COMENTÁRIO LITÚRGICO – TODOS OS
SANTOS – EM COMUNHÃO - 01.11.2015
Caros Leitores,
A liturgia comemora neste domingo, em
dia próprio, a festa de Todos os Santos. Essa festa é necessária,
porque dada a grande quantidade de pessoas canonizadas, não seria
possível fazer celebrações destacadas de todos os santos
distribuindo-os pelos dias do ano e, além disso, esta solenidade
litúrgica nos traz para a reflexão a verdade teológica da
'comunhão dos santos', que nós rezamos no Credo, e faz parte dos
enunciados básicos da fé católica. Esta comunhão (melhor
explicada no termo latino 'communio'), ou seja, a comum união de
todos os cristãos, inclui não apenas aqueles que já estão no
reino de Deus (a comunidade gloriosa) mas também aqueles que ainda
estão a caminho, isto é, nós (comunidade operosa), que vivemos no
meio das vicissitudes do tempo a proclamar com nossa vida cristã a
nossa fé na ressurreição.
É bem significativo refletir sobre o
dogma religioso da comunhão dos santos e sobre o próprio
significado do termo 'santos', porque nós habitualmente designamos
com essa palavra aqueles cristãos que foram oficialmente
canonizados, ou seja, aqueles que tiveram suas virtudes publicamente
reconhecidas pela Igreja Católica e são colocados como modelos para
todos. Não podemos, porém, esquecer que o apóstolo Paulo, na carta
aos Romanos (8, 32) utiliza o termo 'santos' como sinônimo de
cristãos e, portanto, todos nós somos santos. Ou, pelo menos, somos
destinados para a santidade. Ser santo não significa nunca cometer
algum deslize, não significa viver com o terço ou a Bíblia na mão
ou recitando os salmos, não equivale a nunca ter raiva de alguém
nem nunca ter cometido qualquer desobediência à lei de Deus. Os
cristãos são santos porque foram santificados pelo sangue de
Cristo, na Sua morte e ressurreição. A teologia ensina que a
principal vocação do cristão é à santidade, nós todos nos
encontramos neste caminho de busca da santidade. A tradição
cultural religiosa comumente nos leva a fazer uma relação paradoxal
entre eles e nós: eles, os santos; nós, os pecadores. De fato,
teologicamente, não é assim. Tanto aqueles que foram canonizados
são santos, quanto também nós, que peregrinamos do “vale de
lágrimas” e que tomamos os canonizados como modelo de nossa vida
cristã. Quando o jovem perguntou a Jesus: Mestre, o que devo fazer
para entrar na vida eterna? Jesus respondeu: observa os mandamentos
(Lc 18, 18). Esta pergunta, com outras palavras, pode muito bem ser
entendida assim: Mestre, o que devo fazer para ser santo? A resposta
é a mesma.
A comunhão dos santos é, portanto, um
conceito equivalente ao que Paulo expressa nas suas cartas com o nome
de 'corpo místico', do qual Jesus é a cabeça e nós somos os
membros. Este corpo místico na sua forma visível é a Igreja e
engloba todos os fiéis seguidores dos mandamentos de Cristo, de
antes, de hoje, de ontem e de depois, todos formando uma unidade na
diversidade dos carismas, mas mantendo-se unidos no Espírito. É
nesse contexto que devemos entender a primeira leitura da liturgia de
hoje, retirada do Apocalipse de João, onde ele fala no número dos
que foram marcados na fronte (Ap 7, 4) para serem salvos, cujo
quantitativo era de cento e quarenta e quatro mil. Numa linguagem
direta, João se refere às doze tribos de Israel, num montante de
doze mil de cada uma, para chegar a esse total. João era judeu e
talvez tivesse a esperança de que os seus irmãos de raça ainda
viessem aderir à mensagem de Cristo. Historicamente, sabe-se que
isso não ocorreu. Mas ele previu, logo a seguir, (Ap 7, 9) “uma
multidão imensa de gente de todas as nações, tribos, povos e
línguas, e que ninguém podia contar.” É
aqui que nós entramos e
essa multidão
é
tão imensa,
que João nem teve coragem de quantificar, e nem poderia. E todos
também estavam
marcados
para serem salvos, uma vez que “estavam
de pé diante do trono e do Cordeiro; trajavam vestes brancas e
traziam palmas na mão. Todos proclamavam com voz forte: "A
salvação pertence ao nosso Deus, que está sentado no trono, e ao
Cordeiro".”
(Ap 7, 9-10) Unindo
num mesmo contexto as lições dos apóstolos João e Paulo, podemos
concluir sem medo de errar: todos
igualmente santos, todos igualmente irmãos, todos igualmente face a
face com o Criador.
