesca
hecatombe, de modo que cada desastre ocorrido facilmente a evoca.
Precisamos, pois, repaginar o nosso entendimento sobre essas coisas
futuras.
Na leitura da profecia de Daniel (Dn
12, 1-3), aparece a figura imponente de Miguel, o defensor que virá
resgatar todos aqueles cujos nomes se acharem inscritos no livro, os
quais brilharão como estrelas por toda a eternidade, os justos,
aqueles que foram sábios e ensinaram aos outros o caminho da
virtude. Os que não tiverem procedido corretamente em vida, serão
lançados no opróbrio eterno. São as mesmas expressões que Jesus
utilizará, na sua catequese em forma de parábolas, para explicar
aos seus ouvintes acerca do juízo final. Sempre foi uma grande
curiosidade dos seres humanos, em todas as épocas, saber o que
acontecerá no fim dos tempos. Em verdade, será o caso de
perguntarmos se os tempos terminarão objetivamente, porque Kant já
explicou, de forma incontestável, que o tempo é uma percepção
subjetiva nossa, então a expressão final dos tempos deve ser
entendida como final do universo. Ocorre que com a indizível e
imensurável dimensão que o universo se apresenta para os astrônomos
e astrofísicos, pode-se colocar em dúvida se o universo realmente
se extinguirá ainda que num futuro distante. Só por essa breve
referência, já se pode avaliar a complexidade da ideia que envolve
a expressão “final dos tempos”.
No evangelho de Marcos (Mc 13, 24-32),
lemos aquela descrição assustadora e detalhada de Jesus aos
discípulos, sobre as coisas futuras, palavras que sempre foram, ao
longo da história, entendidas literalmente. Porém, se nós as
lermos com uma mentalidade serena, à luz do que hoje se conhece
acerca do universo, mesmo quem não for especialista no assunto
perceberá que se trata de eloquente alegoria. “O sol
escurecerá...” quando eu era aluno do curso ginasial (isso já tem
uns bons 50 anos), eu li uma matéria que dizia: daqui a dois milhões
de anos, o sol esfriará. Nunca esqueci disso. Essa deve ser a
tendência natural, se imaginarmos que o sol é um corpo celeste que
realiza intensa atividade atômica, a tendência é que, com o passar
do tempo (muito tempo mesmo), sua energia irá regredindo
progressivamente. Por outro lado, sabe-se que o nosso sol é apenas
uma estrela de quinta grandeza e que existem inumeráveis sóis no
universo, o que significa que se, acaso, o nosso sol escurecesse, em
termos de universo, isso não faria diferença significativa.
Alegoria, portanto.
“As estrelas começarão a cair do
céu...” essa era a concepção cosmológica dos povos antigos, que
entendiam o firmamento como uma semiesfera, onde estariam penduradas
as estrelas. Nos dias de hoje, nem uma criança do ensino fundamental
pensa mais assim. Os riscos que, teoricamente, existem são de
eventuais colisões de corpos celestes. “A lua não mais
brilhará...” é outra frase que não resiste à mínima crítica,
porque todos sabemos que a lua não tem luz própria, mas reflete a
luz solar. Ora, essas frases só podem ser compreendidas
metaforicamente. Eu fico boquiaberto quando ouço pessoas que,
publicamente, afirmam que a Bíblia está cheia de erros, por causa
dessas passagens. Essas pessoas não conseguem pensar alegoricamente
e nem percebem que as expressões bíblicas reproduzem uma
mentalidade e um conhecimento científico de diversos séculos antes
de nós e que precisam ser devidamente aculturados para fazerem
sentido na nossa época.
