COMENTÁRIO LITÚRGICO – 34º DOMINGO
COMUM – FESTA DE CRISTO REI – 22.11.2015.
Caros Leitores,
Neste 34º domingo comum, encerra-se o
ano litúrgico, com a festa de Cristo Rei do Universo. Esta
celebração foi instituída em 1925, pelo Papa Pio XI, com um
objetivo religioso-político, no período histórico que mediou entre
as duas grandes guerras mundiais e num contexto de grande ascensão
do ateísmo no mundo, com a vitória dos regimes comunistas na Ásia.
O objetivo do Papa era, ao mesmo tempo, contrapor-se à teologia
modernista, muito em voga no início do século XX, além de chamar a
atenção da comunidade internacional para a figura de Cristo, o
soberano acima de todos os dirigentes políticos.
A motivação teológica desta festa
litúrgica se concentra na 'segunda vinda' de Cristo, quando ele virá
concretizar as profecias que falam de sua eterna glória e do seu
grande poder, como a que lemos na primeira leitura de hoje, retirada
do profeta Daniel. O profeta teve uma visão terrível de quatro
grandes animais que desciam do céu e foi dado a cada um grande poder
de destruição. Depois, veio um ancião sentado num trono de fogo, e
logo depois veio o filho do homem: “eis
que, entre as nuvens do céu, vinha um como filho de homem,
aproximando-se do Ancião de muitos dias, e foi conduzido à sua
presença. Foram-lhe dados poder, glória e realeza, e todos os
povos, naçðes e línguas o serviam: seu poder é um poder eterno
que não lhe será tirado, e seu reino, um reino que não se
dissolverá.” (Dn
7, 13-14). Na sequência da leitura, que não está na liturgia, o
próprio Daniel ficou espantado com a visão e pediu que lhe fosse
explicado aquilo, então ele soube que os animais eram reis de grande
poder que surgiriam ali, mas seriam submetidos pelo poder daquele que
virá por último. Tal figura protagoniza a vinda de Cristo,
corroborada assim no Apocalipse: “Jesus
Cristo, a testemunha fiel, o primeiro a ressuscitar dentre os mortos,
o soberano dos reis da terra.”
(Ap 1, 5). E ainda no evangelho de Marcos: “Então
vereis o Filho do Homem vindo nas nuvens com grande poder e glória.
Ele enviará os anjos aos quatro cantos da terra e reunirá os
eleitos de Deus, de uma extremidade à outra da terra.”
(Mc 13, 26-27). Embora a liturgia de hoje não tenha escolhido este
trecho do evangelho de Marcos, ele se encaixa totalmente no contexto
das duas leituras anteriores.
Conforme eu já tive oportunidade de
expressar aqui neste espaço virtual, na minha opinião pessoal (que
não é doutrina oficial da Igreja Católica, mas um comentário
reservado meu), eu não concordo com essa exaltação dada pela
liturgia à figura de Cristo Rei do Universo. Em toda a sua pregação,
Ele nunca quis ser exaltado como chefe, ele sempre repreendeu os
discípulos e pessoas da comunidade, quando queriam enaltecê-lo,
assim como repreendia os discípulos, quando entre si disputavam quem
seria o maior, dizendo que o maior de todos deve ser o que serve a
todos. Ele deu muitos exemplos disso. Então, fica me parecendo essa
homenagem a Cristo Rei como um contrassenso a tudo o que ele pregou.
Fico com a impressão de que Ele rejeitaria tal homenagem, se
tivessem lhe perguntado antes. Além do mais, essa imagem do rei é
algo que recorda os tempos antigos e medievais, nos quais a figura
real era algo que fazia parte do dia a dia das pessoas, porque a
autoridade maior em toda parte era a de um rei. Mas no nosso tempo, a
figura do rei perdeu muito a sua importância, politicamente existem
poucos e o arquétipo real tornou-se algo bastante folclórico,
presente nos folguedos populares, de modo que a imagem do rei já não
transmite um significado de algo verdadeiro, mas faz parte do mundo
da fantasia.
Eu ainda vejo nisso outro agravante. A
celebração de Cristo Rei do Universo nos leva a questionar o
alcance desse reinado. Até onde nos é dado saber, Cristo veio
trazer a salvação aos seres humanos, isto é, habitantes da terra.
