domingo, 6 de março de 2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO - 4º DOMINGO DA QUARESMA - PERDÃO E RECONCILIAÇÃO - 06.03.2016

COMENTÁRIO LITÚRGICO – 4º DOMINGO DA QUARESMA – PERDÃO E RECONCILIAÇÃO – 06.03.2016

Caros Confrades,

Nas leituras deste 4º domingo da quaresma, destaca-se o tema da reconciliação, presente nos vários textos lidos, dentre eles aquela conhecida história do “filho pródigo”, que a liturgia agora prefere chamar de “pai misericordioso”. Essa temática está em total sintonia com a proposta do Papa Francisco, concretizada na programação do Ano Santo da Misericórdia, cuja abertura se deu há algumas semanas. Para haver reconciliação, é necessário que haja perdão, sem o que aquela não será possível. E o perdão é a atitude mais louvável e digna que uma pessoa humana pode ter, pois o ato de perdoar tem a dupla função de salvar tanto o perdoado quanto quem perdoa.

Na primeira leitura, do livro de Josué (5, 9-12), temos a narração da primeira Páscoa que os israelitas comemoraram após adentrar na terra prometida. Javeh diz a Josué: 'Hoje tirei de cima de vós o opróbrio do Egito', isto é, agora vocês estão livres novamente, habitando a terra dos vossos pais, não precisam mais temer o dominador egípcio. Após uma passagem de quarenta anos em peregrinação pelo deserto, durante a qual a velha geração dos israelitas sucumbiu, a reconciliação de Javeh com o seu povo se deu, finalmente, pelas mãos de Josué, sucessor de Moisés no comando da nova geração de israelitas, que adentraram a terra prometida. O próprio Moisés já não estava presente nessa ocasião. A primeira Páscoa celebrada em Canaã significa o cumprimento da promessa de Javeh e a renovação da aliança. De um modo semelhante e em outro contexto, a leitura do evangelho de Lucas irá contrapor as atitudes do filho mais velho com o filho mais novo, diante do pai misericordioso.

Na segunda leitura, da carta de Paulo a Coríntios (2Cor 5, 17-21), o apóstolo lembra que, por Cristo, Deus reconciliou o mundo com ele próprio e nos deu o ministério da reconciliação. Esta carta foi escrita num momento difícil para a comunidade de Corinto, envolta com a polêmica dos judaizantes e atormentada por adversários de Paulo, que teimavam em manter os velhos costumes judeus, mesmo depois de convertidos. Por isso, Paulo adverte: “Se alguém está em Cristo, é uma criatura nova. O mundo velho desapareceu. Tudo agora é novo. ” (2Cor 5,7) Os velhos costumes não deviam mais ser invocados diante da nova geração de cristãos, porque em Cristo tudo foi reconfigurado. E de uma forma bastante contundente, ele conclama toda a comunidade a deixar-se reconciliar com Deus. “Em nome de Cristo, nós vos suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus” (2Cor 5,20) para que não recebais em vão a Sua graça. A exortação de Paulo acerca da reconciliação e do perdão se fazia necessária porque a comunidade de Corinto havia afastado os dissidentes e não aceitava mais a participação destes nas atividades eclesiais. Por isso, Paulo insistia na exigência do perdão e da reconciliação com os dissidentes ao dizer que Deus nos deu, através de Cristo, o ministério da reconciliação. E até evitou fazer uma viagem a Corinto, a fim de não exaltar ainda mais os ânimos, preferindo só mandar a carta.

Na leitura do evangelho de Lucas (Lc 15, 11-32), temos a narração de uma das parábolas de Cristo mais conhecidas, ao lado da parábola do Bom Samaritano, que é a conhecida história do filho pródigo. Durante muito tempo, a liturgia identificava assim esse texto, reportando-se à figura do filho que esbanjou frivolamente todos os seus bens de herança e depois foi novamente acolhido pelo pai misericordioso. Reformulando o tema, a liturgia agora mudou o foco do episódio para a figura do pai, que acolhe o filho irresponsável e arrependido, buscando a reconciliação com o irmão mais velho, que não aceitava aquela situação.

Essa historinha contada por Jesus foi mais um “cascudo” na cabeça dura dos fariseus, que se consideravam como irmãos mais velhos e, assim, os únicos merecedores da amizade com Javeh, porque eram os herdeiros legítimos da tradição veterotestamentária. Como sempre, os fariseus não entenderam a mensagem, porque estavam seguros demais dos seus méritos e, na sua estreiteza de pensamento, não podiam admitir que os convertidos (irmãos mais novos), povos estranhos à aliança antiga, passassem a ter assento junto com eles na mesa da refeição divina.