Na
segunda leitura, o
mesmo apóstolo João, na sua primeira carta (1Jo 3,2) usou uma
expressão semelhante à de Paulo para dizer que todos somos santos:
o de sermos chamados filhos de Deus. Ora, como poderia um filho de
Deus não ser santo? Daí ele afirmar: “Caríssimos,
desde já somos filhos de Deus, mas nem sequer se manifestou o que
seremos!”
Ou seja, nós já somos e ainda nem sabemos como é ser isso, pois
nós abraçamos pela fé esse grande
mistério revelado por Cristo, embora
tal situação vá se consolidar somente no futuro.
Assim, pela fé, nós já somos filhos
de Deus,
embora sem sabermos com clareza do que somos, pois isso somente se
manifestará totalmente quanto O virmos face a face, quando então
Ele será tudo em todos. A teologia tem uma expressão interessante
para explicar isso: “é
o já
e ainda não”, é
a grandeza do mistério que nós conseguimos alcançar com a nossa
fé.
Nós já somos
santos,
mas ainda não sabemos bem
como
é isso. Mas já somos. Isso só é possível para quem crê.
Daí João ter escrito em 1Jo 3,1: este é o grande presente de amor
que o Pai nos deu, o de podermos ser incluídos no rol dos seus
filhos já desde agora, quando Ele ainda não se manifestou
plenamente para nós.
A
riqueza litúrgica da festa da comunhão dos santos se completa com o
famoso sermão da montanha, no qual Cristo chama de bem aventurados
todos os que estão submetidos a algum tipo de tribulação. Dizer
que somos bem aventurados é o mesmo que dizer que nós somos santos.
Em latim, bem aventurados se diz 'beati' (plural de beatus), que é a
mesma palavra que em português se traduz por 'felizes', tradução
que também aparece em algumas versões do texto sagrado.
Curiosamente, Cristo chama de bem aventurados todos aqueles que, pela
aparência social, seriam pessoas desventuradas. Havia um
entendimento tradicional entre os judeus do farisaísmo de que as
pessoas abençoadas por Deus (portanto, bem aventuradas) já recebem
logo neste mundo os Seus dons de forma abundante. Assim, perante essa
visão farisaica, bem aventurados eram os ricos, os poderosos, os
belos, os vencedores, os beneficiados pela sorte e pela esperteza. Os
demais eram considerados pessoas amaldiçoadas, esquecidas por Deus,
que desde logo já estavam sofrendo um castigo que continuariam a
sofrer na outra vida.
Contrariando
esse ponto de vista, Jesus por diversas vezes ressaltou as virtudes
dos pobres e humildes, em contraposição à arrogância e ao orgulho
dos ricos. Cito somente dois casos: do rei que preparou o banquete e
os convidados não compareceram, tendo ele convidado os mendigos e os
moradores de rua para se refestelarem. E ainda o caso da pecadora que
lavou os pés d'Ele com lágrimas na presença dos fariseus (não
confundir com a figura de Maria Madalena, esta foi de quem Ele
expulsou sete demônios – Lc 8, 2). No sermão da montanha (Mt 5),
ele vai dizer quem são os verdadeiros bem aventurados: os pobres, os
aflitos, os mansos, os famintos, os misericordiosos, os puros, os
pacíficos, os perseguidos, os injuriados, todos aqueles a quem a
tradição social excluía como os mais desprezíveis. E arremata:
alegrai-vos e exultai porque grande será a vossa recompensa.
Caros
amigos, vejamos então a nossa responsabilidade de cristãos enquanto
chamados, vocacionados à santidade. Cada um de nós, na variedade
das tarefas cotidianas, exercemos, do modo como Deus nos chama, a
nossa vocação para a santidade. Não importa se um dia seremos
canonizados, se teremos nossas virtudes reconhecidas e seremos
colocados num altar, servindo como exemplo para os demais cristãos.
Isso nem é necessário, porque o que nós somos e fazemos apenas a
Deus interessa. Ocorre, porém, que devemos ter consciência de que
nós já somos, embora ainda não tenhamos chegado lá. Isso
significa que toda a nossa vida é um aprendizado, um treinamento
contínuo, um exercício interminável na tentativa de superarmos
nossas deficiências e nos livrarmos dos nossos pecados. O que Deus
quer e espera de nós é que vivamos constantemente na busca daquilo
que nos falta para alcançarmos a santidade plena. E o modo de irmos
nos aproximando disso é praticando continuamente a caridade e o amor
ao próximo.
Que
nós sejamos fiéis ao ensinamento de Cristo e possamos nos aproximar
sempre mais da perfeição que conduz à santidade.
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