Ora, se passarmos agora para as outras
expressões contidas nesse mesmo contexto, no evangelho de Marcos,
obrigatoriamente também iremos concluir que elas devem ser
entendidas metaforicamente: “vereis o Filho do Homem vindo nas
nuvens”..., “enviará os anjos aos quatro cantos da terra e
reunirá os eleitos de Deus de uma extremidade a outra...”, “essa
geração não passará até que isso aconteça”... São frases que
precisam ser relidas e reinterpretadas no seu significado cultural e
religioso, na mesma proporção em que fizemos com as afirmações de
conteúdo cosmológico. Com certeza, Jesus não aparecerá sentado
numa nuvem, os anjos não tocarão trombetas ensurdecedoras para
despertarem os mortos e os reunirem aos vivos, pois se forem somadas
as quantidades de seres humanos de todas as épocas, veremos que não
haveria espaço físico suficiente para conter tanta gente. A geração
que não passará não é a geração cronológica, mas a “gens”
humana. E aqui está a afirmação mais grave. Eu entendo aqui que a
ganância dos seres humanos vai terminar por inviabilizar a vida
terrestre. No ritmo que as coisas estão acontecendo, isso parece que
não vai demorar muito. A sucessão de desastres ecológicos
provocados pela irracionalidade e a ambição de alguns
irresponsáveis irá, isso é certo, por um fim na humanidade. E aí
sim, teremos o final dos tempos. Não do modo literal como está
descrito no texto do evangelista Marcos, mas no sentido de que, com a
extinção dos seres humanos, o tempo realmente se extinguirá,
porque não haverá mais consciência e racionalidade para
reconhecê-lo e contabilizá-lo.
Importa aqui assinalar também que
Jesus, naquela ocasião e de forma profética, se referia à
destruição de Jerusalém, por causa da infidelidade do povo judeu e
pelo fato de não o terem reconhecido como o Messias esperado. A
Jerusalém histórica, com efeito, foi destruída pelo exército
romano cerca de 70 anos após a morte de Cristo. A “grande
tribulação” a que Jesus se referiu no seu discurso metafórico se
reportava, em primeiro lugar, à profanação do templo de Salomão
pelos romanos, o que iria causar (como de fato causou) grande comoção
para os judeus. Mas com a destruição da Jerusalém de tijolos,
ergueu-se outra Jerusalém simbólica, atemporal e espiritual, que é
a Igreja de Cristo, que veio substituir e firmar-se sobre as ruínas
do templo salomônico.
Aqui nesse contexto se encaixa o texto
da segunda leitura, da carta aos Hebreus (Hb 10, 11-12): “Todo
sacerdote se apresenta diariamente para celebrar o culto, oferecendo
muitas vezes os mesmos sacrifícios, incapazes de apagar os pecados.
Cristo, ao contrário, depois de ter oferecido um sacrifício único
pelos pecados, sentou-se para sempre à direita de Deus.”
Os cultos ofertados no templo de Salomão não têm comparação com
a oferenda de Cristo, que foi única e definitiva. A redenção
operada por ele transformou aquela Jerusalém de barro e tijolos por
um templo imperecível, que não está mais situado num espaço
geográfico, mas no coração de todos aqueles que creem. E os salvos
não estão mais inscritos “num Livro”, como disse o profeta
Daniel, mas estão espalhados por todos os confins da terra, reunidos
sob a presença mística de Cristo, que afirmou: onde houver dois ou
mais reunidos em meu nome, eu estarei ali presente. Não é mais
necessário se deslocar até uma Jerusalém geográfica ou até o
templo físico, porque a Jerusalém celeste e o templo espiritual
estão onde estiverem os cristãos unidos em sua fé. Essa é a
grande diferença. Essa é a verdadeira realidade que representa o
conjunto das coisas futuras.
Se observarmos bem, o discurso de
Cristo é fundamentalmente de cunho ecológico, bem atualizado para a
linguagem do nosso mundo atual. O céu e a terra passarão, mas as
minhas palavras não passarão. Aquela concepção cosmológica de
céu e terra não faz mais nenhum sentido para a mentalidade moderna.
São céu e terra passados. Mas essa geração não passará até que
tudo isso aconteça. Infelizmente, estamos presenciando, sob diversas
formas de condutas de pessoas sem escrúpulo da geração humana,
ações devastadoras que nos induzem a pensar que “as folhas da
figueira da parábola estão ficando verdes e os frutos não
demorarão a aparecer”. Que Deus dê a essas pessoas a chance de se
conscientizarem disso, antes que seja tarde demais.
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