O contexto da narração se dá num momento em que Jesus conversava com publicanos e pecadores. Para começar, é importante lembrar que os fariseus se consideravam puros e sem pecado, ao contrário dos publicanos, que eram pecadores públicos. Os fariseus cumpriam rigorosamente a lei, jejuavam, davam esmolas, iam à sinagoga nos sábados, isto é, faziam tudo como mandava a lei de Moisés, tal como o irmão mais velho da parábola. Embora essas práticas fossem, muitas vezes, hipócritas e exteriorizadas, eles se consideravam pessoas exemplares e quem não fazia isso era considerado pecador. Dentro da mentalidade judaica, os publicanos viviam permanentemente no pecado e não tinham jeito, ou seja, não havia como eles deixarem essa vida marginal e passarem à condição de pessoas justas. Por isso, o simples contato com essas pessoas, ainda que fosse para um mero aperto de mão, era suficiente para deixar impuro quem se aproximasse, havendo a necessidade de fazer depois um ritual de purificação. No caso, Jesus estava todo contaminado, porque conversava com eles.

O fato de Jesus ter comunicação com essas pessoas pecadoras públicas era fortemente censurado pelos fariseus e um dos motivos para que estes duvidavam da divindade de Jesus, porque um enviado de Javeh saberia da proibição legal de ter contato com essa gente 'imunda'. Daí que, conforme diz Lucas (15, 1), os publicanos e pecadores se aproximavam de Jesus para escutá-los e Jesus os recebia, e isso gerava revolta nos fariseus. Por isso, Jesus contou-lhes a história onde o filho mais velho ficou se roendo de ciúmes porque o irmão pecador retornou a casa depois de uma temporada de aventuras e o pai, além de não repreendê-lo, ainda fez uma grande festa. Neste mesmo trecho (15, 7), que foi omitido na leitura litúrgica, Jesus justificou isso, quando disse que haverá grande alegria no céu por um pecador que se arrepende, mais do que por noventa e nove justos que não necessitam de perdão. Por não compreenderem e nem aceitarem essa verdade, os fariseus terminaram perdendo a oportunidade de participar da festa pascal promovida pelo Pai.

Vê-se, meus amigos, nessa narração uma atitude acima de tudo preconceituosa por parte dos fariseus. Naquela época, tanto quanto hoje, existia a praxe de rotular as pessoas por critérios nem sempre justificáveis, mas que tinham aprovação social tácita. Naquela época, eram os publicanos e prostitutas. Nos dias de hoje, são as pessoas humildes, as de pouca instrução, alguns grupos que sofrem segregação por causa da cor ou pela opção sexual, sem falar também na discriminação que, muitas vezes, sofrem as pessoas de outras crenças religiosas, que são logo tachadas de hereges ou infiéis. Esses preconceitos, que nos são repassados pelo processo de aculturação, se alojam no nosso inconsciente e, de repente, nos surpreendemos tendo atitudes que nós mesmos reprovamos nos outros. O comportamento de Cristo, acolhendo a todos indistintamente, aliás, acolhendo com mais atenção aqueles que eram os mais excluídos na sociedade farisaica, deve servir-nos de exemplo para a nossa vida cotidiana, a fim de nos vigiarmos para não cairmos no mesmo falso moralismo e na mesma falsa fé dos fariseus.

Vemos também, na pedagogia paulina, uma atitude de respeito que serve de modelo para nós, educadores de nossos filhos ou de alunos, que é a prática da humildade. Paulo tinha conhecimento da rebeldia de seus críticos, que viviam na comunidade de Corinto, todavia, não se prevaleceu da sua autoridade de apóstolo e enviado por Cristo para impor o seu pensamento. Ao contrário, ele muito humildemente “suplicou” aos coríntios para que se deixassem reconciliar com Deus, não ameaçou, não intimidou, não impôs condições. Ao apelar para o ministério da reconciliação, ele ensinou que, mesmo quando o irmão está numa posição errônea, não se deve expor os seus defeitos nem apelar para ameaças e castigos, como estratégia de convencimento porque, diz ele, “em Cristo, Deus reconciliou o mundo consigo, não imputando aos homens as suas faltas”, mas ao contrário, “aquele que não cometeu nenhum pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nele nós nos tornemos justiça de Deus.” (2Cor 5, 21).

Que o Divino Mestre nos ensine sempre a humildade no trato com os irmãos, exercitando cada vez mais e melhor o ministério da reconciliação e do perdão.

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