As leituras bíblicas, escritas numa época em que a compreensão de
universo se restringia ao limite geomórfico, fazem referência aos
'reinos da terra'. Mas, em 1925, quando a festa foi estabelecida, já
se tinha o conceito de universo bem mais estendido, e por isso o
título da festa é Cristo Rei do Universo, já devia ser vista não
apenas como do planeta terra. Num domingo próximo passado, eu
externei aqui uma opinião sobre o que eu suponho que se deva
entender por “fim do mundo”, desmistificando aquela narração
funcionalista do fim dos tempos, com as estrelas caindo e os mortos
saindo dos túmulos, imagens que foram bastante exploradas pelos
artistas medievais. Ora, sabe-se hoje que o universo tem uma dimensão
inefável, ilimitada, incomensurável, a cada dia a ciência faz
afirmações de descobertas sobre a existência de outros planetas em
condições idênticas às da terra, com grande probabilidade de que
haja vida inteligente por lá. Pois bem. Se houver esses mundos,
então a mensagem de Cristo também teria chegado lá? Cristo teria
se encarnado lá também e teria pregado seu evangelho ali? Até
hoje, toda a teologia foi elaborada com base no pressuposto de que
somente na terra existe vida inteligente. Como ficará a doutrina
religiosa quando forem (e isso acontecerá, embora não se saiba
quando) finalmente encontrados outros seres inteligentes, com a mesma
estrutura mental dos habitantes da terra? Ora, a referência a Cristo
Rei do Universo (e não apenas da terra) supõe que a Sua pessoa e a
sua mensagem estariam presentes em todos os confins do cosmos. Não
há resposta cabal para este questionamento. Porém, por pura dedução
de lógica, partindo da afirmação teológica de que Deus criou tudo
o que existe e que no Filho, nascido do Pai antes de todos séculos,
todas as coisas foram feitas, podemos concluir que, se existirem
outros mundos semelhantes ao nosso, ali também será encontrada a
mensagem cristã.
Lembremo-nos da profecia de Daniel
(primeira leitura), na sua visão dos animais ferozes, que
representavam os reis que surgiriam ali naquela parte da terra. A sua
abrangência era limitada, porque não podia ser diferente do
conhecimento que havia naquela época. Ao longo da história,
diversos estudiosos tentaram associar essas figuras metafóricas das
profecias bíblicas com alguns personagens reais. E fora do contexto
bíblico, são muito famosas as centúrias de Nostradamus, as quais
são recorrentemente interpretadas em confronto com os fatos
históricos. Então, partindo disso, considerando a compreensão que
se tem hoje do universo, precisamos repaginar a nossa crença nessas
verdades escatológicas, que os textos bíblicos lançam apenas na
perspectiva geoestacionária. A festa de Cristo Rei está relacionada
com a “segunda vinda” de Cristo e essas narrativas também estão
na perspectiva da profecia danielina e precisam ser reinterpretadas.
E para isso precisamos ultrapassar também o conceito de “rei”
como conhecemos concretamente e historicamente. O “reinado” de
Cristo (isso ele mesmo disse) não é deste mundo, então não
podemos pensar sobre ele numa dimensão material, cosmológica, ainda
que nas gigantescas proporções do universo apresentado pela
ciência. O universo onde Cristo efetivamente “reina” repousa no
coração, na intuição, no discernimento, na adesão dos seus fiéis
e não deve ser imaginado como um local onde se estabeleceria esse
trono fictício. O “reino” de Cristo ultrapassa os limites da
temporalidade e somente será possível compreendê-lo se nos
dispusermos a ir além da imaginação e da limitação da nossa
racionalidade.
Meus amigos, neste comentário, não me
limitei à costumeira abordagem das leituras litúrgicas do domingo e
peço desculpas se não concordarem com essa forma de pensar e
teologia da esperança. A segunda vinda de Cristo, creio eu, somente
será perceptível para nós quando ultrapassarmos os umbrais do
tempo e do espaço. Mas, apesar de discordar desse aparato suntuoso
que a liturgia sugere com a festa de Cristo Rei, eu creio também que
Jesus é verdadeiramente o soberano da verdade, da justiça, da paz,
da igualdade e da fraternidade e que, para isso, ele não precisa de
um manto real nem de um cetro nem de um trono, porque o seu manto é
a verdade, o seu trono é a justiça e o seu cetro é a paz que ele
vem trazer todos os dias a todos nós.
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